Por Luciana Salles[1]
As coisas acontecem de uma hora pra outra.
Mesmo que demorem a vida inteira para acontecer.
(Norte, de Posada)
No dia em que Helena se revelou para mim eu estava com esses versos na cabeça, rodando em looping, em uma espécie de transe, absorta nas memórias do filho que eu estava deixando ir para dar lugar à minha filha. Como se eu quisesse ter certeza de que ele existiu, de que eu tive aquele filho, enquanto imaginava para onde ele iria quando tudo aquilo ganhasse um desfecho.
Tudo aconteceu “de uma hora para outra”, ainda que desde muito cedo, ali pelos 2 anos, eu já me indagasse sobre o que havia de diferente com aquela criança. Uma fixação com o feminino, com desenhos de mulheres, com dublagem de cantoras, com sereias, com bonecas, com minhas roupas e acessórios. Foi assim durante toda a sua infância. Mas, mesmo com tantas evidências, eu não acreditava que eu tinha uma filha trans. Eu sabia que meu filho estava na sigla, mas não conseguiria precisar em qual das letras ele morava.
Enquanto ele crescia, deixávamos que ele fosse livre para agir como quisesse. Sem reprimi-lo. Porque era tudo muito genuíno e até divertido. A história da minha filha, felizmente, é muito diferente da história de grande parte da população trans, abandonada pelas famílias com 13 anos de idade, em média. Meu filho foi amado e respeitado tanto em casa como no seu ambiente escolar. Sofreu um pouco com a inocência cruel das criancinhas, mas tirava de letra. Era uma criança feliz.
Chegou a adolescência e as coisas começaram a tomar uma forma mais definida. As unhas longas, os batons, os delineadores, as blusas baby look… mas, nada disso continha afronta. Meu filho continuava uma pessoa doce, amável, engraçada. Foi, aos poucos, se preparando e nos preparando, cada vez mais feminino, até que não suportou mais.
Mamãe, você está pronta para saber o meu nome?
Não, eu não estava pronta. Porque eu sabia que quando ele pronunciasse aquele nome eu o perderia para sempre. Mas, ele estava determinado, pois tomou a decisão de transicionar um ano antes de anunciá-la, ainda aos 14 anos de idade. Helena precisava chegar.
A partir de hoje, mamãe, o meu nome de batismo é um nome morto. É assim que chama: nome morto.
As coisas acontecem de uma hora pra outra, mesmo que demorem a vida inteira pra acontecer. Parecia um mantra se repetindo sem parar enquanto eu afundava a cabeça no travesseiro sem forças para me levantar. Eu só conseguia chorar o meu filho. Não tenho dúvidas que, soltar a sua mão, foi a coisa mais difícil que precisei fazer na vida.
As perguntas que eu me fazia eram muitas. Será que vou conseguir amar essa filha como amo meu filho? Será que vou me acostumar com isso? O que faço com as lembranças do filho que eu tive? Onde ele foi parar? Como chorar o luto de alguém que está vivo?
Tempo Rei
Passados três anos da transição, Helena está mais linda e feliz do que nunca. Muito mais fácil do que eu poderia supor, o uso do nome novo e dos pronomes foi algo que se deu naturalmente. Já nem consigo mais me referir a ela como ele, mesmo quando estou falando do passado, como neste texto. Aliás, ela gosta que eu diga “antes da transição” , mas que jamais me refira a ELA como ELE. Mas, se é para falar do passado, nem sempre eu obedeço. Cada dia um novo entendimento. Uma transição de gênero é algo que se estende a toda a família e amigos. Mas, por mais distópico que possa parecer, foi como se tudo tivesse se encaixado entre nós. E o amor que sentimos por ela segue intocado!
Nem tudo são flores. Os números da violência contra a população trans são assustadores. Uma pessoa trans no Brasil tem uma expectativa de vida de apenas 35 anos de idade. E, se for negra, esse número despenca para 28 anos! Já são 15 anos em que nosso país encabeça a lista dos mais violentos do mundo contra essas pessoas. Então, cada vez que ela sai de casa é uma prece para que nenhum mal lhe aconteça. A luta dos coletivos de pessoas trans e familiares em defesa da liberdade é diária. Ninguém quer perder suas crias para a intolerância e violência desmedidas.
Nesse 31 de março, Dia Internacional da Visibilidade Trans, apelo para que as famílias acolham seus filhos incondicionalmente, porque, no final das contas, é isso que faz a diferença. Que as escolas saibam lidar com esse tema. Que a informação encontre mais espaço e menos tabu. Que o amor possa florescer entre essas pessoas sem que isso seja tratado como algo extraordinário. Basta toda a dor de nascer “no corpo errado”. Que essas pessoas possam ser felizes e livres para se expressarem como realmente se sentem!
[1] Luciana Salles é Mestra em Economia, Políticas Culturais e Indústrias Criativas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduada em Planejamento e Gestão Cultural e Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Relações Públicas, ambas pela PUC Minas. Em quase 30 anos dedicados ao mercado da cultura, destacam-se, dentre as suas experiências profissionais mais recentes, a Superintendência de Programação Cultural e Ação Educativa do Circuito Cultural Praça da Liberdade; a coordenação de programação do Sesc Palladium; a Direção Cultural da Fundação Clóvis Salgado / Palácio das Artes; a docência no MBA “Gestão de Empreendimentos Culturais da PUC Minas com a disciplina “Práticas em Curadoria e Programação Cultural”, todas em Belo Horizonte; e a Gerência Nacional de Cultura do Sesc, no Rio de Janeiro. Atualmente é Diretora da Luciana Salles Gestão Cultural.
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