INFORMAÇÃO

Por mais produções do Cinema Feminista do Terceiro Mundo

Créditos: Hassan Hajjaj

Créditos: Hassan Hajjaj

Tatiana Corsini Schwartz[1]

Vítor de Souza Costa[2]

No dia 20/10/2015, terça-feira, a sala Walter da Silveira, na Biblioteca dos Barris, recebeu a Mostra Paralela do Festival Internacional de Filmes, Palavras de Mulheres. O projeto teve por objetivo apresentar uma seleção de filmes cujas narrativas são produzidas e protagonizadas por mulheres, promovendo assim um espaço único de debates acerca de produções fílmicas que se propõem a explorar e discutir o universo feminino. A simples exposição e divulgação de películas cuja perspectiva narrativa provêm de mulheres diretoras, roteiristas e atrizes é, por si só, razão para celebração, visto que no quadro da produção fílmica, bem como em tantas outras instâncias da produção cultural, os homens predominam no sentido de assumirem a maior parte das funções envolvidas no setor, estabelecendo diretrizes e perpetuando discursos que reproduzem a perspectiva patriarcal. Entretanto, uma rápida análise da coletânea de filmes a serem expostos na mostra fílmica nos permitem concluir que são predominantemente franceses e estadunidenses, suscitando o questionamento: por onde anda o Cinema Feminista do Terceiro Mundo?

Ainda que deva ser reconhecido o persistente esforço do Cinema Feminista para sobreviver e existir como projeto não apenas cultural, mas sociopolítico, já é tempo de problematizar a preponderância de narradoras brancas, norte-americanas (estadunidenses e canadenses) e europeias, que, muitas vezes, não atentam para seu lugar de fala, e se colocam   como principais porta-vozes da história, da memória e das lutas das mulheres do Terceiro Mundo. Nesse sentido, as concepções acerca do recorte Multicultural do Feminismo de Ella Shohat mostram-se relevantes. Teórica, ativista e professora de Estudos Culturais na Universidade de Nova York, Shohat, autora iraquiana e judia, estabelece que as narrativas feministas mais difundidas são, sobretudo, eurocêntricas, as quais tomam para si a tarefa do empoderamento, assumindo o velho discurso colonialista de salvamento das mulheres fatalmente oprimidas pelas culturas orientais e africanas. Nesse sentido, entende-se que não é conferida, por muitos movimentos feministas do primeiro Mundo, a validade das iniciativas de mulheres do Terceiro Mundo, que, por evidentes diferenças de perspectiva, vivências e situação econômica transversais à raça e classe, muitas vezes, não reivindicam o rótulo do Feminismo, que para muitas dessas mulheres é um movimento branco e eurocêntrico. Vê-se, portanto, que a própria concepção epistemológica do Feminismo tem raízes na cultura branca Ocidental, bem como as narrativas feministas majoritariamente propagadas. Isso dificulta que os discursos, análises, reivindicações e as diárias batalhas das mulheres do Terceiro Mundo sejam de fato tomados como ações feministas, como o são, e acessem possibilidades de serem reproduzidos e levados a público com veracidade.

As estatísticas coletadas por Shohat, em sua produção em parceria com Robert Stam, “Crítica da Imagem Eurocêntrica: Multiculturalismo e representação”, somente reforçam a necessidade de se questionar a discrepante inferioridade numérica no que se refere à circulação de filmes produzidos no Terceiro Mundo, frente àqueles que dominam o mercado de cinema (os hollywoodianos). Não pelo fator quantitativo as produções fílmicas do Terceiro Mundo, dentre elas as feministas, não são amplamente veiculadas, já que, em dados estatísticos, “o cinema do Terceiro Mundo, longe de ser um fenômeno marginal, é responsável pela maior produção cinematográfica do mundo” (SHOHAT, STAM, 2006, p. 60). O que se deve criticar e combater atualmente, segundo Shohat e Stam, é a persistência da Indústria do Cinema do Primeiro Mundo como principal modelo de transmissão cultural, além de controladora dos meios hegemônicos de comunicação. Voltando à questão da produção fílmica feminista do Terceiro Mundo, torna-se necessário combater as estruturas de poder preestabelecidas no que se refere à indústria cinematográfica, bem como questionar o posicionamento dos movimentos e narrativas feministas eurocêntricas, evitando vitimizar em todas as circunstâncias as mulheres centro e sul-americanas, africanas e orientais, reconhecendo seu poder de questionamento,   a força e a legitimidade de suas lutas. Nas palavras de Shohat:

