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Festa e Diversidade Cultural

Nina Rodrigues, um dos pioneiros dos estudos africanistas no Brasil, dizia que língua e religião são os elementos fundamentais para a compreensão da vida e da cultura de um povo. No caso brasileiro, ouso acrescentar, qualquer explicação do que somos como povo e cultura não pode dispensar um terceiro e também fundamental elemento: a festa.

É que, fenômeno trans-histórico e transcultural, portanto, com presença garantida em qualquer sociedade e a qualquer tempo, a festa, entre nós, adquiriu uma importância que merece destaque, lugar de honra. Tem a prerrogativa da ancianidade na formação do nosso corpo de cultura. É uma espécie de “comissão de frente” da aventura brasileira. Lá atrás, desde tempos pré-brasílicos, nossos índios, entre uma guerra e outra, festejavam a rodo. Na sequência, a colonização engrossou o caldo aportando procissões e cortejos, que faziam a gala do catolicismo ibérico-barroco, inclusive ameaçando com o fogo do inferno quem oussasse não festejar. Acrescente-se aí o rico espírito festivo trazido pelas culturas africanas, que aqui fizeram do território da festa uma estratégia de resistência aos horrores da escravidão. O que resultou daí foi um mosaico de festas e celebrações que em trânsito intenso e tenso entre o sagrado e profano configuram, desde sempre, a vida brasileira. Podemos afirmar pois, e sem medo de errar, que a festa é a “prova dos nove” do modo de vida brasileiro, a mais viva e vibrante expressão da nossa diversidade cultural.

Algumas inflexões contemporâneas, contudo, ao alcançarem, em força, nosso diversificado repertório festivo põem na ordem do dia, e em regime de urgência, a necessidade de políticas públicas dedicadas às festas. Com efeito, processos que entrelaçam espetacularização midiática, turismo e práticas mercantis, presentes em larga escala nas nossas grandes festas públicas, a exemplo do carnaval e do ciclo de festas juninas do Nordeste, não podem ser enfrentados exclusivamente pela vitalidade e capacidade de renovação que são próprias do tecido cultural destas festas.

Não se trata, evidentemente, de insistir-se numa perspectiva que, fundada num romantismo estéril, imagina ser possível preservar a (falsa) pureza das tradições do carnaval, das festas juninas ou de qualquer outra celebração festiva que marca a cena brasileira. Ao contrário, aqui, o caminho a ser trilhado deve ter como baliza a compreensão expressa pela Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada em 2005, pela UNESCO, de que os bens culturais comportam uma dupla natureza, ou seja, são expressões do universo simbólico e possuem, também, uma dimensão econômica.

Nessa medida, podemos dizer que as festas se oferecem, hoje, como um terreno privilegiado para o Estado por em prática políticas de proteção e promoção da diversidade cultural brasileira. Políticas que, por exemplo, acionem instrumentos de regulação do mercado da festa, promovendo práticas na direção de uma economia de base mais solidária e menos competitiva; que estabeleçam mecanismos para uma governança democrática que seja capaz de incluir todos os atores que fazem e gozam a festa; e que, especialmente, estimulem o diálogo entre a tradição dos festejos e a renovação e experimentação do festejar. No mais, é deixar que a festa corra solta e que continue sendo a nossa mais generosa tradução como povo e cultura.

*Paulo Miguez é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (1979), mestre em Administração (UFBA, 1995) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA, 2002). Atualmente é Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA) e pesquisador do CULT – Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (UFBA).

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