INFORMAÇÃO

Pontos de cultura, autodeclaração e identidade

                                                                                                     Jocastra Holanda[1]

O Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura são experiências emblemáticas na história das políticas culturais recentes no Brasil, reconhecidos nacional e internacionalmente. O Programa contribuiu para uma maior descentralização das atividades do Ministério da Cultura, através do financiamento e fomento aos polos de criação e produção culturais em todo o país. São cerca de quatro mil pontos beneficiados por recursos do Estado, entre grupos tradicionais, povos indígenas, culturas populares, produções culturais das periferias urbanas e rurais, além da cultura digital, comunicação popular e produções das juventudes.

Em 2014, após amplo processo de participação social e revisão do Programa Cultura Viva junto ao MinC, os agentes culturais, ponteiros e gestores culturais de todo o país protagonizaram a institucionalização do Programa como política nacional com a aprovação da Lei Cultura Viva (Lei 13.018/2014, de 23 de julho de 2014), transformando assim o Cultura Viva e sua ação estruturante prioritária, os Pontos de Cultura, na Política Nacional de Cultura Viva.

  A Lei Cultura Viva é, sem dúvida, um marco histórico na institucionalização das políticas culturais no país. A legislação traz importantes reformulações no Programa e na ação dos Pontos de Cultura, como a simplificação dos processos de prestação de contas e de repasse de recursos para as organizações da sociedade civil, e a instituição da autodeclaração dos Pontos de Cultura.

Para a autodeclaração e a integração dos Pontos em rede, o MinC criou, em 2015, o portal da Cultura Viva (http://culturaviva.gov.br/), em que grupos culturais, formais ou não (sem CNPJ), podem se autodeclarar Pontos ou Pontões de Cultura, passando a ter acesso às políticas criadas para atender a base social cadastrada na Rede Cultura Viva e também possibilitar trocas e interações entre produtores e agentes culturais de todo Brasil[2]. Cabe ao Ministério da Cultura reconhecer e certificar as entidades culturais juridicamente constituídas e também coletivos sem CNPJ que assim se autodeclararem Pontos e Pontões de Cultura. Na prática, a autodeclaração permite a certificação e o reconhecimento por parte do MinC e habilita os coletivos para a participação em editais e nas políticas destinadas à Rede Cultura Viva, o que não garante necessariamente o acesso ao financiamento e ao repasse financeiro.

Interessa-nos aqui problematizar não sobre as mudanças técnicas e operacionais no Programa, embora sejam de fundamental importância para os avanços e para sua continuidade, mas refletir acerca do que significa em termos simbólicos a autodeclaração como Ponto de Cultura. O que seria esta autodeclaração como Ponto de Cultura? O que essa “autodeclaração” representa? Quais significados políticos e culturais a “autodeclaração” como Ponto de Cultura aciona?

 

Autodeclaração e identidade

A questão da autodeclaração parece estar diretamente ligada à problemática da identidade. Sabemos que a autodeclaração identitária é vinculada, sobretudo, às definições étnico-raciais. Seria equivocado aqui, no entanto, pensar a autodeclaração dos Pontos de Cultura à luz ou comparativamente com as discussões acerca da autodeclaração ético-racial, pois são conceitos e categorias de naturezas distintas. Ponto de Cultura é uma categoria normativa e operacional, embora discursivamente construída também pela dimensão da identidade. E raça e etnia são categorias históricas e analíticas complexas circunscritas na delimitação de grupos específicos, em que  cada indivíduo se reconhece como membro de uma respectiva cultura, pertencente a determinado grupo, com uma identidade e uma trajetória de vida, e, portanto, essencialmente vinculadas às questões identitárias.

  A partir do olhar para a estrutura simbólica do Cultura Viva, evidenciamos que, desde a sua gênese, se produziu um discurso da dimensão da identidade no que diz respeito à significação e ao reconhecimento dos sujeitos como Pontos de Cultura. Tal significação, semelhante ao pertencimento a grupos específicos, também remete à ideia de pertencer e compartilhar uma “identidade”, justificada, sobretudo, no arcabouço conceitual do Programa acerca da gestão, produção e da articulação em rede.

