Arquivo Pessoal

NOTÍCIAS

Entrevista José Eustáquio de Brito

Ações afirmativas: por que o sistema de cotas deve chegar à pós-graduação

  1. A importância das ações afirmativas na pós-graduação stricto sensu

Para que possamos compreender a importância das políticas de ações afirmativas na pós-graduação stricto sensu, é preciso considerar os objetivos estratégicos dessas políticas que visam à alocação de recursos materiais e simbólicos em benefício de pessoas pertencentes a grupos sociais historicamente discriminadas e vitimados pela desigualdade étnico-racial e socioeconômica.

Em 2015, quando tive a oportunidade de integrar o grupo de trabalho interinstitucional que organizou o Fórum Mineiro de Ações Afirmativas, compreendemos que as políticas de ações afirmativas devem se fazer presentes em todos os níveis e etapas da educação, incluindo, evidentemente, a pós-graduação stricto sensu. Esse ponto de vista se ancora na necessidade de promover a formação no âmbito da pesquisa acadêmica que qualifica os estudantes para o desempenho de atividades consideradas fundamentais para o avanço da ciência, bem como para a inserção qualificada e de maior reconhecimento no mercado de trabalho.

Hoje a pós-graduação stricto sensu emerge como uma fronteira a ser ampliada pelas políticas de ações afirmativas voltadas sobretudo para a população negra e indígena. Nesse caso, a compreensão é que, aliada à política de reserva de vagas, há a necessidade de desenvolver um conjunto de ações visando à permanência bem-sucedida dos estudantes nas fileiras da pós-graduação stricto sensu.

Uma experiência implementada em escala internacional na década passada, e que contemplou estudantes brasileiros, foi desenvolvida por uma instituição privada – a Fundação Ford – mediante o Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação, que promoveu a inserção nacional e internacional de centenas de estudantes negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação stricto sensu avaliados como sendo de excelência. Uma questão que se apresenta quando me refiro a essa experiência diz respeito ao compromisso das políticas públicas com o enfrentamento da desigualdade racial como estratégia de fortalecimento da democracia, num contexto em que até mesmo atores privados entram em cena para induzir ações nesse sentido.

  1. Políticas de ação afirmativa e os principais desafios no Brasil

No início da década de 2000, algumas universidades públicas brasileiras iniciaram a implantação de políticas de ações afirmativas visando ao ingresso de segmentos da população sub-representados no ensino superior como estratégia para enfrentar a desigualdade de acesso e permanência, com destaque para a população negra e indígena. As instituições pioneiras na implantação de políticas de reserva de vagas foram a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2002; Universidade do Estado da Bahia, também em 2002, a Universidade de Brasília, em 2004.

A Universidade do Estado de Minas Gerais e a Universidade Estadual de Montes Claros, por força da Lei Estadual nº 15.259, de 27 de julho de 2004, adotaram o sistema de reserva de vagas para os cursos de graduação para afrodescendentes, egressos de escola pública, pessoas com deficiência e indígenas. A partir do ano de 2012, com a aprovação da Lei 12.711, o sistema de cotas raciais / sociais passa a vigorar em toda a rede federal de ensino, tanto no nível técnico e tecnológico, quanto no nível superior.

É importante destacar que, não obstante as resistências apresentadas por setores conservadores de nossa sociedade, essas iniciativas foram impulsionadas, sobretudo, pela ação do movimento negro que há décadas vem denunciando as diversas formas como se apresenta a desigualdade racial no país, com destaque para a política educacional. A denúncia do mito da democracia racial, mediante a confrontação com os dados que revelam a persistência da desigualdade racial, sustenta a visão de que, sem o combate ao racismo não se constrói uma sociedade democrática e que essa luta implica na democratização do acesso e na promoção da permanência bem-sucedida no ensino superior.

Dados divulgados pelo Censo do Ensino Superior sistematizados pelo Inep registram que o percentual de estudantes negros que concluíram a graduação passou de 2,2% no ano 2000 para 9,3% em 2017. Sem dúvida, essa constatação representa uma avaliação positiva das políticas de ações afirmativas. No entanto, deve-se analisar esses dados tendo em vista as hierarquias presentes na oferta do ensino superior em que a maior parte dos concluintes encontrava-se inserida no ensino superior privado, com poucas oportunidades de inserção em projetos de pesquisa, bem como a segmentação existente no mercado de trabalho, que se reproduz no ensino superior de modo a conferir prestígio social a determinadas áreas caracterizadas pelo pertencimento racial, conferido pelos privilégios históricos da branquitude que alguns críticos das ações afirmativas interpretam como sendo evidência de mérito acadêmico.

  1. As consequências da minimização do racismo

Em relação ao atual governo, o que se pode observar é que não tem o compromisso de desenvolver ações no campo das políticas públicas com o objetivo de enfrentar o problema da desigualdade racial no país não só na área da educação, mas em outras áreas, como a saúde, por exemplo. A forma como o governo federal tem agido no contexto da pandemia da Covid-19 é nesse momento o sinal mais evidente de que vidas negras e indígenas não importam, pois até mesmo os dados sobre pertencimento étnico-racial têm sido omitidos dos registros oficiais referentes às vítimas da pandemia.

No âmbito da educação, talvez a forma mais emblemática de manifestação desse descompromisso para com essa agenda política foi a entrevista concedida pelo ex-ministro Velez Rodrigues à revista Veja em fevereiro de 2019 que recebeu o título sugestivo de “faxina ideológica”. Na foto que ilustra a matéria, o ex-ministro se apresenta apoiando os braços sobre uma pilha de livros que serão objeto dessa pretendida “faxina”.

A maior parte dos livros integra a Coleção História Geral da África, uma obra de referência patrocinada pela Unesco e que contou com a contribuição de renomados pesquisadores de várias partes do mundo, e cuja edição em português fora lançada em 2011. Se compreendemos que o ensino de História da África e Cultura Afro Brasileira se tornou obrigatório na educação básica e na formação docente a partir do ano de 2003, com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional mediante a aprovação da Lei 10.639, e que essa foi sem dúvida uma medida que se enquadra no campo das ações afirmativas, podemos concluir que o atual governo brasileiro trabalha contra essa agenda que tende a fortalecer os pilares da democracia brasileira.

 

Tags: Diversidade Cultural, Racismo, Cotas Raciais, Cotas Para Negros, Desigualdade Social, Ações Afirmativas, Políticas Públicas

Deixe aqui o seu comentario

Todos os campos devem ser preenchidos. Seu e-mail não será publicado.

ACONTECE

ODC Diálogos – 17 de Abril de 2024

No dia 17 de abril (quarta-feira), às 19 horas, acontecerá mais uma edição do ODC Diálogos. Motivado pelo número 100 do Boletim, o encontro tem como tema “Avanços e desafios para a política cultural no Brasil hoje”, e contará com a participação de Albino Rubim e Bernardo Mata Machado, sob mediação da pesquisadora do ODC, […]

CURSOS E OFICINAS

Oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural – Santa Luzia (MG)

O Observatório da Diversidade Cultural, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, e com o patrocínio da Soluções Usiminas, e apoio do SESC Santa Luzia, realiza a oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural. A oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural tem como objetivo a formação de agentes culturais, estudantes, pesquisadores […]

Mais cursos