Hectares de terra, muitos, voltados para a monocultura. Lágrimas nos olhos, menos de ler o Pessoa, mais de ver o verde-plantation da cana, parafraseando Belchior. Na zona da mata sul de Pernambuco, começou a operar em 1929 a usina Santa Terezinha. Duas décadas depois, tornou-se a maior produtora brasileira de álcool e açúcar, até falir no final dos anos noventa. Para ligar a área de plantio e colheita com a fábrica e o mercado, a propriedade chegou a ter mais de 100km de estrada de ferro.
Em Nordeste, de 1937, o suspeito Gilberto Freyre, descendente de senhores de engenho, não deixa de admitir que se, de um lado, a região açucareira tem “uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pelo barco a vela, pela palmeira-imperial, de outro, ela se deforma “pela monocultura latifundiária e escravocrática; esterilizada por ela em algumas de suas fontes de vida e de alimentação mais valiosas e mais puras; devastada nas suas matas; degradada nas suas águas”. A lógica persistente há quinhentos de monocultura da cana-de-açúcar, onde antes havia o vigor da Mata Atlântica, resultou, continua Freyre: “na diminuição da saúde do homem; na diminuição das fontes naturais da vida regional; na diminuição da dignidade e da beleza da paisagem”.
A usina Santa Teresinha hoje é ruína. Imensos esqueletos de alvenaria e ferro. No topo de um deles, a instalação de Alfredo Jaar Claro-Escuro (2015) explode em verde-neon a frase de Antonio Gramsci: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Sim, desde 2015, a antiga indústria e um espaço em torno de 35 hectares abrigam um museu de arte contemporânea e um parque botânico, a Usina de Arte.
A curadoria inicial desse museu a céu aberto, explicitamente inspirado na experiência de Inhotim, foi do artista paraibano José Rufino, também descendente de senhores de engenho. O próprio artista tem uma obra instalada no antigo hangar da propriedade onde se apodera de objetos-restos da empresa. No site da Usina de Arte (http://www.usinadearte.org/) se lê sobre o “Hangar José Rufino” : “A instalação com desenhos e esculturas aborda questões da Usina Santa Terezinha, trazendo à reflexão histórias de trabalhadores desde o corte da cana, operários da indústria, das atividades correlatas, enfim tantas vidas dedicadas à produção açucareira, famílias que ali viveram , seus sacrifícios e esforços , suas memórias ali homenageadas através do resgate de materiais antes abandonados no fundo do antigo almoxarifado”.
São dezenas de artistas nacionais e internacionais cujas obras dialogam com a história e a natureza locais. Talvez a que tenha recebido mais atenção midiática seja a obra “Diva”, da artista pernambucana Juliana Notari, uma vulva gigantesca de 33 metros de comprimento, por 16 metros de largura e 6 metros de profundidade encravada na terra. Se “A origem do mundo” de Coubert retrata um espaço privado e urbano como fonte de tudo, Notari chama atenção que é da mãe-terra-pública que nascemos, apesar de toda a violência física e simbólica perpetrada à terra e às mulheres. A curadora Clarissa Diniz, em texto disponível no site da artista (https://www.juliananotari.com/), diz que a obra é um “abcesso que dar a ver a violência histórica sobre os corpos femininos e que seguem sendo cotidianamente feridos de muitas – e, a depender de sua cor ou gênero, de distintas e assimétricas – maneiras, assim como o corpo de Gaya, a nossa Mãe terra”.
Se estamos em tempo de monstros, que somos nós mesmos, e se o novo ainda não nasceu, ainda haverá – para citar a obra do artista paraense Bené Fonteles exposta na Usina – “tempo-templo”? Ou já somos e continuaremos ruínas? Essa é a força desse espaço de criação na zona da mata. Sua “poética da ruína”, na definição de Fabiano Lucena de Araújo, “essa poética da reciclagem dos resíduos industriais e dos detritos ambientais”. No mínimo, defende o pesquisador, essas gambiarras, sucatas e compostagem, tem “um poder de denúncia crítica/política, estimulados pelo antropoceno.”
Referências
Fabiano Lucena de Araújo. Musealizando a Natureza Barata: arte, ruína e antropoceno na Mata Sul de Pernambuco. Aurora. Revista de Arte, Mídia e Política, v. 15, n. 45, p. 95-116, 2022.
Gilberto Freyre. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
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