Considerando-se o discurso do MinC, “ser Ponto de Cultura” estava condicionado à chancela aos projetos financiados e apoiados institucionalmente pelos governos federal, estadual e municipal. É uma denominação que identifica todas as iniciativas que são ou já foram reconhecidas pelo MinC como Ponto de Cultura. Com a Lei Cultura Viva, ser Ponto de Cultura passa a ser uma questão de autodeclaração por parte dos produtores e fazedores da cultura e do reconhecimento dessas práticas por meio de certificação emitida pelo Ministério da Cultura.

  “Ser Ponto de Cultura” revela, portanto, a força discursiva e simbólica de uma ideia de “identidade compartilhada”. É o “reconhecimento de si” como Ponto de Cultura e o “reconhecimento de Outros” produtores e criadores de cultura de todo o país que podem atuar e se articular em rede, partilhando de uma mesma “identidade”.

  Para a secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural, do Ministério da cultura, Ivana Bentes, a autodeclaração dos Pontos de Cultura “é o grande passo para mapear o potencial e força que são os Pontos de Cultura no Brasil. É um instrumento político, uma moeda simbólica de negociação e um instrumento para apresentar a grandiosidade do sistema”[3].

  Existe, portanto, uma ideia sobre o que é “ser Ponto de Cultura”, que tem um significado político e cultural, que mesmo antes de celebrar o convênio ou ainda ao término da execução do projeto, o grupo cultural assume a assinatura e o autorreconhecimento como Ponto de Cultura[4]. Com a autodeclaração, essa ideia de se reconhecer como Ponto de Cultura tem autonomia em relação à celebração do convênio ou do TCC (Termo de Compromisso Cultural), o novo modelo de repasse dos recursos para as entidades culturais, pois os coletivos e entidades podem se autorreconhecer e se autodeclarar como tais.

  A autodeclaração como Ponto de Cultura aciona, portanto, significados de dimensão política quando potencializa a participação, a articulação e o fortalecimento dos grupos culturais cadastrados na Rede Cultura Viva, incentivando a organização em rede e o diálogo com o poder público, reconhecendo os direitos culturais de todos os produtores e fazedores de cultura do país através da legitimação institucional e democratização do acesso. O Ponto de Cultura mobiliza ainda a dimensão simbólica e cultural quando propõe a visibilidade, a valorização e o reconhecimento de iniciativas culturais e grupos dos mais diversos segmentos da diversidade cultural brasileira. Além disso, revela a ideia e o sentido de uma “identidade compartilhada” pelos sujeitos participantes da Rede Cultura Viva.

Referências

BEZERRA, Jocastra; BARROS; José Márcio. O Cultura Viva e sua potência discursiva. Políticas Culturais em Revista, v. 7, n. 2 (2014). Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/12533> Acesso em 12 de jan. 2016.

CULTURA VIVA. Disponível em < http://culturaviva.gov.br/ > Acesso em 12 de jan. 2016.

MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em < http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1280520 > Acesso em 12 de jan. 2016.

[1] Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), graduada em Comunicação Social pela Faculdade Evolutivo (FACE) e integrante do Observatório da Diversidade Cultural (ODC).

[2] Mais sobre a Lei Cultura Viva: http://culturaviva.gov.br/ .

[3] Ministério da Cultura. Disponível em <http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1280520 > Acesso em 12 de jan. 2016.

[4]  BEZERRA, Jocastra; BARROS; José Márcio. O Cultura Viva e sua potência discursiva. Políticas Culturais em Revista, v. 7, n. 2 (2014). Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/12533> Acesso em 12 de jan. 2016.

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1 Comentário para “Pontos de cultura, autodeclaração e identidade”

  1. Bom dia cultura viva, eu comessei a fazer minha declaração de ponto de cultura e não finalizei! por motivo do meu micro ter cido raqueado e entrado muitos viros, de modo que, eu gostaria de dar continuidade a minha declaração de ponto de cultura! é posìvel? pode me enviar um email para eu me atualizar da pagina de declaração? obrigado, fico no aguardo, Sandra.

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