Por Fayga Moreira
Me sento diante de uma banca elegante. Lembro dos óculos charmosos, do sorriso, do olhar inquisidor e do olhar cúmplice. Me lembro do livro do Foucault, que um deles lia. Comecei a falar da minha trajetória cheia de vazios, rasuras, buracos. Citei Deleuze e Guattari. Mencionei os decoloniais, de Catherine Walsh a Santiago Castro-Gómez, passando por Quijano e Mignolo. Pedi socorro a Gloria Anzaldúa. Me ajuda a costurar as fissuras do meu currículo lattes? Ancorada nela, justifiquei minha escrita como forma de resistência, de sobrevivência, de grito desesperado. Estava ávida para contar minha trajetória e demonstrar racionalmente o quão didática ela é para o aprendizado do pessoal como político. Pensei em dar um pulinho em Silvia Federici, mas achei que poderia soar estridente demais. Contei como uma garota que nasceu em Itapetinga, cidade do Sudoeste da Bahia, viu sua vida ser transformada pelo tal “mundo acadêmico”. Na verdade, pelo poder que há no saber. Os conceitos me desterritorializaram tantas vezes, formulei, mas tornei a me reinventar. Com Kopenawa, com Conceição Evaristo, com Nego Bispo, com Silvia Federici e bell hooks. Aliás, Kopenawa me abalou tão profundamente que quase me afundei na “douta ignorância” proposta por Nicolau de Cusa. Falei da minha graduação, do mestrado, das experiências profissionais e da docência. Contei que meu primeiro filho entrou comigo no doutorado com 2 anos e saiu com 7 anos. Respirei fundo, talvez um pouco reticente. Como dizer que comecei o pós-doutorado com dois filhos e saí com três? Por que fiquei constrangida com isso, essa era a pergunta correta. O motivo: li no olhar de uma professora universitária uma indagação: por que tantos filhos, afinal? E eu responderia: porque eu tenho um corpo passível de gestar. Se o mesmo descuido e a mesma impulsividade partisse de um homem, quem sabe, não traria tais consequências. E, mesmo se trouxesse, ele teria passabilidade para seguir sua pomposa trajetória acadêmica sem tantos abismos. Me senti culpada por pensar nos meus filhos como “um descuido”, logo eu, uma mãe tão cuidadosa. Mas ela logo me contestaria: também tenho um corpo de mulher e não tive filhos, por isso sou uma intelectual tão consagrada. Ajeitei a postura e voltei do meu devaneio. Terminei a arguição contando como foi doloroso. Não o parto, nem a apojadura, nem o puerpério, mas o esforço para manter a produtividade exigida pelo CNPq, pela Capes, pela produção de conhecimento institucionalizada, quando se tem filhos. Quando se está produzindo leite materno ou preparando a comida dos seus outros filhos, a meritocracia acadêmica fica tão antipática, tão antiquada, tão disfuncional. Na mesma proporção, desejamos como nunca o que nos falta. Tempo. Tempo para zombar da meritocracia sendo produtiva. Ficamos sedentas por produtividade. Parece um horror, mas acontece. Não quero tempo para descansar, mas para trabalhar, para escrever, para ler Foucault e parecer esnobe citando a microfísica do poder. Quem tem o seu garantido não pode imaginar o que é uma mãe (autônoma, que não é herdeira e não tem rede de apoio, tampouco dinheiro para pagar por uma rede de apoio) tentando sobreviver ao capitalismo neoliberal produtivista meritocrático empreendedor. Esse que corroi os pactos coletivos e considera idealista demais essa história de que a aldeia inteira precisa se responsabilizar pelos cuidados com as crianças. Como a humanidade pretende seguir adiante desdenhando tanto das mães? Buchi Emecheta, lá da Nigéria, sussurrou no meu ouvido: as mães são humilhadas pelo patriarcado e daqui não consigo enxergar salvação. O patriarcado, esse mesmo, que dá uma licença paternidade de 5 dias para o pai e, assim, o