NOT脥CIAS

DNA revela um retrato mais detalhado da popula莽茫o brasileira

Novos resultados de sequenciamento do material gen茅tico de 2.723 pessoas evidenciam uma composi莽茫o menos europeia, com marcas de viol锚ncia

Reprodu莽茫o: Pesquisa Fapesp

Foto: L茅o Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Maria Guimar茫es, da Revista Pesquisa FAPESP

 

N茫o 茅 surpresa para ningu茅m que o povo brasileiro 茅 miscigenado, mas a gen么mica agora traz detalhes ao entendimento de como a hist贸ria envolve viol锚ncia contra ind铆genas e escravizados de origem africana 鈥 especialmente as mulheres 鈥 e quais efeitos essa constitui莽茫o pode ter hoje na sa煤de dessa popula莽茫o. Os resultados do sequenciamento do material gen茅tico de 2.723 pessoas de todas as regi玫es do pa铆s tra莽am um retrato novo do brasileiro e revelam uma quantidade inesperada de variantes gen茅ticas desconhecidas, com potenciais efeitos para doen莽as metab贸licas, c芒ncer e outros aspectos da sa煤de, de acordo com artigo publicado esta semana na revista cient铆fica Science.

鈥溍 muito bonito enxergar no DNA o que j谩 sab铆amos dos livros de hist贸ria鈥, diz a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Bioci锚ncias da Universidade de S茫o Paulo (IB-USP) e idealizadora do projeto DNA do Brasil. Segundo ela, at茅 cerca de 10 anos atr谩s a diversidade gen茅tica amostrada em popula莽玫es humanas era muito baixa, com uma propor莽茫o de cerca de 80% de ascend锚ncia europeia. Isso porque a maior parte dos estudos era feita no hemisf茅rio Norte, onde a miscigena莽茫o 茅 menor. No Brasil, o foco era nas regi玫es Sul e Sudeste, onde h谩 menor presen莽a de ancestralidade africana e ind铆gena. O investimento na amplia莽茫o desse retrato se deve ao apoio do Departamento de Ci锚ncia e Tecnologia (Decit), do Minist茅rio da Sa煤de, e se iniciou no final de 2019 鈥 embora o in铆cio da pandemia de Covid-19, poucos meses depois, tenha adiado as atividades por quase dois anos.

鈥淓sper谩vamos encontrar variantes gen茅ticas novas, mas os resultados foram muito al茅m鈥, afirma a geneticista Kelly Nunes, que se empenhou na an谩lise dos dados como parte de seu est谩gio de p贸s-doutorado no IB-USP no laborat贸rio da geneticista T谩bita H眉nemeier, ao lado de tr锚s outros colegas com quem divide o posto de primeiros autores do artigo. 鈥淒etectamos 78 milh玫es de variantes, um valor muito alto, dos quais quase 9 milh玫es n茫o tinham registro em nenhum outro banco de dados.鈥 Ficou claro que o DNA que comp玫e a popula莽茫o brasileira inclui uma amostragem de popula莽玫es negligenciadas do ponto de vista gen么mico, especialmente africanas e ind铆genas da Am茅rica do Sul. 鈥淓stabelecemos parcerias com colaboradores para conseguir amostras das cinco regi玫es brasileiras, o que permitiu maior acesso 脿 ancestralidade africana e ind铆gena鈥, detalha a pesquisadora.

O artigo define a coloniza莽茫o da Am茅rica como o maior deslocamento populacional na hist贸ria humana. No Brasil, foram cerca de 5 milh玫es de europeus e 5 milh玫es de africanos transplantados para a regi茫o at茅 ent茫o povoada por cerca de 10 milh玫es de ind铆genas que falavam mais de mil idiomas. Esses povos foram dizimados, com um decl铆nio populacional de 83% no interior do pa铆s e 98% no litoral.

Em termos da estrutura gen茅tica da popula莽茫o, os resultados evidenciaram que a linhagem paterna, expressa no cromossomo Y, presente apenas nos homens, 茅 predominantemente (71%) europeia. Enquanto isso a linhagem materna, registrada no DNA das mitoc么ndrias 鈥 parte das c茅lulas transmitida apenas da m茫e para os filhos 鈥, carrega 42% de ancestralidade africana e 35% ind铆gena. 鈥淎 煤nica explica莽茫o s茫o quatro s茅culos de viol锚ncia em diversos sentidos鈥, resume H眉nemeier, uma das coordenadoras do trabalho, que, al茅m da gen茅tica, mergulhou em uma investiga莽茫o dos paralelos hist贸ricos durante a reda莽茫o do artigo. Ela ressalta que n茫o 茅 incomum ouvir de pessoas mais velhas relatos do tipo 鈥渕inha av贸 foi pega no la莽o鈥, sem aten莽茫o ao que isso significa. Em gera莽玫es mais recentes, o caracter铆stico passou a ser o casamento entre ancestralidades parecidas. Para a pesquisadora, os resultados ajudam a derrubar a m铆stica da democracia racial que comp玫e a identidade nacional, j谩 que a miscigena莽茫o, de modo geral, n茫o foi consentida.

