COLUNAS

O Afeganistão pode ser aqui

Por Fayga Moreira*

 

Em 1993, Gilberto Gil e Caetano Veloso lançaram a música Haiti. Em um dos trechos, vem essa provocação – tão contemporânea e contundente quanto dolorosa:

Pense no Haiti / reze pelo Haiti

O Haiti é aqui / o Haiti não é aqui

Como uma obra de arte é passível de múltiplas interpretações, não vou aqui me deter em uma análise. Apenas ousarei traçar um paralelo entre a canção e a discussão aqui proposta. Embora o Haiti tenha sido o primeiro país a se tornar independente nas Américas, as colonizações espanhola e francesa deixaram um lastro tão profundo de destruição, violência, racismo e miséria, que mesmo a rebelião e resistência do povo (majoritariamente preto) não foi capaz de frear consecutivos governos ditatoriais e guerras civis.

Como resultado, o Haiti segue figurando, ao longo de décadas e décadas, como o país mais pobre do nosso continente. O que Gil e Caetano nos estimulam a pensar, com toda licença poético-musical que têm direito, é que as mazelas dessa dinâmica colonialista também residem aqui. Temos Haitis dentro do Brasil, embora o Haiti não seja aqui.

Minha audácia, então, me põe a imaginar que o Afeganistão também pode estar aqui, em estado de latência ou já bem enraizado entre nós. Me lembrei das aulas do professor e pesquisador Muniz Sodré durante o mestrado na ECO/UFRJ. Naquele casarão antigo, numa sala com um piso de madeira que deixava expostas as marcas do tempo, Muniz alertava: se não combatermos agora a estratégia de certos grupos evangélicos que fazem da fé um negócio, eles conseguirão corroer o estado laico. Como? Ocupando, estrategicamente, os espaços de decisão e poder.

Era 2005 e eu, uma estudante de mestrado que acabara de sair de uma experiência um tanto libertária na graduação, achava aquele papo exagerado e catastrófico. Na minha cabeça jovial, não existia lugar, no Brasil, para fundamentalismos religiosos. Mas essa precaução lançada pelo querido mestre foi, sem dúvidas, a reflexão que mais me marcou.

Muniz já anunciava o que viria a tornar-se realidade: em 2021, um ministro do Supremo Tribunal Federal foi indicado para a mais alta corte por ser “terrivelmente evangélico”.[1] Contudo, antes mesmo que o trágico governo Bolsonaro ganhasse as eleições, com um discurso caricato de “Deus, pátria, família”, a bancada da bíblia tinha se fortalecido politicamente o suficiente para pressionar as eleições do país, pautar agendas conservadoras no Legislativo e atacar decisões progressistas do Judiciário. Muniz Sodré tinha razão.

Nos últimos anos, especialmente com o fenômeno das redes sociais, todo esse lodo (fascista, conservador, retrógrado, moralista, misógino, racista, homofóbico, anti-democrático), que estava rosnando baixinho dentro dos espaços privados, sentindo-se reprimido pelo “ativismo” dos direitos humanos e das feministas, adentrou o espaço público com uma força que pegou muitas pessoas “desavisadas” ou “ingênuas” (como eu) de surpresa. Esse transbordamento do ódio às diferenças impactou violentamente todas as lutas políticas progressistas. Aqui vou me deter na questão da equidade de gênero.

Na esteira desse esgarçamento do estado laico e do fortalecimento da bancada da bíblia, a violência contra as mulheres entrou numa escalada assustadora. Nos últimos 5 anos, todas as taxas de violências contra mulheres (feminicídio, violência sexual, física, patrimonial, psicológica) aumentaram significativamente, de acordo com dados do Instituto Igarapé.[2] Mas, se algumas de nós pensávamos que o governo de extrema direita de Bolsonaro era o máximo de retrocesso que teríamos que lidar, a situação só piorou. A partir de 2023, grupos misóginos começaram a ganhar popularidade com teses e termos que pareciam catapultados da era das cavernas para o século XXI. Uma movimentação, que seria patética, se não fosse trágica, de homens defendendo a inferioridade das mulheres, o resgate da submissão delas aos homens, a retomada da virilidade masculina e a derrota do feminismo, movimento que, segundo os adeptos da ‘machosfera’, acabou com as famílias de bem e fez com que as mulheres se tornassem perigosas. Pasmem, é isso que os redpills, incels e demais seitas reacionárias pregam. Aliás, pregam não, orientam; por isso são chamados de ‘coaches’ da masculinidade tóxica.[3]

Basta olhar para o que acontece, nesse exato momento, em São Paulo. Um candidato que diz que pode fazer cadeirantes voltarem a andar apenas com suas orações, que ainda vai ver uma pessoa morta ressuscitar com seu poder messiânico, que atua como mentor para milhares de homens (adultos e jovens) se tornarem milionários e que tem como inspiração para sua campanha um coach de outro país que é um redpill “raiz” e defende abertamente que mulheres devem ser propriedades dos homens. Quem sou eu para antecipar futuros como o fez, sabiamente, Muniz Sodré. Mas, cá estou, lançando esse alerta como uma flecha no tempo. Espero que a nossa sociedade não caia nesse ‘LaMarçal’, afinal o Afeganistão pode ser aqui. Fiquemos atentas e fortes.

[1] Bolsonaro reafirma que indicará ao STF ministro “terrivelmente evangélico” – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (câmara.leg.br)

[2] Estudo aponta aumento de 19% da violência não letal contra mulheres no Brasil nos últimos 5 anos. – Instituto Igarapé (igarape.org.br)

[3] Coach de assédio? A rede masculinista que abraça Thiago Schutz – Nexo Jornal

Redpill, Incel, MGTOW: entenda o que acontece em grupos masculinos que pregam ódio às mulheres | O Assunto | G1 (globo.com)

 

*Fayga Moreira – jornalista, pesquisadora, produtora cultural, professora universitária, escritora e mãe.

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1 Comentário para “O Afeganistão pode ser aqui”

  1. Avatar James Gondim disse:

    O estado deve ser laico, e o desafio para nós, é combater esta apropriação do Estado, pela bancada da bíblia. Demoramos a nos dar conta e, agora esta mais difícil esta luta … Parabéns pelo texto …

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