Foto: Elisa Mendes/Divulgação
Por Carlo Marcolino
O ator Luis Lobianco, 36 anos, é um homem cis gay, ou seja, é homossexual, mas em harmonia com o gênero que nasceu. Aceita o seu corpo de homem e não pretende mudá-lo. Em cartaz com o monólogo Gisberta, no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, foi recentemente alvo de ataques de um grupo de transexuais. O motivo? A sua condição de cisgênero não o autorizaria, segundo o grupo de ativistas, a encenar a história real da trans brasileira torturada e morta em Portugal. De acordo com a lógica dos militantes, um personagem trans só poderia ser vivido por um ator ou uma atriz trans.
O mesmo ocorreu quando a peça foi encenada no Centro Cultural Banco do Brasil em Belo Horizonte. Um grupo de transexuais discursava na Praça da Liberdade, onde o teatro se localizava, avisando a quem entrava no local que a peça seria um atentado a vários direitos dos transexuais. Ao final de uma das apresentações, na hora dos aplausos, alguns transexuais presentes na plateia tiraram a roupa. Outros se postaram na saída do teatro e falavam ao pé do ouvido de cada espectador que se retirava: “Eu sou a verdadeira Gisberta”.
Na capital mineira, não houve registro de nenhum protesto mais violento, mas, no Rio de Janeiro, o ator foi impedido de agradecer ao público no término do espetáculo. Uma gritaria dos manifestantes impediu a sua fala final. Ouviram-se xingamentos constrangedores tanto para o ator, quanto para a plateia. Ao final, todos saíram perdendo: aqueles que lutavam por uma causa justa, o ator que teve o seu trabalho atacado e, principalmente, as artes cênicas, sujeitas agora a mais um tipo de patrulhamento. Um patrulhamento que, no caso dos trans, seria muito mais lucrativo se se transformasse em uma forma de parceria. Em vez de se atacar o ator pela sua interpretação, a peça poderia ser vista como uma aliada da causa da comunidade trans: a denúncia da violência por ela sofrida é uma forma de acordar a sociedade para o problema, o que, certamente, refletirá, inclusive, na própria aceitação do trans no mercado de trabalho, seja em qual área profissional for.
Não se pode negar que essa luta pela visibilidade é nobre e justa. Os transexuais devem buscar mais representatividade e oportunidades de trabalho, pois a sociedade preconceituosa está aí, a olhos vistos. Todavia, não é hora de se incentivar mais um ataque às artes, tão comuns atualmente no sombrio cenário brasileiro. Quando um ativista trans clama pela exclusividade do direito de somente um trans poder representar seu semelhante, ele acaba por fechar, para si mesmo, inúmeras outras portas. Por essa lógica, somente um trans poderá fazer um papel de trans e somente um cis poderá representar um cis. E, nesse contexto, onde ficaria a multiplicidade inerente ao trabalho do ator, que hoje pode ser um judeu, amanhã um homossexual, na próxima temporada teatral um cafetão e, ao mesmo tempo, nas telas de cinema, um padre? O versátil Tony Ramos, querido ator brasileiro, já foi mocinho, bandido, brasileiro, indiano, paulista e carioca ao longo dos seus mais de quarenta anos de carreira. Por que negar esse mesmo direito a Luis Lobianco ou a qualquer outro ator do nosso país?
Em tempos de ânimos exaltados, seria prudente invocarmos o diálogo e a razoabilidade para que a arte brasileira, a principal interessada, não sofra mais essa baixa. Intolerância não pode ser combatida com intolerância. Quando esse mesmo fato ocorreu em Belo Horizonte, pude presenciar que o manifesto dos trans, ao invés de ganhar adeptos, acabava por afastar possíveis aliados. Era uma luta nobre, que se valia de armas baixas. Afinal, em cena havia um ator que se desdobrava para representar uma pessoa cuja identidade era muito diferente da sua. E não é essa a grande graça do trabalho do ator? Se se analisar o Oscar dado aos melhores atores ao longo dos anos, percebe-se que a entrega ao papel, de corpo e alma, esse “colocar-se no lugar do outro”, é o fator decisivo para a conquista do prêmio. Em 2006, a atriz heterossexual cis Felicity Huffman ganhou o Golden Globe Award de melhor interpretação pelo aclamado filme Transamerica, no qual viveu “Bree Osborne”, uma mulher trans. Por esse trabalho, também foi indicada ao Oscar de melhor atriz. No Brasil de 2018, Felicitty Huffman seria execrada em cena, como ocorreu com Luis Lobianco.
Não é hora de se criar mais um racha na sociedade brasileira, sobretudo nas artes, que ainda é o principal território da liberdade. A arte pode dar voz aos oprimidos, pode servir de arma para combater a discriminação, denunciando desigualdades. Não deve ser usada como veículo para a intolerância ou para o radicalismo ideológico, cada vez maior no Brasil. Sejamos solidários à inclusão das trans no mercado de trabalho, seja nas artes cênicas ou não. Mas lutemos com as boas armas, priorizando a abertura para o diálogo e o combate irrestrito à censura. Afinal, segundo o velho dito popular, as palavras convencem, mas os exemplos arrastam.
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Excelente texto! Abordagem clara e completa de um tema complexo e atual.