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Um africano, o futebol e o Brasil

O Reino da Suazilândia, uma das últimas monarquias em África, é um pequenino país montanhoso na região Austral do continente, encravado entre Moçambique e a África do Sul. Em princípios de 1983, vindo de Maputo, capital de Moçambique, cruzei de carro a fronteira em direção a Mbabane, capital do reino suazi. Logo após atravessar o posto de fronteira, parei num pequeno armazém, uma biboca de beira de estrada. Pedi um refrigerante. Do lado de dentro do balcão apenas um velho suazi que mal me olhou, entretido que estava em esconder-se do calor. Quando retirei do bolso o dinheiro para pagar a despesa, veio junto o passaporte brasileiro. Verde-escuro, o documento chamou a atenção do velho, acostumado que estava ao azul dos passaportes moçambicanos. Em inglês, língua oficial do país, perguntou-me de onde eu era.

– Do Brasil, respondi-lhe.

Imediatamente, o velho levantou-se, veio em minha direção, tomou minha mão e sorrindo começou a gritar:

– Brasil! Brasil! Pelé! Pelé!

Então, puxou um banco, convidou-me a sentar com ele e contou-me, visivelmente emocionado, que vira o Santos derrotar o Benfica por 5 x 2, com uma exibição de gala de Pelé, que marcou 3 gols, na final do Mundial Interclubes, em 1962, em Lisboa. Encantara-se, desde então, pelo Brasil. Claro, por conta de Pelé, do futebol.
Não quis receber pelo refrigerante. Ficava por conta de Pelé. E arrematou, na despedida:

– Pelé, sim, este é um verdadeiro rei.

Confesso que, ainda que surpreso com a reação do velho suazi, não cheguei a me dar conta do significado do ocorrido. Segui viagem.

Só muitos anos depois, já de volta ao Brasil, após os onze longos anos que passei em Moçambique, a ficha caiu. Apaixonado por futebol, torcedor doente do Esporte Clube Bahia (meu tricolor, não posso deixar de lembrar, foi campeão da Taça Brasil de 1959 ganhando, na final, justamente, do Santos de Pelé), jamais parara para pensar sobre o futebol. Ir à Fonte Nova (o estádio projetado pelo arquiteto baiano Diógenes Rebouças, inaugurado em 1951 e que já está sendo demolido graças à insensibilidade dos governantes, mais interessados na Copa de 2014 do que na preservação de um dos mais importantes marcos da arquitetura moderna da Bahia), gritar “baêa, baêa, baêa” em meio à torcida tricolor, bater um baba de rua ou na quadra do colégio, era mais que suficiente, dispensava-me de pensar, de refletir sobre o futebol.

Sim, pensar sobre futebol. Compreender que sermos o país do futebol é algo que está acima das mazelas e desmandos que campeiam para além das arquibancadas e das quatro linhas do gramado. É algo que mereceria o cuidado indispensável a qualquer patrimônio cultural mas que, desgraçadamente, não acontece.

E foi exatamente isso que o velho suazi me ensinou: ver o futebol como expressão cultural, como o gesto mais grandioso do povo brasileiro para o mundo. Não fora Pelé, o futebol, e jamais o Brasil ocuparia lugar no afeto daquele homem.

P.S. Uma leitura indispensável para quem queira compreender o lugar do futebol na formação sócio-cultural brasileira: Veneno remédio: o futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008), de José Miguel Wisnik. Mais que um livro, um gol de placa.

*Paulo Miguez é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (1979), mestre em Administração (UFBA, 1995) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA, 2002). Atualmente é Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA) e pesquisador do CULT – Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (UFBA).

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