Em debate as políticas de produção e acesso à cultura
com foco na educação e enfrentamento das desigualdades
O trabalhador brasileiro que recebe até cinco salários mínimos por contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) poderá receber o Vale Cultura, se desejar, a partir do segundo semestre deste ano, caso a empresa onde trabalhe esteja inscrita no programa do governo federal. O cartão magnético terá o valor de R$ 50 mensais – 45,00 custeados pelo governo, para compra e consumo de bens culturais em estabelecimentos cadastrados.
Conforme o Programa de Cultura do Trabalhador, a definição dos produtos e serviços a serem adquiridos por meio do benefício ocupa, atualmente, o centro do debate sobre a regulação de uso do Vale Cultura. Críticos da medida afirmam que o projeto demonstra a abstenção do governo em criar uma diretriz cultural, ao financiar iniciativas que não precisam de mais apoio estatal, como celebridades ou marcas conhecidas e divulgadas na mídia convencional. Frente ao questionamento, a autonomia de decisão do trabalhador para compra dos bens e serviços vem sido defendida pela ministra da Cultura Marta Suplicy.
A composição da lista dos produtos gera controvérsias. Ao contrário do que Suplicy havia anunciado inicialmente, o Vale-Cultura não poderá ser usado para pagar TVs por assinatura. A ministra recuou da decisão depois da movimentação cultural mediante a proposta, vista como mecanismo de concentração dos gastos com as assinaturas, em vez de incentivar a ideia principal do projeto: o acesso à produção cultural local. Outro ponto polêmico é a posição de Suplicy contrária à compra de jogos digitais que, para a ministra, não se caracterizam como produtos culturais.
Desigualdade
O professor da UFBA, Paulo Miguez, afirma que o Vale Cultura consiste em importante mecanismo de fomento ao consumo dos bens culturais ofertados pelo mercado. “Considerando que somos um país com níveis baixíssimos de consumo cultural, particularmente nas classes de renda mais baixa, não resta dúvida que o impacto do Vale Cultura deverá ser bastante grande, seja do ponto de vista mais específico do consumo propriamente dito, seja, também, no que diz respeito à dinamização do mercado da cultura como um todo”, afirma.
O consumo cultural no Brasil é da ordem de R$ 44,4 bilhões, segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar – POF/IBGE 2009-2010. Significando expressivo aporte de R$ 7 bilhões, o programa será delineado pelas preferências do trabalhador participante, que “vai demarcar e dinamizar a produção, de forma lucrativa do lado do ofertante e conveniente para o consumidor”, conforme explica o pesquisador do Ipea, Frederico Barbosa.
Ele lembra que, no entanto, a iniciativa reforça desigualdades regionais. “Mais da metade desse consumo é da região Sudeste. O Vale Cultura vai dinamizar todas as regiões, mas não vai contribuir para a redução das iniquidades, pelo menos em uma perspectiva estática”, alerta, uma vez que as empresas tributadas com base no lucro real são as maiores e estão concentradas nas regiões e cidades de maior PIB.
Direitos culturais
Para além da dinamização da economia, Miguez destaca a importância das questões relativas à vida urbana, cujo papel é decisivo no consumo cultural. A concentração de equipamentos culturais e seus horários de funcionamento, infraestrutura de transportes e segurança pública constituem fatores centrais no planejamento de uma política pública eficaz, necessariamente, quanto à dimensão da garantia dos direitos culturais. “O estímulo ao consumo cultural, quando reduzido exclusivamente à sua dimensão econômica, acaba beneficiando apenas àqueles que já têm o hábito de consumir bens culturais que podem, então, com preços subsidiados, consumir mais”, justifica.
Os desafios envolvem a construção de uma política pública abrangente. Para enfrentá-los, Barbosa defende o fortalecimento da diretriz da política em torno do Vale Cultura, que atravessa, na sua avaliação, uma zona de ambiguidades, baseada na escolha conjunta por dinamizar mercados de consumo e permissão para que o trabalhador de menor renda tenha acesso aos bens e serviços culturais. “Enquadra-se no imaginário político que diz terem as lutas pela cidadania um viés de classe. Ao se escolher a ampliação do consumo como estratégia de política cultural, reforçando dinamismos de mercado, também se diz algo sobre a ideia de cultura e de desenvolvimento que ganham força na política cultural”, afirma o pesquisador do Ipea.
Na dimensão multicultural, ele acredita que o Vale Cultura favorece situações de diversidade, ou seja, tem impacto relevante no que se refere à quantidade de bens produzidos e consumidos, “eventualmente portadores dos mais altos valores culturais”. No entanto, o aspecto intercultural, referente às “relações de tolerância, reconhecimento do diferente e possibilidade e troca simbólica se nutrirem e enriquecerem mutuamente, sequer é arranhada pela política de consumo associada ao Vale Cultura”, sustenta o pesquisador do Ipea.
Em outras palavras, o Vale Cultura vai ao encontro das doutrinas do liberalismo econômico que preconizam a primazia da preferência do consumidor; de outro lado, oferece um benefício aos trabalhadores que já têm inserção no mercado de trabalho formal. “Para os demais, que se constituem em mais de 50% do mercado de trabalho, vamos ter que aguardar outros tipos de iniciativa”, pondera o pesquisador. A criação do Vale sinalizaria, dessa forma, importantes contradições com as linhas de força das políticas culturais da última década, especialmente, no que se refere ao foco nas políticas da diversidade cultural e ação política ancorada na participação social nos processos decisórios.
