Por Fayga Moreira*
Foto: Ricardo Stuckert
Outro dia, me enviaram um texto de uma pesquisadora que se autointitula antifeminista, conservadora e crítica da decolonialidade. Ela afirmava que o debate decolonial tomou o mesmo rumo das pautas identitárias: excluir mais que incluir. Repetindo uma velha fórmula da extrema direita: nega que determinadas agendas geram avanços nos debates sociais e culturais e diz que a questão é mais complexa. Complexidade da qual ela mesmo se exime. Aquela história do “vale tudo pela lacração”.
Porém, dentro do próprio campo crítico-reflexivo em que o conceito de decolonialidade foi forjado, há quem diga que deixou de usá-lo porque virou moda, se tornou mais uma etiqueta no mercado capitalista. Acontece que os conceitos são elaborados por uma convergência de diversos fatores, dentre eles: uma escassez de definições para nomear determinada experiência e uma necessidade inequívoca de pensar algo em seu conjunto para apontar semelhanças nas diferenças. Nesse processo, o conceito vai sendo lapidado e compartilhado em simpósios, seminários, palestras, livros, artigos acadêmicos, discursos, nas mesas de bar, nos encontros fortuitos em pontos de ônibus, em cursos, na militância e, pasmem, até em filmes e telenovelas. Nada mais esperado, mas será que estamos preparados para essa conversa?
Já citei isso na apresentação do meu livro “Desvios decoloniais no cinema brasileiro contemporâneo”, mas volto a dizer: o conceito de decolonialidade provocou abalos sísmicos no meu modo de enxergar o mundo (nosso mundo) tanto quanto as críticas nietzschianas à moralidade cristã; as ideias de Deleuze e Guattari de revolução molecular, de processo de subjetivação, de ecosofia; como a teoria foucaultiana de biopolítica e microfísica do poder.
Contudo, por ser uma ferramenta analítica que nasce dos movimentos sociais, especialmente andinos e latinos, a gênese, ou melhor a germinação desse conceito, remete às nossas raízes. Existe uma proximidade que está aterrada em nossa história, em nosso continente. Nesse sentido, o que chamam de moda, eu defino como aumento de escala de acesso a certa discussão que já estava semeada em todo território latino. “Sembrada” (como diriam nossos hermanos fronteiriços), mas sombreada. Um debate em estado de latência, mas carregando a força de quem resiste há muitos séculos pelo direito de existir em uma terra que lhes foi roubada.
O que chamam de “moda”, entendo como a popularização de ideias que já vêm do popular, mas que foram invisibilizadas pelo saber científico eurocentrado. Ao contrário do que muitos pensam, a decolonialidade não foi formulada dentro de um círculo acadêmico encastelado entre muros e crachás. Mas, por supuesto, foi referendada lá, porque assim é o sistema de produção de conhecimento imposto mundo afora.
A desconstrução que a decolonialidade propõe se alastrou, penso eu, porque nos ajudou a entender as colonialidades (assim mesmo, no plural) que nos atravessam, em nossa experiência de vida e coletiva. A decolonialidade desempenha, para nós latino-americanos, o papel que o debate interseccional promove no Norte Global. Se a interseccionalidade chama a atenção para o fato de que precisamos pensar as matrizes de poder como coexistentes e não hierarquizáveis, a decolonialidade provoca uma reflexão não-eurocentrada a respeito de tais matrizes de poder. Nos interpela com a seguinte questão: quem define o que é sabedoria, produção de conhecimento e intelectualidade?
Em um país que é mais floresta e quilombo que ‘farialimer’, qual sabedoria importa mais?
Nesse território, mais latino-americano que mercado financeiro, interessa menos o saber dos povos indígenas, sábios conhecedores da tecnologia ancestral de coexistência com a floresta?
Quando lideranças indígenas afirmam que o Brasil do cocar já existia muito antes do Brasil da coroa, seus conhecimentos são escutados, no debate público e institucional, tanto quanto a voz do agronegócio?
Será que temos capacidade de aceitar como “pop” a ideia de que, nesse território em que pisamos, saberes foram acumulados e sistematizados antes mesmo que a família real chegasse com todo aquele outro saber eurocêntrico?
Será que conseguimos compreender que aqui havia ciência, antes que bibliotecas e universidades fossem criadas?
Como país, somos mesmo tão decoloniais a ponto de aceitarmos que a oralidade cumpria muito bem o papel de transmissão da sabedoria de um povo, por meio de arquivos criados na memória humana e não em papéis acumulados ou em nuvens digitalizadas?
Será que, realmente, a decolonialidade está na moda, em uma sociedade que elege um Congresso defensor do Marco Temporal?
Tenho dúvidas.
Mas me restam algumas certezas: de que esse conceito não foi cultivado para ser contra nada. O debate decolonial não tem como intenção ser contra os europeus, contra os ianques, contra a ciência, contra a modernidade. Não é sobre isso. E, sim, sobre como podemos alargar nosso horizonte de possibilidades sensíveis e concretas, já que a humanidade precisa (ou não) deixar menos rastros de destruição pelo mundo.
Sobre como podemos negociar com os poderes de forma menos bélica e mais diplomática, entendendo que o objetivo é comum: diminuir nossas emissões de carbono, na tentativa de frear os extremos climáticos.
Por fim, é sobre ampliar nosso repertório a ponto de entender que, aquilo que entendemos como “mais civilizado”, “mais moderno”, “mais avançado”, pode não estar lá ou acolá, mas aqui. E além: pode ter sido apropriado, extraviado, usurpado daqui ou do continente africano e tarjado como “deles”.
Nesse ponto crucial, a sabedoria e tecnologia indígenas se encontram com a produção de conhecimento formatada em uma modernidade que nunca chegou a ser moderna, em um iluminismo que provocou muitas escuridões. Nesse encontro, a decolonialidade se propõe mediadora de um debate mais equânime. Vocês têm poder, dinheiro, armas, nós temos um conhecimento que vocês sempre negaram como científico. Será que conseguimos chegar, não a um consenso, mas a algum caminho do meio? Afinal, coabitamos o mesmo planeta e queremos “segurar o céu” para ele “não desabar”.
Se vocês querem complexidade, convido a analisarem essa imagem da ocasião em que Macron (presidente francês) condecorou o Cacique Raoni com a mais alta honraria da França.
Se vocês querem complexidade, convido a um aprofundamento no que a decolonialidade levanta como proposta crítica. Seremos capazes mesmo de adentrar esse modismo complexo e profundo?
Ou seguiremos refutando princípios epistêmicos apenas para frear sua capacidade de impactar o debate público de modo incontornável? Sonho com o dia em que Krenak, Kopenawa, Raoni, Silvas, Dos Santos, Tupinambás e Guajajaras estejam na moda tanto quanto Marx, Foucault, Beauvoir, Sartre e Platão, que sempre estiveram em alta na geopolítica do conhecimento.
*Fayga Moreira – jornalista, pesquisadora, produtora cultural, professora universitária, escritora e mãe.
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