Por Fayga Moreira*
Em um mesmo dia, há pouco tempo, dois personagens roubaram a cena na programação jornalística: Pepe Mujica e Elon Musk. Nada mais simbólico. Pepe virou notícia por discursar durante a campanha do candidato à presidência do seu partido, o Movimento de Participação Popular, em tom de despedida da vida política. Elon porque prometia sortear 1 milhão (o equivalente a 5 milhões de reais) para apoiadores de Trump que se registrassem na Pensilvânia[1].
De um lado, um ícone da esquerda pop da América do Sul, que sempre colocou na centralidade da sua atuação política a sobriedade como único caminho possível para que o consumo não consuma nossas vidas. Um senhor, de 89 anos, que inspira toda uma juventude a prezar pela vida e não pela acumulação financeira, a cuidar dos afetos e não centralizar todo o seu tempo, esse bem precioso, apenas na busca individualista pela prosperidade.
Do outro lado, o homem mais rico do mundo, que ganha mais de 100 bilhões de reais por dia[2]. Sim, foi isso mesmo que você leu: por dia. De acordo com a ONU, atualmente, o mundo tem 1,1 bilhão de pessoas abaixo da linha da pobreza. Cerca de 25% das crianças – deste planeta que nossa espécie humana habita – vivem em estado de extrema pobreza, convivendo com a desnutrição e a falta de acesso à saúde. Vidas que não têm o mínimo: água, saneamento, refeições diárias, segurança, moradia digna. Soma-se a esses dados desoladores, o fato de que o número de refugiados oriundos de países em guerra só aumenta. No mesmo tempo histórico, ou seja aqui e agora, essas pessoas coexistem com o homem mais rico do mundo, que apoia um candidato que despreza a desigualdade social, que tem como consequência uma desigualdade de oportunidades; que despreza imigrantes, considerando-os seres de baixa categoria. Mas são homens, homens muito ricos e brancos, que vendem a meritocracia como caminho para solucionar problemas tão graves e complexos como estes.
Mujica nos interpela: quando perdemos a vergonha de assumir o absurdo que é a naturalização de uma desigualdade social tão brutal, perversa, imoral? Como é possível admirar e se inspirar em uma pessoa trilionária, que não tem vergonha de acumular a fortuna de um império em um mundo com guerras e fome? Uma pessoa que faz troça distribuindo milhões para interferir nas eleições de um país que alimenta guerras, que acirra esses abismos sociais, que trata alguns países/pessoas/povos como mão de obra barata para manter a economia e o consumo dos seus cidadãos em alta.
Volto a Mujica e sua sabedoria, tão simples, tão modesta, quanto revolucionária e filosófica:
Defender a dignidade de todos não significa questionar a prosperidade de alguns, mas pensar se isso é viável para o coletivo. É confrontar o discurso de que “todos podem chegar lá com esforço”. E Mujica vai além: indaga que “lá” é esse que buscamos alcançar, quanto de nosso tempo de vida precisaremos investir para “vencer”. E mais: será mesmo possível resolver a questão da desigualdade almejando o mesmo padrão de consumo, de riqueza, de poder que esses poucos possuem?
É sustentável se inspirar em um modo de vida que corroi, li-te-ral-men-te, qualquer possibilidade de existência humana na Terra? Óbvio que não. Qualquer pessoa minimamente ética tem essa resposta na ponta da língua. Então por que Mujica segue sendo uma referência política tão forte? Porque propor essa sobriedade significa questionar todo o modelo econômico-social que permite que essas pessoas do topo da pirâmide sigam desfrutando de uma vida luxuosa, enquanto a maior parte da população assiste a esse triste espetáculo sonhando em um dia chegar lá.
Um lá que rouba o aqui agora. Um lá distópico porque se estrutura na própria exploração, na própria miséria de muitos para alimentar a conta do outro, que transborda dinheiro. Um lá improvável porque o homem mais rico do mundo depende de minérios que são finitos, assim como nosso tempo de vida. Tempo, tempo, tempo, tempo. Compositor de destinos.
Quando provocam Pepe dizendo que ele faz uma apologia à pobreza, ele responde com a firmeza e tranquilidade que lhes são características: eu faço uma apologia ao bem viver. Assim, ele subverte o lema central do sistema econômico e geopolítico que vivemos, sem perspectiva de mudança: tempo não é dinheiro, o tempo é o tecido de nossas vidas. Quando entregamos todo o nosso tempo ao altar do consumo desenfreado, sacrificamos nada mais, nada menos, que a nossa própria existência.
Encerro com esse pequeno arremedo de poema-repente-cantiga[3] que me inspira e que entoo quase como um mantra, para que eu não me perca no labirinto do desejo de consumo, no desejo de sucesso, no desejo de um “chegar lá” que me afaste do bem viver:
Ou a gente se Mujica
Ou a gente se aniquila
Ou a gente se Raoni
Ou a gente se consome
Ou gente se Marielle
Ou a gente se submete
Ou a gente se Guajajara
Ou a gente se acaba
Ou a gente se Kopenawa
Ou a gente só se separa
Ou a gente se Krenak
Ou a gente se exaure
E se a gente se Muskar
Aí vamos nos arruinar.
[1] Estado crucial para o resultado das eleições estadunidenses.
[2] Elon Musk ganha R$ 150 bilhões em um dia com alta de 17% no lucro da Tesla | Negócios | G1
[3] Um brincadeirinha de quem não chega nem aos pés dos grandes trovadores, repentistas, poetas e cantautores de nossa rica cultura.
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