“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele”: João, capítulo 1, versículos 1 a 3. Na bela tradução do Gênese, por Haroldo de Campos: “No começar Deus criando: o fogoágua / e a terra era lodo torvo / e a treva sobre o rosto do abismo / e o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água / E Deus disse seja luz / e foi luz”.
Indiferente à discussão teológica ou à ligação destes extratos da bíblia a algumas religiões e Igrejas específicas, importa perceber a força da palavra, do verbo, da narrativa na criação do universo em muitas culturas. Afinal, nos constituímos e o mundo cotidiano, ordinário, ao redor, por meio de narrações: quando falamos (e silenciamos) também gestamos nossa “terra e céu-fogoágua”.
As narrativas são dispositivos e estratégias ao nosso dispor para organizar histórias e dar sentidos, sejam quais forem. Vivemos desde sempre em um mundo povoado destes discursos. Há aqueles de pequeno alcance, mas também os que possuem grandes pretensões, universais, meta-discursos. Há desde os poemas épicos das antigas culturas aos roteiros de videogames jogados no ciberespaço.
Um destes chama-se Faveladogame, recém-chegado ao Brasil, onde é ambientado em uma favela do Rio de Janeiro. O usuário é chamado a se tornar um favelado – o que poderia ser uma instigante experiência com a alteridade para os jovens classe média e alta que vivem fechados em seus condomínios-prisões!
Mas não se trata de adentrar, por meio da narrativa do game, nas vielas de um morro carioca para ver como vive o trabalhador, o garoto que rala na escola e nos biscates, a dona de casa fazendo mágica na hora do almoço para multiplicar a ceia.
Nada disso! O site do jogo (www.faveladogame.com.br) logo entrega seu pressuposto: “torne-se um favelado, grátis e sem risco”; “seja você o rei dos favelados”; “funde sua própria gangue”. Quando vamos atrás de mais informações, descobrimos que o objetivo é levar seu avatar à riqueza, a ponto de comprar o Maracanã! Isso pode ser feito pedindo esmola, tocando um instrumento musical, catando latas.
Mas, adverte os responsáveis pelo jogo, o faveladogame não trata da realidade fielmente. O que ele quer mesmo é mostrar para os jovens de forma “satírica”, “lúdica”, “nem sempre politicamente correta”, o problema dos meninos de rua e das diferenças sociais no Brasil. Que genial inversão de valores: o estereótipo do favelado vira um recurso para denunciar esse mesmo tom pejorativo com o qual os pobres do país são vistos.
Dia desses (parece já há tanto tempo!) assistimos pelas mídias eletrônicas a subida dos morros cariocas pelas forças policiais e militares. Por um momento, pareceu mais uma etapa do faveladogame que o Brasil todo estava jogando simultaneamente: era o momento em que os reis dos favelados caiam do trono.
E nessa narrativa midiática mais uma vez perdemos a oportunidade de fazermos a relação de nós mesmos como os outros, e não apenas com os outros. Como o jogo, preferimos não correr risco do que trazer luz sobre nossos preconceitos do tempo de nossa gênese.
*Alexandre Barbalho é Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e professor dos PPgs em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação da UFC onde pesquisa sobre políticas culturais e de comunicação e sobre cultura das minorias. Autor e organizador de inúmeros livros entre os quais: Relações entre Estado e cultura no Brasil (1998); Comunicação e cultura das minorias (organizado junto com Raquel Paiva – 2005); Políticas culturais no Brasil (organizado junto com Albino Rubim – 2007) e Brasil, brasis: identidades cultura e mídia (2008).
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