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Pode o homem branco não falar?

REPRODUÇÃO: NEXO JORNAL

racism concept, black and white hands, Handshake of friendship

Uma reflexão sobre o processo de aprendizado do lugar de fala na cultura acadêmica – no Brasil e no mundo

Sempre me chama a atenção o fato de que em 99.9% das palestras de que participo ou a que assisto, na hora das perguntas, a primeira pessoa a levantar mão e falar tem gênero. Cor. Sexualidade. É homem. Branco. Cisgênero. E olha que no geral “meus ambientes” basicamente relacionam-se ao seu oposto. Mulheres negras, o “outro do outro”, para usar expressão de feministas afro-americanas em crítica a Simone de Beauvoir diante de sua negligência a esse grupo em “O segundo sexo”.

Em 20 anos de academia, muitas histórias para contar. Mas para me basear em uma recente, voltemos à Universidade de Princeton, que, aliás, é um show em termos de supremacia branca masculina, como pude constatar, de formas embora não surpreendentes, bastante desagradáveis.

No simpósio Black Feminisms Across the Americas, estava, ao lado de Mônica Benício e Tianne Pascal, em uma mesa sobre o legado da vereadora Marielle Franco. Duas horas depois de ouvir nossos pontos de vista, repletos de qualidade e emoção, o senhor que nos assistia na última fila decidiu, bem intencionado, interagir. Levantou, pegou o microfone. Dirigiu-se ao professor branco, mediador da mesa e disse: “minha pergunta é para ela”. Bastante inclusivo, ele gostaria de saber mais sobre o feminismo das mulheres indígenas. Ao ver a direção de seu dedo indicador anglo-saxão, descobri que “ela” era eu. A escolhida para ajudá-lo.

De Princeton para a Universidade Federal Fluminense, estamos na reunião do Grupo de Estudos e Pesquisas Cultura Negra no Atlântico. Carolina Dantas, historiadora que deixou seu nome impresso na historiografia ao revelar o político Monteiro Lopes, primeiro deputado negro do Rio de Janeiro (1903), apresenta sua pesquisa. Carol, que foi minha colega de mestrado, faz um longo comentário sobre seu compromisso de uma acadêmica branca na luta contra o racismo. Entre as experiências destacadas pela professora da FioCruz, encontra-se o difícil processo de aprendizado do seu lugar de fala. De uma mulher branca estudiosa da história de sujeitos negros.

Em uma narrativa surpreendente, pois em raras ocasiões no espaço acadêmico (e em todos os outros) vemos pessoas brancas assinalarem sua raça, o rumo daquela tarde mudou. Martha Abreu, coordenadora do grupo, com consagrada trajetória no estudo de relações raciais, perguntou para jovens estudantes negros presentes qual seria, na opinião deles, o papel de pesquisadores brancos na luta antirracista. As questões de Martha e Carolina foram arrematadas pelo meu comentário acerca do protagonismo de acadêmicos negros para que cenas como essas fossem possíveis.

Graças a nós, o rumo do que poderia ter sido mais uma reunião “neutra e objetiva” transformou-se. Mas como nem só de inovações e rupturas faz-se a cultura acadêmica, assistimos à volta do dedo indicador, com mais uma pergunta. “Você conhece um embaixador branco que escreve sobre os negros?” A indagação, que provoca desconforto compartilhado por brancos e negros, faz com que alguém mencione em tom de voz elevado o nome do embaixador: Alberto da Costa e Silva? “Sim. Você o conhece? Já leu seus livros?” Silêncio absoluto na sala.

Lembrei de uma história que marcou o início da minha carreira de professora. Aos 19 anos, dando aulas para adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa. Certo dia, na impulsividade típica da faixa etária que nos unia, perguntei a um dos meninos: “por que você ‘subtraiu’ um pacote de biscoito?”. “Professora, eu preciso de respostas imediatas”.

Vinte e um anos depois, na sala de uma universidade pública federal, deparo com os semblantes de indignação de estudantes negros com o dedo indicador que faz perguntas. O ensinamento do menino que nunca mais vi fez todo sentido. “Você costuma perguntar para todas as pessoas se elas conhecem determinados autores?”

No Brasil, 0,4% das professoras em programas de pós-graduação são mulheres negras. A educação pública precisa de respostas imediatas.

Giovana Xavier é professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil. Ela escreve quinzenalmente às terças-feiras.

 

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