Edênia Ribeiro, 29 anos, mulher, mãe, negra e engajada nas lutas das mulheres e da juventude de Itaúna, (cidade localizada a 80 km de Belo Horizonte). Em entrevista concedida ao ODC, ela conta sobre suas experiências na busca pela dignidade e cidadania. Ao longo de sua vida, trabalhou na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) feminina, na Delegacia da Mulher de sua cidade, além de ter atuado em diversos projetos sociais. Atualmente, coordena o Centro da Juventude de Itaúna, espaço público destinado à realização de atividades culturais e educativas. Entre 2018 e 2019, participou ativamente dos cursos Iniciação à Gestão Cultural, Mapeamento da Diversidade Cultural, além das oficinas Memória e Diversidade Cultural – Modos de Lembrar e Esquecer e O Lúdico e a Diversidade Cultural, todos promovidos pelo Observatório da Diversidade Cultural e oferecidos em Itáuna, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais e patrocínio da Usiminas.
ODC – Ao longo da sua vida, você pôde contar com o apoio de vários projetos sociais e, atualmente, é você quem oferece essa ajuda como coordenadora do Centro da Juventude de Itaúna. É possível afirmar que as mulheres jovens de hoje têm mais engajamento na busca por suas realizações pessoais?
Edênia – Sim, eu vejo que os jovens atualmente têm um acesso maior aos meios de informação, o que permite a eles produzirem conteúdo a partir dos grupos em que estão inseridos. Dessa forma, a juventude – principalmente as mulheres jovens – consegue, mesmo de dentro de um quarto, no canto da cidade, produzir conteúdo direcionado a várias outras mulheres. E isso é muito importante, pois são conteúdos que informam, unem, criam novos conceitos e quebram padrões pregados pela velha mídia.
Para além dessa criação de informação no espaço virtual, existem também os coletivos, que são espaços de construção de pensamentos e ações, de forma conjunta. O Centro da Juventude de Itaúna, por exemplo, é um lugar de ocupação de grupos diversos. No CJ, recebo uma grande demanda de coletivos que são liderados por mulheres jovens, grupos que solicitam o uso do espaço para estudos, rodas de conversas com temas pertinentes, grupos de dança, entre outros.
A juventude em si já tem o poder de manifestar seus pensamentos de várias maneiras, através da arte, da política e das redes sociais. Então, os jovens dominam e vem ocupando com força total. Nós somos a resistência mesmo nos tempos sombrios que nosso país está vivenciando.
ODC – Quais mudanças positivas para as mulheres você percebe em relação à sua época como participante?
Edênia – A mudança positiva que eu vejo é uma maior facilidade de acesso a espaços de decisão que, há um tempo atrás, nos era negado. Os lugares que ocupávamos eram determinados por homens, em sua grande maioria ricos e não negros.
Para atender às necessidades da população feminina é necessário ter mulheres dentro desses espaços de decisão. Mulheres com vivências diversas e que contribuam, em suas decisões, com as demandas do grupo que elas representam. Mulheres que vão servir de referência para outras mulheres. Hoje, com 29 anos, vejo que, ao contrário de como era na minha adolescência, há mulheres ocupando esses locais. Ainda não na quantidade que acredito que deva ser, mas estamos avançando.
ODC – Em sua trajetória, você trabalhou na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) feminina e fez estágio na Delegacia da Mulher. Durante esse período, o que você pôde aprender sobre a condição de vida das mulheres que, como você, moram na periferia?
Edênia – Além da minha identificação direta com os depoimentos das mulheres e suas histórias de vida, aprendi sobre o sistema carcerário. Na Apac, havia mulheres que chegavam de presídios e relatavam os absurdos que aconteciam nesses lugares, como a falta de itens de higiene básico. Havia também mulheres que iam presas grávidas e, um ano após o nascimento do filho, tinham que se separar dele. Outras sofriam com o abandono dos parentes. Mas a Apac é uma associação totalmente diferenciada do sistema penitenciário comum, pois ela oferece um tratamento humanizado tanto com as detentas quanto com os familiares, além de dar oportunidades de trabalhar e concluir os estudos.
Logo após meu período como funcionária na Apac, fui estagiar na extinta Delegacia da Mulher. Lá acompanhei de perto casos de mulheres que sofriam violência doméstica e os fatos que as impediam de abandonar o lar e prosseguir a vida longe do agressor. A dificuldade de mulheres que moravam em bairros distantes para ir até a delegacia denunciar, os horários de atendimento, que eram apenas de segunda a sexta, e o exame de corpo de delito, que era e continua sendo feito em outra cidade. Tudo isso impede o acompanhamento efetivo das vítimas. Na época, infelizmente, cheguei a acompanhar um caso que terminou em feminicídio.
ODC – A partir da sua experiência, quais estratégias você vê como eficazes para romper o ciclo de violência em que estão inseridas as mulheres negras, muitas vezes mães solteiras, e em situação de vulnerabilidade social?
Edênia – Quando a gente fala em romper esses ciclos de violência a primeira questão que me vem à cabeça é a da educação e profissionalização. A maioria das mulheres que vivencia esse ciclo de violência dentro de seus lares permanece por falta de independência financeira. Grupos com alto índice de vulnerabilidade social têm um nível de escolaridade básico. Por isso, é mais difícil que as mulheres da periferia alcancem autonomia financeira para se sustentarem e criarem sozinhas seus filhos.
