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Precisamos, sim, falar sobre Kamala Harris – Coluna Fayga Moreira 30/07/2024

Interseccionalidade e geopolítica

Por Fayga Moreira

Foto: Instagram @kamalaharris

Diante da disputa eleitoral nos EUA, tenho visto memes circulando nas redes, especialmente entre pessoas e grupos de um espectro político mais progressista, que questionam a importância de olharmos com atenção o que acontece por lá. Alguns deles são jocosos, outros mais irônicos e, ainda, têm aqueles que adotam um tom mais sério e chamam a atenção para o fato de que não podemos desvirtuar o foco nas nossas eleições municipais nos preocupando com problemas alheios.

Gosto de acompanhar os memes por dois motivos: eles sintetizam reflexões profundas e complexas do debate público e viralizam facilmente, nesse momento histórico em que a política é impactada de maneira contundente pela realidade implacável da comunicação via redes sociais. Os memes podem ser comparados com o que as charges representavam em um mundo analógico, mas com a possibilidade de disparo em massa e compartilhamentos em grande escala.

Mas o que isso tudo tem a ver com interseccionalidade, geopolítica, o pleito estadunidense e nosso panorama político? Vou tentar me deter em dois pontos que me parecem fundamentais nessa análise. O primeiro deles, chama a atenção para o fato de que devíamos nos preocupar com nossas eleições municipais e não com a disputa nos EUA. A intenção me parece boa: alertar a população para a importância da gestão dos municípios, afinal é nas cidades que, de fato, nossas vidas acontecem. Ocorre que, ao dicotomizar ou hierarquizar tais eleições, perde-se de vista que, de um ponto de vista geopolítico, o resultado nos EUA também pode impactar nosso dia-a-dia. Tanto quanto as eleições
municipais, estaduais e federais do nosso país. Tanto quanto o processo eleitoral na Venezuela, a guerra na Ucrânia, o massacre do povo palestino. Cada uma dessas disputas gera consequências em um mundo hiperconectado não só economicamente, mas também pelas crises migratórias e pelas mudanças climáticas. A Terra é uma só, vale lembrar.

Contudo, a questão que mais acende um alerta está sintetizada neste meme (que já é antigo, mas sempre volta a circular). Desconheço a autoria, mas certamente foi criado por alguém que ignora o conceito de interseccionalidade. Não podemos nos esquecer que é comum figuras públicas se referirem às lutas identitárias como pouco relevantes ou secundárias para a política institucional.

O que temos nesta imagem retrata isso. Na parte superior, republicanos (conservadores) lançando bombas, ou seja, promovendo e subsidiando guerras em várias regiões. Abaixo, os democratas (progressistas), com a mesma política bélica, mas com estampas referentes aos movimentos lgbtqia+, antirracista e feminista colados no avião militar.

Fato é que os EUA lucram bilhões com a indústria armamentista e é bem pouco provável que isso vá mudar com uma eleição no poder executivo. Fato é que essa realidade é absolutamente repudiável. Fato é que o mundo todo precisa ficar atento a esse poderio capaz de devastar povos e territórios, assim como o da Rússia, Israel, Irã, China e Coréia do Norte.

É um fato inegável. Mas, outra coisa, é o perigo simbólico e semiótico que esse meme acaba referendando: o de que tanto faz se Trump for eleito ou Kamala Harris, afinal o que importa é apenas acabar com as guerras e com o poderio imperialista e econômico dos Estados Unidos. Um papo que remete a tensões intelectuais e debates políticos que parecem um tanto arcaicos nos dias de hoje. Por que? Imaginem uma distopia. Um mundo idílico em que nenhum país mais promove guerras, genocídios, massacres. Tudo está em paz, os senhores da guerra descansam em suas casas de praia enquanto são servidos por seus subalternos e suas mulheres tomam conta das crianças. As fronteiras estão completamente protegidas e nenhum imigrante poderá entrar em busca de melhores condições de vida, eles que se resolvam em seus países, quem mandou escolher um ditador ou um político que acaba com as leis de proteção aos mais vulneráveis. Os homossexuais que lidem com a violência e discriminação. A população negra ou indígena, latina ou árabe, que lidem com a segregação imposta por seus governantes. As crianças que lidem com os abusos sexuais dentro e fora de casa.

Nesse mundo, nenhuma bomba é lançada, mas o feminicídio, o machismo, a xenofobia, a lgbtfobia e a intolerância religiosa seguem matando. Patricia Hill Colins e Sirma Bilge, em 2016, lançaram um livro categórico sobre o debate interseccional. Elas chamam a atenção para o fato de que “as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas”.

Complexidade. Talvez seja esse o termo mais imprescindível nesse debate. Afinal, se estivermos buscando, de fato, defender uma vida plena, digna e com igualdade de condições para todos, precisamos, é evidente, levantar bandeiras e criar memes contra as guerras e contra a desigualdade social, que levam a humanidade ao dado lamentável de, aproximadamente, 2,33 bilhões de pessoas enfrentando a fome ou a desnutrição no mundo (ONU, 2023) e mais de 117 milhões de refugiados, deslocados forçosamente por guerras, extremos climáticos e falta de condições de sobrevivência (ACNUR, 2023).

Todavia, não basta o cessar fogo e uma distribuição minimamente igualitária da renda, se não enfrentarmos outras violências e violações simultaneamente. Esse é o propósito da interseccionalidade enquanto ferramenta política e analítica. Em um mundo em que a pluralidade cultural é um fato, também não podemos fechar os olhos para a falta absoluta de equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, para a pouca importância dada à economia do cuidado e aos direitos reprodutivos das mulheres, para a xenofobia contra latinos, árabes, asiáticos, para a discriminação racial, religiosa e de gênero. Por isso, precisamos, sim, falar de Kamala Harris e do simbolismo que ela representa para as mulheres, mulheres negras e imigrantes de todos os países. Ainda que ela não consiga cessar de uma vez por todas com as guerras.

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1 Comentário para “Precisamos, sim, falar sobre Kamala Harris – Coluna Fayga Moreira 30/07/2024”

  1. Avatar James Gondim disse:

    Muito apropriado o texto, e aborda com clareza a intersecção e influência deste mundo global …

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