Como explica Barbosa, durante o Governo Lula, as políticas, embora afirmassem a ideia de economia da cultura, enfatizaram a “promoção e inclusão de formas de cultura popular, das periferias, dos excluídos dos circuitos de reconhecimento mais estruturados e institucionalizados no quadro das políticas públicas”. As ações
responderam criticamente às políticas que haviam dado primazia ao mercado por meio de incentivos fiscais, restringindo a diversidade, ao distanciar as decisões alocativas do debate público democrático. “Assim, foram preconizadas reformas na política de financiamento, fortalecimento do Estado e maior participação social nas decisões”, completa.
Regulação
Os impactos do Vale Cultura variam entre os setores: cinema, livros e audiovisual, por exemplo, terão maior renda para empresas e, talvez, segundo Barbosa, para alguns produtores, com políticas públicas de financiamento relativamente consolidadas. “Para outras áreas como a do teatro, dança, música e outros espetáculos vivos é duvidoso que o Vale Cultura venha a significar sustentabilidade econômica. São áreas que continuarão fortemente dependentes do financiamento público direto ou via incentivos fiscais a projetos”, contrapõe.
Por isso, estes segmentos requerem políticas de oferta com recursos diretos ou incentivados, recursos do orçamento ou de gastos tributários indiretos para a produção e criação de valores e não apenas de bens culturais para o consumo. “Não se deve descartar a possibilidade de que venha a ter forte efeito multiplicador do
ponto de vista econômico. Também não se pode duvidar dos impactos potenciais do eventual aumento da produção do audiovisual, do cinema e do livro sobre o conjunto da produção cultural”, relaciona.
Nesse contexto, a atenção conferida ao processo de regulação de uso do Vale, incluindo consultas aos segmentos produtores de bens culturais, deve ser direcionada ainda à avaliação do custo-benefício econômico e cultural da política: “Será necessário o acompanhamento dos impactos e consequências do Vale Cultura nas cadeias produtivas nacionais e internacionais e, também, nos padrões de formação de preços e qualidade dos bens e serviços”. O aprimoramento desta política pública definirá seu alcance equitativo, como ressalta o pesquisador: “Aumento de ingressos e preços dos bens, por exemplo, podem ser constituir em consequências negativas inesperadas do Vale. Essas questões dizem respeito e estendem-se ao tipo e qualidade do bem que será consumido, ao comportamento dos mercados ofertantes de bens e serviços”.
Educação
Uma política cultural abrangente, conforme defendem Barbosa e Miguez, deve incluir o fortalecimento dos orçamentos públicos, ou do desenho de linhas de financiamento para a construção e reforma de equipamentos culturais. “O que indico é a necessidade de formular políticas culturais consistentes de formação de público, ou seja, que se volte ao cidadão, que enfrente as necessidades de educação estética e para a diversidade. Isso significa apontar para um Estado capaz de responder às necessidades e ao seu dever de atuar no âmbito das garantias dos direitos culturais, oferecendo condições para uma formação integral mais consistente”, defende Barbosa.
Para Miguez, a política educacional deve ser priorizada. “É sempre preciso lembrar que a questão do consumo dos bens culturais não se esgota na questão econômico-financeira. Sabemos perfeitamente que antes mesmo que o preço do bem cultural se coloque como uma barreira ao consumo, há a questão do capital cultural dos indivíduos, algo que se forma na família e na escola”, analisa. “Se você não foi educado, em casa ou na escola, para gostar de ler, para apreciar as várias linguagens artísticas, não será a redução no preço do livro ou no ingresso de cinema ou de teatro que levará você a consumir estes bens”, argumenta o professor.
Impacto na cadeia produtiva
• Promessa de campanha de Dilma Rousseff, o Vale Cultura significa a injeção de R$ 11,3 bilhões na cadeia produtiva do setor nos próximos anos, conforme os números divulgados pela ministra da cultura.
• O projeto que visa estimular produção cultural e o empreendedorismo no setor destina-se ao total de 18,8 milhões de trabalhadores; expectativa do Ministério é que grande parte dos trabalhadores participantes receba entre R$ 1.600 e R$1.800 por mês.
• A empresa beneficiária, tributada com base no lucro real e c credenciada no MINC para sua distribuição, terá abatimento no imposto de renda de sua participação de R$ 5 no valor do Vale. Cerca de 337 mil empresas tributadas com base no lucro real, critério do Ministério da Cultura para adesão ao programa, poderão deduzir o valor tributado no Imposto de Renda. Para o segundo semestre, é esperado o investimento de aproximadamente R$ 300 milhões na cadeia produtiva.
• Empresas operadoras serão autorizadas a produzir e comercializar o Vale e empresas recebedoras, habilitadas pela operadora para receber o Vale como pagamento por bens e serviços. Dos R$ 50, total de 10% poderá ser descontado do trabalhador, portanto a empresa paga R$ 45,00 e o trabalhador R$ 50. Dos 90% que ficarão a cargo das empresas até 1% poderá ser deduzido do imposto do imposto de renda. Se os R$ 50 não forem gastos em um mês, poderão ser transferidos para os seguintes, portanto o benefício será acumulativo. O
Ministério da Cultura estima 12 milhões de beneficiados e injeção de R$ 7,2 bilhões ao ano no mercado de bens culturais.
• Trabalhadores que recebem salário superior e vínculo empregatício com empresas beneficiárias poderão solicitar a empresa, mas só terão o valor mensal se esta já tiver atendido a todos os trabalhadores que devem receber o beneficio por lei. Destes poderão ser descontados de 20% a 90% do vale mensal, de acordo com a respectiva faixa salarial.
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