A falta de informação e o atendimento desumanizado em delegacias ou em canais de denúncia são outros pontos que impendem essas mulheres de romperem os vínculos com o agressor.
ODC – Você conta que sua mãe foi um grande exemplo de força em meio às dificuldades para você e seus irmãos. Em que medida ela te influenciou a ser quem você é hoje?
Edênia – Eu acredito que tem várias maneiras de a gente aprender a ser [forte], e uma delas é através do exemplo. Minha mãe é uma mulher guerreira que passou por várias dificuldades desde criança. Quando ela morava no orfanato, foram idas e vindas em casas de famílias que diziam que queriam adotá-la para cuidar dela, mas na realidade era para o trabalho doméstico.
Então, desde criança, minha mãe foi uma mulher forte, uma menina forte. Quando ela teve meus dois irmãos e eu, já havia passado por várias situações complicadas. Ela é uma mulher muito forte, de um coração enorme. Maior que o mundo. E quero ser igual a ela “quando eu crescer”.
ODC – Você sempre se viu como uma mulher forte, capaz de inspirar outras? Se não, quando e como essa mudança aconteceu?
Edênia – Não, eu não me via como mulher forte até me libertar de um relacionamento que eu vivia, que foi meu casamento. Fui casada por 8 anos. Tive meu primeiro filho, o Yuri, com 21 anos. Hoje ele tem 9, e a Júlia, minha segunda filha, tem 6.
Foi um relacionamento muito complicado. Eu até então não tinha ensino médio, mas consegui concluí-lo através do Enem. Quando entrei para a faculdade pude ter outras visões de mundo saindo da minha bolha. Foi a partir desse momento que eu vi que estava em uma relação totalmente abusiva, que não era saudável para mim. Percebi que as situações que eu passava estando casada não eram normais e, então, resolvi me libertar desse relacionamento.
A partir daí que eu comecei a me ver como eu, Edênia, mulher, sozinha, mãe solo de duas crianças. Foi nessa vivência que eu me descobri como mulher forte e senhora do meu destino. Nesse período, tive uma grande rede de apoio que foi essencial para mim: a minha família e um coletivo feminista do qual fiz parte e que me deu uma visão de mundo diferenciada.
Foi nesse momento de separação, com as crianças pequenas, com a minha entrada na faculdade e a troca de emprego que eu me descobri forte, me descobri mulher. Eu me libertei de vários padrões, principalmente estéticos, que foram pregados para mim a vida toda. Por exemplo, a questão de alisar o cabelo. Passei pela transição capilar, assumi mesmo meus cabelos crespos e comecei a militar no movimento negro. Desde criança sempre fui envolvida no movimento hip-hop, mas apenas como telespectadora, como quem gostava de acompanhar o movimento. Daí comecei a atuar de forma efetiva, a ocupar espaços de fala no hip-hop, a me posicionar enquanto mulher e a produzir eventos e atividades nos movimentos culturais da cidade ligados à essa cultura.
ODC – Sendo produtora cultural atuante no movimento negro, de que forma você acha que a cultura pode ser uma ferramenta para a transformação econômica e social para as mulheres na periferia?
Edênia – A cultura tem um poder muito grande e, ligada à educação, seu poder é maior ainda. Dentro das comunidades existe um ninho muito grande de expressões artísticas, mas as pessoas desses espaços não se reconhecem como artistas, como produtores, DJ´s ou fotógrafos. E isso é muito louco porque são pessoas extremamente talentosas. Quando se trata das mulheres esse reconhecimento é ainda pior. Elas acham que não são merecedoras, que não devem ocupar esses espaços, serem cantoras de rap e produtoras da arte e da cultura a qual elas pertencem. Essas mulheres precisam saber que o talento que possuem pode ser transformado em profissão.
ODC – As mulheres sofrem diversas dificuldades para desempenhar papéis de liderança. Qual você considera a maior barreira que a mulher negra enfrenta para tornar-se uma liderança na própria comunidade onde vive?
Edênia – Além do machismo, do racismo estrutural e do racismo velado, uma das maiores dificuldades que eu, como mulher negra e líder enfrento, são as relações do meu cotidiano. É muito difícil conciliar o meu tempo como mãe, militante, coordenadora do Centro da Juventude e as atividades nas quais atuo como liderança.
ODC – Atualmente, quais são suas metas, seus objetivos? Você tem algum projeto que sonha concretizar?
Edênia – Hoje uma das minhas metas é continuar colhendo frutos do que já plantei e continuar espalhando as sementes desses frutos. Como dizia Marielle Franco ‘sou porque nós somos”. E digo eu que continuarei sendo porque ainda tenho muito o que ser. Tenho muito o que alcançar para fazer as oportunidades, a arte, cultura e educação de qualidade chegarem onde moro. Quero concluir minha graduação em psicologia e atuar como vereadora em minha cidade.
CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO – Boletim 101, nº 01/2024 Cultura Viva: 20 anos de uma política de base comunitária Período para submissão: 13 de março a 23 de junho de 2024 A Revista Boletim Observatório da Diversidade Cultural propõe, para sua 101ª edição, uma reflexão sobre a trajetória de 20 anos do Programa Cultura Viva […]
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