Tome o movimento anticolonialista na Argélia. Como alguém pode não chamá-lo de luta feminista quando as mulheres argelinas estavam lutando pelo empoderamento no interior do movimento anti-colonial? Não poderíamos chamar isso de feminismo somente porque nós utilizamos essa palavra num sentido extremamente limitado e eurocêntrico? Mas essa espécie de subversão anti-patriarcal e, até em alguns momentos, anti-heterossexista no interior das lutas anti-colonialistas, permanecem marginais para o cânone feminista, porque, infelizmente, um tipo de feminismo retém o poder de nomear e de narrativizar. Eu estou argumentando que nós devemos redefinir o que entendemos por feminismo, alargar seus significados para incluir a diversidade das lutas. Não podemos ver as mulheres muçulmanas somente como vítimas. Precisamos compreendê-las também como mulheres que exerceram um certo poder (SHOHAT apud COSTA, 2001, p. 152-153).

No Brasil, apesar de todo o mito da sociedade miscigenada e racialmente democrática, é possível observar como a reprodução de padrões e estereótipos se mantêm. Segundo pesquisa do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a ausência de profissionais negras no cinema brasileiro é uma realidade. Dentre os filmes pesquisados, não existia nenhuma diretora negra; nenhuma das roteiristas era negra; e no elenco dos filmes, apenas 4% do total era composto por atrizes negras. O quadro vai além de uma sub-representação. Consiste, na realidade, numa hegemonia masculina e branca que impõe entraves reais para que seja possível problematizar as estruturas racistas e patriarcais e para que se possa romper com estes paradigmas na construção de  uma nova realidade.

A necessidade de fortalecimento de uma perspectiva feminista num cinema terceiro mundista é central para que também sejamos capazes de recontar e politizar a história dos povos que passaram por processos de colonização. Para além disso, é importante posicionar o protagonismo das mulheres nos movimentos de resistência à dominação estrutural que se impunha e persiste até hoje.

Nesse sentido, torna-se importante visibilizar movimentos sociais que apontam, por meio da luta feminista organizada, um meio de emancipação das mulheres.  Um exemplo disso, é Marcha das Margaridas, que reúne as mulheres trabalhadoras do campo, das florestas e das águas a cada três anos e reivindica maior atenção para a   realidade dessas mulheres. A Marcha homenageia Margarida Alves, sindicalista assassinada em 1983 por um latifundiário que se sentia ameaçado por sua luta pelo direito à terra. Em 2015, a Marcha reuniu 100 mil mulheres de todo o Brasil e fizeram coro na defesa da democracia e contra os retrocessos que vêm se tornando cada vez mais reais diante do Congresso conservador (STREIT, 2015).

Sob tal perspectiva, iniciativas como a da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, que anunciou no último mês de outubro a fundação da primeira sala feminista na Biblioteca Municipal Cora Coralina, provocam entusiasmo diante da perspectiva de constituição de espaços de reflexão, debate e ação, protagonizados por mulheres, sobretudo negras e trabalhadoras, que terão acesso a oficinas, seminários e mostras fílmicas. Em projetos como esse reside a promessa da conquista do protagonismo das mulheres sobre a construção e reprodução de suas próprias histórias e narrativas.

Referências:

COSTA, CLAUDIA DE LIMA. Feminismo Fora do Centro: Entrevista com Ella Shohat. Rev. Estud. Fem. Florianópolis , v. 9, n. 1, p. 147-163, 2001.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

STREIT, Maíra. Marcha das Margarida reúne 100 mil mulheres em apoio a Dilma. 12 ago. 2015. Portal Fórum. Disponível em: http: <//www.revistaforum.com.br/blog/2015/08/marcha-das-margaridas-reune-100-mil-mulheres-em-apoio-a-dilma/>. Acesso em: 05 nov. 2015.

[1] Graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades com Área de Concentração em Relações Internacionais, na Universidade Federal da Bahia.

[2] Graduando do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades com Área de Concentração em Relações Internacionais, na Universidade Federal da Bahia.

Deixe aqui o seu comentario

Todos os campos devem ser preenchidos. Seu e-mail não será publicado.

ACONTECE

ODC Diálogos – 17 de Abril de 2024

No dia 17 de abril (quarta-feira), às 19 horas, acontecerá mais uma edição do ODC Diálogos. Motivado pelo número 100 do Boletim, o encontro tem como tema “Avanços e desafios para a política cultural no Brasil hoje”, e contará com a participação de Albino Rubim e Bernardo Mata Machado, sob mediação da pesquisadora do ODC, […]

CURSOS E OFICINAS

Oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural – Santa Luzia (MG)

O Observatório da Diversidade Cultural, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, e com o patrocínio da Soluções Usiminas, e apoio do SESC Santa Luzia, realiza a oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural. A oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural tem como objetivo a formação de agentes culturais, estudantes, pesquisadores […]

Mais cursos