鈥淣ossa av贸 茅 ind铆gena, nossa m茫e 茅 africana e nosso pai 茅, majoritariamente, europeu鈥, resume a historiadora Maria Helena Machado, da USP, que n茫o participou do trabalho. Ela 茅 especialista em g锚nero e maternidade na escravid茫o, sistema que atravessou todo o per铆odo colonial e do Imp茅rio. 鈥淎 mulher escravizada ou administrada, ind铆gena ou africana, estava a servi莽o do escravizador, tornando corriqueiros os ass茅dios e estupros em massa.鈥 As mulheres eram, assim, duplamente escravizadas: funcionavam como trabalhadoras e reprodutoras. 鈥淣o corpo da mulher escravizada se deu a coloniza莽茫o鈥, afirma a historiadora. Ela explica que as pol铆ticas coloniais portuguesas e do pa铆s independente, a partir de 1822, foram sempre de est铆mulo 脿 mesti莽agem e ao branqueamento. Um exemplo significativo: Jos茅 Bonif谩cio de Andrada e Silva (1763-1838), como deputado da Assembleia Constituinte em 1823, apresentava propostas para contribuir 脿 forma莽茫o do povo brasileiro por meio do est铆mulo de casamentos entre mulheres afrodescendentes e ind铆genas com homens brancos. Era parte de um projeto 鈥渃ivilizat贸rio鈥 em que a popula莽茫o negra seria integrada 脿 europeia. A continuidade da escravid茫o at茅 1888, por茅m, manteve as mulheres escravizadas vulner谩veis aos homens que detinham o controle de seus corpos. 鈥淭udo isso leva 脿 situa莽茫o que os geneticistas agora descrevem鈥, conclui.

Interessante tamb茅m, e que n茫o seria surpreendente se fosse habitual refletir sobre isso, 茅 a ampla diversidade de etnias africanas. Gente que nunca se encontraria na 脕frica, por viverem em pa铆ses e comunidades distantes, foi posta 脿 for莽a nos mesmos navios negreiros e agrupada nos contextos de trabalho escravizado. A ideia era reunir pessoas de culturas diferentes, que nem falavam a mesma l铆ngua, para minimizar o risco de elas se organizarem para combater seus 鈥渟enhores鈥. O resultado 茅 um am谩lgama de todo um continente, que s贸 se encontra em terras brasileiras. 鈥溍 o pa铆s com mais ancestralidade africana fora da 脕frica鈥, afirma H眉nemeier.

Al茅m do afluxo inicial de portugueses a partir do s茅culo XVI, a diversidade europeia tamb茅m se revela alta, com o grande aporte de imigrantes da Alemanha e da It谩lia nos s茅culos XIX e XX, al茅m de uma amostragem mais esparsa de outros pa铆ses. Um dado curioso foram 10 descendentes de japoneses amostrados em S茫o Paulo, que n茫o apresentaram sinais de miscigena莽茫o 鈥 e assim revelaram uma contribui莽茫o muito restrita e recente para a composi莽茫o populacional do pa铆s.

Medicina personalizada

Cerca de 36 mil entre as quase 9 milh玫es de novas variantes descritas aparentam ter efeitos nocivos e podem estar associadas a doen莽as como c芒ncer, disfun莽玫es metab贸licas ou doen莽as infecciosas (mal谩ria, hepatite, influenza, tuberculose, salmonelose e leishmaniose). 鈥淥 que descobrirmos sobre essas variantes pode vir a ser extrapolado para povos que n茫o foram amostrados, como no continente africano鈥, prop玫e Nunes.

Ao analisar o efeito da sele莽茫o natural sobre o genoma brasileiro depois da miscigena莽茫o, tamb茅m se destacaram genes ligados 脿 fertilidade, ou o n煤mero de filhos gerados, com origem na ancestralidade europeia. 脡 um tra莽o que certamente trouxe benef铆cios durante o processo de coloniza莽茫o, em que os portugueses que aqui se instalaram ampliaram sua presen莽a rapidamente ao longo das gera莽玫es. Al茅m disso, genes de resposta imunol贸gica de origem africana tamb茅m apresentam sinais de sele莽茫o, refletindo o hist贸rico de um amplo card谩pio de agentes patog锚nicos.

Os resultados tamb茅m detectaram pistas gen茅ticas para doen莽as metab贸licas concentradas na ancestralidade ind铆gena, onde parecem estar relacionadas ao contexto atual de dr谩stica mudan莽a nos h谩bitos alimentares, de um modo de vida baseado nos recursos da floresta 脿 abund芒ncia de ultraprocessados. 鈥淧assamos a consumir alimentos industrializados, o que gera um ambiente de sele莽茫o natural para certos genes鈥, explica.

