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Mundo precisa ser digno da herança e da lição de Mandela, diz biógrafo

Foto: Mike Hutchings / Reuters

Nelson Mandela sorri para fotógrafos em sua casa em Johanesburgo, na África do Sul, em setembro de 2005

Jean Guiloineau lembra muito bem onde estava em 11 de fevereiro de 1990. Naquele dia, instalado no sofá de sua casa, em Paris, o escritor via, ao vivo pela TV e pela primeira vez em 27 anos, o rosto de Nelson Mandela.

“Até então, ele era um mito. Mas, naquele momento, voltou a ser o homem de carne e osso”, lembra esse francês que dedicou vários anos de sua vida para escrever uma biografia sobre o ex-presidente sul-africano (“Nelson Mandela”, Éditions Payot y Rivages). Em Paris, onde mora até hoje, Guiloineau falou ao Terra sobre o legado, a vida e a construção do mito Nelson Mandela.

Terra – Qual é o legado de Nelson Mandela?
Jean Guiloineau – A ideia de que, mesmo com as dificuldades que existem, o diálogo é necessário para conseguir a reconciliação. Um dia, durante uma rodada de negociações, Mandela disse ao chefe do Estado Maior Sul-Africano: “Vocês têm as forças militar e material, e nós não poderemos jamais vencê-los. Mas, atrás de mim, existem 30 milhões de famintos. E isso, vocês também não poderão jamais vencer. Então, é melhor nós conversarmos”. Mandela foi o homem que, com uma convicção absoluta, durante quatro anos de negociação, conseguiu obter uma saída de alto nível para seu país, ou seja, pela via democrática. Os brancos temiam que o fim do apartheid levasse a uma onda de vingança, uma guerra civil sem fim que destruiria o país. Mas isso não aconteceu. À vingança, Mandela preferiu a reconciliação. Essa é a obra de Mandela: ter conseguido retirar seu país de um impasse trágico.

Terra – Em 64, pouco antes de ser encarcerado por 27 anos, Mandela afirmou que daria a própria vida por uma sociedade democrática e igualitária na África do Sul. Ele alcançou seu objetivo?

Guiloineau – Em 1999, Mandela deixou o poder, mesmo sabendo que poderia ser reeleito até o fim de seus dias, sem nenhum problema. Ele não fez o que fez apenas para chegar ao poder, mas para tornar a África do Sul uma sociedade democrática. É claro que ainda existe desigualdade social. Três séculos de colonização e 50 anos de apartheid  não podem ser resolvidos em dez ou quinze anos. Mas é preciso continuar esse esforço, para que todos possam ter uma vida correta, uma oportunidade de prosperar e o sistema não seja feito para esmagar os outros.

Terra – Já que o senhor falou sobre “esmagar os outros”, qual foi o momento mais difícil do período de Mandela como prisioneiro?
Guiloineau – Sem dúvida entre 1964 e 1978, em Robben Island, quando ele realizou trabalhos forçados em uma pedreira de calcário, extraindo cal. O branco da pedra refletia a luz do sol e queimava seus olhos, causando desgastes na visão. Foi nessa época que ele e seus companheiros brigaram para conseguir óculos escuros. Além disso, o pó da pedra causou-lhe problemas pulmonares que o acompanharam até o fim de sua vida. 

Terra – Como foi a vida de Mandela após afastar-se da vida política, no começo dos anos 2000?
Guiloineau – Logo no início, ele dedicou muito tempo à sua família, já que havia sido privado disso durante os 27 anos em ue esteve preso. Ele reencontrou seus filhos, seus netos. Também criou uma fundação e viajou muito pelo mundo, tanto para levar a boa palavra como para mostrar que Mandela não era apenas um mito, um personagem que tinha chegado ao poder, mas alguém que se entregou a uma causa. Sabe, quem nasceu depois do apartheid têm 23 anos, hoje em dia. Isso é fantástico! Existe uma nova geração que nasceu em uma África do Sul livre.

Terra – Em que momento de sua vida, Mandela decide engajar-se na política?
Guiloineau – Quando ele chega a Johannesburgo e encontra, em Soweto, Walter Sisulo – que também esteve com Mandela durante todos os seus anos de prisão. Sisulo era mais velho que Mandela e já era engajado politicamente. Foi ele quem ajudou Mandela a tomar partido na política de seu país e também o incentivou a retomar seus estudos de direito, em Johannesburgo. Existem esses dois momentos, o político e o profissional, e a chave dessa passagem é Walter Sisulo.

 “O que podemos esperar agora que ele não está mais aqui é que o mundo tenha a preocupação de ser digno dessa herança e dessa lição que ele nos deu”

 Terra – E quando ele se torna um mito?

Guiloineau – Algo curioso aconteceu. As autoridades não ousaram condená-lo à forca durante o Julgamento de Rivonia, em 1964, e o colocaram na prisão perpétua. O objetivo era fazer com que Mandela fosse esquecido. Para isso, proibiram qualquer foto sua. Entre 1966 e 1990 não há nenhuma foto de Mandela. Quando ele saiu da prisão, em 1990, ninguém sabia que cara ele tinha. Moral da história: como a luta continuou do lado de fora da prisão, as pessoas não o esqueceram. Ele não tinha mais um rosto, não tinha presença corporal, humana, e tornou-se uma espécie de mito. Curiosamente, essa decisão das autoridades de impedir as fotos, ajudou a criar o mito.

Terra – Como será a África do Sul sem Nelson Mandela?
Guiloineau – Enquanto Mandela esteve vivo, esteve presente, de alguma maneira, como um fiador, uma garantia. O que podemos esperar agora que ele não está mais aqui é que o mundo tenha a preocupação de ser digno dessa herança e dessa lição que ele nos deu.

Fonte: Terra 

Mário Camera (Paris)

 

Leia também: Nelson Mandela -1918/2013

 

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