Ines Linke e Louise Ganz
Entende-se por globalização um processo que abrange diferentes regiões do planeta e promove transações em nível internacional em grande escala. Esse processo depende de uma rede de produção, distribuição e consumo que requer a troca através de fronteiras internacionais e territoriais.
Do ponto de vista dos materiais, produtos e serviços, estabelece-se uma interdependência que contribui com a homogeneização das atividades socioculturais e com a polarização econômica.
Poderíamos pensar outros modos de vida? Construímos a imagem de uma cidade a partir do quintal, da casa, das pessoas, do bairro e da proximidade entre eles, onde as relações se estabelecem a partir dos recursos humanos e insumos disponíveis em um lugar específico e se tornam disponíveis e acessíveis para todos a partir de processos de coletivização.
Assim, imaginamos uma cidade onde se você tem um quintal ou conhece um terreno vago nas proximidades e gosta de plantar, comece a produzir hortaliças, frutas ou grãos. Se você tem um espaço em uma laje ou alguns baldes, utilize o sistema de compostagem ou prepare um minhocário com o seu lixo orgânico para produzir adubo. Para produzir mais adubo para a horta, crie uma rede entre seus vizinhos para coletar o lixo orgânico. Todo o quarteirão pode fornecer o lixo para sua produção de adubo, que pode, consequentemente, ser distribuído para outras hortas locais.
Se você tem uma área, crie galinhas e venda ou troque os ovos ou mesmo as galinhas, caso tenha uma produção suficiente para isso. O frango pode ser adquirido pelas salgadeiras do bairro, que atendem os pedidos para festas. No dia de festa, não esqueça de contratar a salgadeira ou o florista que utiliza capins e ervas de áreas baldias para fazer lindos arranjos. A luz e o aquecimento da água são feitos por sistemas de captura de energia solar construídos por vizinhos que conhecem a tecnologia e a maneira construtiva. As cidades têm nascentes soterradas, escondidas ou ainda vivas.
Como cuidar e compartilhar essa água? Podemos criar uma autonomia na produção e na distribuição de alimentos, na produção de produtos como cosméticos e remédios, se começarmos a plantar ervas que são a base para a indústria farmacêutica. Plantar e andar de bicicleta podem ser muito saudáveis. Cuidar do espaço individual e ser responsável pelo espaço coletivo poderia levar a maior autonomia nos sistemas construtivos, nos sistemas energéticos, na coleta de água, na produção de alimento, remédios e cosméticos. A troca de tecnologias pode nos permitir, dentro das cidades e suas margens, maior independência.
O que se propõe aqui não é o projeto para uma nova cidade nem uma cidade do futuro, mas sim uma ativação e ampliação de um sistema de coisas que já existem, que são encontradas em bairros diversos da cidade. Falamos de Belo Horizonte, mas poderíamos generalizar para diversas outras cidades no Brasil. Apenas imaginemos que essa rede de produção, distribuição e consumo local intensifique as responsabilidades individuais, solicite mais participação e transforme os modos de viver e de pensar.
Curiosamente, nossas cidades caminham em direção oposta. Mais dependência das macroinfraestruturas, das rodovias, das logísticas de distribuição, dos agrotóxicos, do emprego assalariado, dos derivados do petróleo, das empresas de energia, das hidrelétricas, da indústria química e farmacêutica, do controle e sistemas de vigilância, enfatizando cada vez mais o desenvolvimentismo e a dependência em todos os setores da vida – saúde, alimentação, transporte, energias e tecnologias.
O dia a dia continua. O cidadão consome, compra e paga as contas de energia elétrica, de água, de saneamento. Continuamos comprando as verduras no sacolão e ingerindo leite encaixotado, sem que saibamos a origem dos produtos e seus componentes. Compramos nossos terrenos, cercamos, cortamos árvores, terraplenamos, fazemos muros de arrimo, palafitas, secamos a nascente d’água, sem tomar conhecimento do espaço em volta. Não nos ocupamos do modo como o vizinho se instala nem temos visão do espaço como um sistema ambiental.
Transporte
Em 2012 e 2013, o grupo Thislandyourland (que trabalha com questões na arte relacionadas com o acesso à terra e suas imagens) realizou dois projetos em Belo Horizonte e no Jardim Canadá (Nova Lima), com a intenção de reconhecer, pensar e intensificar as microeconomias, gerar mais autonomia e disseminar a ideia para abranger uma população cada vez maior. Tais projetos desdobraram-se em dois livros, que são lançados agora: Bicicletas ambiente: economias de quintal e Cozinhas temporárias: pelos quintais do Jardim Canadá.
No projeto Bicicletas ambiente, realizado em Belo Horizonte com recursos do Fundo Municipal de Cultura, o grupo procurou subverter a ordem econômica de caráter global e homogeneizante a partir de uma série de intervenções e ações que usaram duas bicicletas como meio de transporte e como instrumento de pesquisa das microeconomias em todas as regionais da cidade, para a coleta de matérias e como dispositivo para realizar pequenos eventos. Bicicletas comuns foram adaptadas por meio de uma leve estrutura de bambu a elas acoplada e, assim, transformadas em veículos de carga, desdobráveis em ambientes temporários.