Entender essa composi莽茫o pode ser importante no desenvolvimento da medicina de precis茫o, e vem exatamente da铆 o interesse do Minist茅rio da Sa煤de por financiar o projeto dentro de seu Programa Nacional de Gen么mica e Sa煤de de Precis茫o 鈥 Genomas Brasil. O que j谩 existe de conhecimento sobre genes associados a doen莽as 鈥 e como isso pode contribuir para diagn贸sticos precisos e decis玫es sobre tratamentos 鈥 se baseia em amostragem de popula莽玫es com ancestralidade europeia. A medicina personalizada, portanto, s贸 se dirige a essas pessoas. Um dos coordenadores do estudo 茅 o cardiologista Alexandre da Costa Pereira, do Instituto do Cora莽茫o (Incor) do Hospital das Cl铆nicas da USP, que contribui com vis茫o cl铆nica.

Al茅m do DNA do Brasil, o programa Genomas Brasil abarca outros dois projetos: Genomas Raros, uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, e o Genoma-SUS, coordenado pelo m茅dico Leandro Colli, da Faculdade de Medicina de Ribeir茫o Preto (FMRP) da USP. Em simp贸sio realizado em maio no Ciclo ILP-FAPESP, uma parceria da Funda莽茫o com o Instituto do Legislativo Paulista, Colli ressaltou a import芒ncia de identificar variantes associadas a doen莽as. O Genoma-SUS, que prev锚 terminar em novembro o sequenciamento de 21 mil genomas, incluindo pacientes que passaram pelo Sistema 脷nico de Sa煤de, deve trazer uma contribui莽茫o relevante a esse objetivo. Um complemento financiado pela FAPESP deve ampliar essa amostra com mais 15 mil genomas. 鈥溍 importante ir atr谩s de como aplicar a gen么mica para entender desigualdades sociais e atingir um melhor diagn贸stico de doen莽as gen茅ticas鈥, afirma o bi贸logo Eduardo Tarazona, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador do Instituto Nacional de Ci锚ncia e Tecnologia Ancestralidade gen么mica, doen莽as e bioinform谩tica no Brasil (INCT-AncesGen) e um dos pesquisadores 脿 frente do Genoma-SUS. 鈥淨uanto menos europeia uma pessoa 茅, menos a ci锚ncia e a gen茅tica sabem sobre suas doen莽as.鈥

Um grande desafio foi a pr贸pria an谩lise dos dados, que contou com infraestrutura de computa莽茫o em nuvem cedida pelo Google. 鈥淣o Brasil n茫o havia profissionais qualificados para analisar esse volume de dados鈥, conta Nunes, que afirma ter aprendido muito no processo, assim como outras pessoas que se qualificaram no 芒mbito do projeto.

O grupo de Pereira e H眉nemeier j谩 tem mais cerca de 7 mil genomas sequenciados, ampliando a busca por representatividade. As autoras prometem novos resultados em breve. 鈥淥 Brasil s茫o Brasis鈥, conclui H眉nemeier.

Projeto

Rastreando mudan莽as evolutivas na Am茅rica pr茅 e p贸s-contato usando dados gen么micos de s茅ries temporais (n潞 21/06860-8); Modalidade Jovens Pesquisadores 鈥 Fase 2; Pesquisador respons谩vel T谩bita H眉nemeier (USP); Investimento R$ 1.358.298,83.

Artigo cient铆fico

NUNES, K. et al. Admixture鈥檚 impact on Brazilian population evolution and health. Science. 15 maio 2025.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licen莽a Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Deixe aqui o seu comentario

Todos os campos devem ser preenchidos. Seu e-mail n茫o ser谩 publicado.

ACONTECE

Chamada para publica莽茫o 鈥 Boletim 103, N. 01/205

CHAMADA PARA PUBLICA脟脙O – Boletim 103, n潞 01/2025 Os 20 anos da Conven莽茫o sobre a Prote莽茫o e Promo莽茫o da Diversidade das Express玫es Culturais Per铆odo para submiss茫o: 21 de maio a 27 de julho de 2025   Este ano a Conven莽茫o sobre a Prote莽茫o e Promo莽茫o da Diversidade das Express玫es Culturais promulgada pelos pa铆ses membros da […]

CURSOS E OFICINAS

Gest茫o Cultural para Lideran莽as Comunit谩rias – Online

O Observat贸rio da Diversidade Cultural, por meio da Lei Municipal de Incentivo 脿 Cultura de Belo Horizonte, patroc铆nio do Instituto Unimed, realiza o ciclo de forma莽茫o GEST脙O CULTURAL PARA LIDERAN脟AS COMUNIT脕RIAS. Per铆odo de realiza莽茫o: 10, 17 e 24 de outubro de 2024 Hor谩rio: Encontros online 脿s quintas-feiras, de 19 脿s 21h00 Carga hor谩ria total: 6 […]

Mais cursos