autoriza a enxergar na mãe uma pessoa mais habilidosa para trocar fraldas, dar colo, ninar, acolher, ficar sem dormir, sem trabalhar, servir, cuidar, amparar, se doar, se preocupar, amar (incondicionalmente, espera-se). Até sucumbir. Quando terminei toda essa elucubração dentro e fora da minha cabeça, uma única pergunta me foi feita pela banca. Por um homem, professor universitário, com cara de intelectual: me conta mais sobre essa “autoetnografia” que resultou em seu livro sobre maternidade. Eu não esperava por aquela pergunta, que ingênua que fui pensando em retrospectiva. Me preparei para todas, para defender minha trajetória acadêmica como digna de assumir um assento nesse espaço tão cheio de poder que é o da Universidade. Não de qualquer faculdade, de uma Universidade com U maiúsculo, como está no imaginário social. Saber e poder, Foucault é realmente um gênio. Nesse momento da cena, justamente nesse instante, Leda[1] me abraçou e me disse: você não teve a coragem de fugir e, agora, não terá como traçar linhas de fuga. Ficará, portanto, aprisionada na etiqueta de mãe, estampada em sua testa, tirando de você sua autonomia, sua produtividade, atrapalhando sua meritocracia. Não, Leda não seria tão cruel. Ela só se apoderou de mim e disse: a escrita. É nela que você vai encontrar sua linha de fuga. Simbólica, mas potente. Não há prisão que resista a uma escrita insurgente. Escreva, mesmo que a mesa esteja cheia de restos de comida. Mesmo que a pia esteja transbordando de louças sujas. Ainda que todos os brinquedos estejam espalhados pela sala, ainda que o almoço não seja o mais saudável, escreva. Escreva, apesar do patriarcado. Quase citei Carolina Maria de Jesus, que escrevia mesmo com fome, mas não fui tão imprudente. A ela, só agradeço a abertura de caminhos. A Conceição, a escrevivência. A Elena, a angústia diante de uma personagem que tem coragem. A petulância de não se submeter ao socialmente esperado para uma mãe. Esperado não, ao imposto para as mães. Por mais que tenhamos vergonha, lá no cantinho do inconsciente tem uma Leda que acessamos quando pensamos em simplesmente desistir. Ou melhor, desinvestir nosso tempo, deixar de dedicar esse bem precioso, a uma função tão menosprezada, tão aviltada, tão considerada insignificante: a de cuidar. Elena Ferrante criou um arquétipo de mãe subversiva: aquela que ousa passar alguns anos cuidando apenas da própria vida e da própria carreira. Louca, perturbada, desequilibrada: todas nós, mães perdidas, olhamos para Leda assim, com certo desprezo. E ela nos devolve: onde você vai colocar tantos incômodos, tantas injustiças, tanta falta de liberdade, de tempo, de autocuidado? Elena Ferrante, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Gloria Anzaldúa, bell hooks, Virginia Woolf, eu e tantas outras escolhemos depositar na escrita nossa possibilidade de voar. Com Anzaldúa, sigo: “se você não se encontra no labirinto em que (nós) estamos, é muito difícil lhe explicar as horas do dia que não possuímos. Estas horas que não possuímos são as horas que se traduzem em estratégias de sobrevivência e dinheiro. E quando uma dessas horas é tirada, isto significa não uma hora em que não iremos deitar e olhar para o teto, nem uma hora em que não conversaremos com um amigo. Para mim isto significa um pedaço de pão”. No meu caso, significa, também, uma fatia considerável do meu lattes, que se impõe como um muro entre mim e a vida acadêmica. Aquela torre alta, inalcançável, onde depositei a garantia do pão dos meus meninos.
[1] Personagem do livro “A Filha Perdida”, da escritora Elena Ferrante. Traduzido para o português em 2017 e adaptado para o cinema em 2021.
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