Inicialmente, realizamos uma série de roteiros em bairros das nove regionais da cidade para levantar informações sobre as microeconomias locais. Durante os passeios, encontramos diversas instâncias de produção de alimentos, objetos e serviços, como hortas comunitárias, criadores de animais, quintais produtivos, fontes de energias e sistemas construtivos alternativos, nascentes e fontes de água, pequenas áreas verdes e outros.
Essas situações encontradas constituíram a base para um mapa da cidade, composto por pontos de produção e insumos, que poderiam ser combinados de diversas maneiras, para desenvolver diferentes programas usando o veículo-ambiente. Pensamos em circuitos feitos com as bicicletas para coletar o lixo orgânico, produzido cotidianamente em diversas casas, a fim de transformar esses restos em húmus; trocar plantas e fazer mudas; construir sistemas energéticos a partir de materiais residuais; confeccionar sabonetes, cosméticos e remédios a partir de plantas medicinais coletadas em terrenos baldios ou em áreas de cerrado no entorno da cidade; identificar as nascentes d’água urbanas, conhecer seus cuidadores e criar sistemas de uso coletivo da água; coletar roupas velhas e usadas em diversas casas e trabalhar com cortes, dobras, apliques e costuras com o intuito de produzir roupas personalizadas; entre outras possibilidades.
Com as bicicletas estacionadas em margens de rio, terrenos baldios, áreas residuais, calçadas, pátio de igrejas e praças, desdobramos as estruturas de bambu acopladas a ela para montar o ambiente composto por bancada que funciona como área para mostras e execução de trabalhos. Por meio de oficinas abertas ao público criamos conexões, trocas de informação com as populações locais. Nessas situações, concebemos lugares públicos de costura, de produção de arranjos florais com capins, de comidas naturais, ambientes de leitura a partir de biblioteca móvel e a concepção de sistemas construtivos a partir de bambus.
As situações encontradas e as ações criadas insistem na escala humana das bicicletas e dos quintais, nos acessos mais próximos aos alimentos e serviços, e em ações que geram maior autonomia do sistema de produção e logística global. Assim, procuramos rever criticamente os modos de ocupação e produção, estruturação e uso da cidade, criando algumas rotas alternativas de distribuição e consumo, até então inexistentes ou desconsideradas, além de dar visibilidade a indicadores da microeconomia e da sustentabilidade já existentes, de modo espontâneo, em diversos bairros e regionais da cidade.
Alimentação
O segundo livro, Cozinhas temporárias: pelos quintais do Jardim Canadá, foi produzido para registrar o trabalho realizado durante residência artística no Centro de Arte e Tecnologia Ja.Ca, em Nova Lima. O bairro é conhecido por suas terras vermelhas, mineralizadas, ruas alagáveis, plantações de eucaliptos nas divisas, galpões, residências e muita poeira. Propusemos um projeto no qual pretendíamos discutir o grau de autonomia ou dependência de seus moradores aos sistemas econômicos de mercado diante do monopólio cada vez mais intenso dos meios de produção de alimento pelas empresas de agronegócio e indústrias alimentícias, pelas grandes redes de supermercados e pelo sistema financeiro.
Imaginamos inicialmente a total escassez ou ausência de uma produção de alimentos nos quintais do bairro. Porém, durante a realização da pesquisa, fomos surpreendidas pelos quintais, lajes, vasos e latas, frestas, garagens, ferros-velhos, com ervas e outros alimentos. Cada pessoa produz algo em casa ou no trabalho: mamão, cana, limão, chuchu, funcho, capuchinha, boldo, couve, tomate, morango, espinafre, ervas diversas, ovos, galinhas etc.
Fizemos percursos ao longo de várias ruas, visitando casa a casa, quintal a quintal, conversando com moradores e funcionários de empresas para, com o repertório dessas visitas, escolher cinco áreas para realizarmos nossas cozinhas temporárias. Cozinhas temporárias foi um exercício culinário que contou com a colaboração dos moradores no empréstimo dos espaços e com a coleta de produtos nos quintais dos entornos. A regra foi cozinhar apenas com os produtos coletados nos quintais. Os produtos saíram dos espaços particulares e viraram pratos coletivos. Sobretudo, procuramos criar situações que permitissem uma forma de sociabilidade e modos alternativos de ocupar e consumir na cidade.
As ações Bicicletas ambiente e Cozinhas temporárias pretendem afetar a ecologia local engendrando processos e divulgando alternativas, muitas delas já existentes nos locais. Ativa-se uma cidade a partir do corpo e das relações que se estabelecem entre pessoas e quintais, entre privado e público, espaço aberto e fechado, deslocamentos e localidades, agrário e urbano.
Ines Linke e Louise Ganz são artistas do grupo Thislandyourland e realizaram os projetos Cozinhas temporárias e Bicicletas ambiente.
Fonte: Portal Uai
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