No Mato Grosso, índios xavante dançam ao som dos ganzás. O violão serve de base para o coro que repete poucos versos, com o ritmo marcado pelos pilões que trituram o cipó sagrado do daime, em Lumiar. Fiéis católicos cantam em romaria na Bahia. Tambores batucam para Oxum, em Olinda. As cenas — que documentam muitas fés, muitos sons, um país — são de “Híbridos: os espíritos do Brasil”, filme dos franceses Priscilla Telmon e Vincent Moon que estreia no próximo dia 15 no Rio e em São Paulo.
Antes disso, os cariocas terão acesso ao material de pesquisa obtido ao longo de dois anos — com o registro de mais de 60 rituais religiosos espalhados pelo território brasileiro. Os diretores, ao lado do músico Cadu Tenório, fazem nesta quinta-feira show na Audio Rebel, no qual essas imagens serão montadas ao vivo, com intervenções eletrônicas e de outros instrumentos.
— O projeto foi longo, durou cerca de quatro anos (depois da pesquisa, foram quase dois anos de edição) — explica Moon, que ficou famoso por vídeos musicais no site La Blogothèque, com artistas como R.EM. e Arcade Fire. — O esquema de produção de “Híbridos” foi totalmente independente. Dessa maneira, pudemos guardar uma liberdade criativa imensa, até para criar vários formatos para o projeto, como o site (http://hibridos.cc) e o show.
O documentário se desenrola sem narração ou legendas que expliquem como funciona cada ritual mostrado ali — a informação aparece apenas nos créditos finais. As imagens exploram a força das cenas de penitência e transe e a plasticidade dos símbolos e movimentos sagrados — com a música como guia.
— É um projeto de pesquisa sobre a espiritualidade, mas também sobre a imagem — define Moon. — Não queremos dizer algo diretamente. Há uma narração sutil, que tem a ver com a natureza, com a relação com o tempo. Porque na espiritualidade a relação com o tempo muda. Acreditamos num tempo mais circular, no qual as coisas estão sempre voltando, com uma sutil diferença a cada vez. Por isso esse círculo que vai da natureza à natureza. Por isso o filme começa com os índios e termina com os índios.
Mais que um simples registro etnográfico de tradições religiosas, os diretores defendem que o filme é um documento de algo vivo, em movimento. Sujeito ao processo de mistura e reinvenção sugerido no título “Híbridos” — como o ritual do umbandaime, que eles registram. Essa característica do Brasil, na visão de Moon e Priscilla, tem um papel civilizatório para o mundo contemporâneo:
— O Brasil tem uma importância enorme nesse momento de crise mundial — diz Priscilla. — Não há outro país assim, com esse desejo de experimentar outras realidades, experimentar a magia do mundo. Na Europa, você não tem essa diversidade para traçar um caminho que é bom para você. Aqui, você pode ser católico e ter uma cura com um pajé.
Moon avança na ideia de ter no universo do filme uma espécie de antídoto para a crise do país e do mundo:
— Mais que ecológica ou política, a grande crise hoje é a da consciência, que vem também da espiritualidade. É muito difícil fazer projetos como esse hoje em dia. O mundo está muito pautado pela política, mas não pela poética. Mas a poética é política.
As dificuldades do projeto tiveram a ver com sua viabilidade econômica. Moon conta que a abertura por parte dos fiéis e sacerdotes dos rituais foi total.
— As pessoas estavam entendendo que aquilo era algo totalmente alternativo, independente — diz Moon. — Não era pra um canal de televisão, era pra eles (o material filmado foi entregue aos personagens, para que usem como quiserem).
O transe — mostrado em cerimônias espíritas, evangélicas ou tântricas — é o núcleo do documentário.
— O transe é uma maneira de pesquisar quem somos, o que podemos ser, como abrir a consciência pra algo superior. Melhora nossa relação com a realidade. Na Europa, onde você vai encontra transe? Em raves? Aqui é maior. O Brasil é um grande país em transe.
Fonte: site do jornal O Globo.
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