Juan Brizuela[1]
“La vida me han prestao y tengo que devolverla
Cuando el creador me llame para la entrega
Que mis huesos, piel y sal, abonen mi suelo natal”
Pablo Raúl Trullenque e Carlos Carabajal, 1965
Em 1953, um jovem pesquisador argentino, filho de pais alemães, publicava em Buenos Aires o livro La seducción de la barbarie: análisis herético de un continente mestizo. Rodolfo Kusch, na época com 31 anos, buscava compreender as disputas dos projetos civilizatórios que dominaram a cena argentina e latino-americana durante o século XIX e boa parte de século XX. Por um lado, a civilização e a modernidade: as luzes da cidade de Buenos Aires, a Paris da América do Sul. De outro, um abismo: a barbárie, o interior, os caudilhos, os índios, o chamado “fedor” de América, provocação de Kusch para se referir a uma realidade oposta às instituições da República e da economia liberal dos países centrais de ocidente.
Entre um lado e outro, lutas fratricidas entre habitantes destes territórios que não poupavam práticas cruéis para instaurar o terror no adversário. Estas expressões e manifestações culturais eram realizadas tanto pelo Exército do Estado Nação quanto pelas resistências; milícias improvisadas que hoje seriam chamadas de grupos terroristas, fundamentalistas da barbárie que questionavam a ordem e o progresso que a sangue e fogo o Estado impunha às comunidades e grupos culturais destas latitudes. As práticas sanguinárias, de medo e terror, eram aplicadas tanto pelo Estado quanto pela resistência, porém com lógicas auto- legitimadoras distintas. O Terrorismo de Estado se pensava e agia como ação civilizatória e, neste sentido, justificada para combater a barbárie. Já as práticas terroristas das culturas populares eram válidas sempre e quando realizadas como resistências dos povos nativos e tradicionais às instituições da República, à economia liberal e aos bens culturais das cidades e seus consumidores de maior poder aquisitivo.
Nesse momento e nesse contexto tão expressivo de consolidação dos projetos culturais que estarão em disputa nas décadas seguintes, Kusch realiza uma polêmica apologia da barbárie, considerando-a como núcleo estruturante de qualquer projeto civilizatório e, neste sentido, impossível de combater ou aniquilar sem destruir, também, a cultura “civilizada”, impoluta, higiênica e moderna que se pretende proteger. Ou seja, para o autor, de nada adiantaria opor nas culturas do continente americano os projetos de civilização e barbárie, porque ambos seriam faces da mesma moeda, projetos indissociáveis e, nesse sentido, constitutivos de nosso continente mestiço.
Somos estudiosos da diversidade cultural a partir de territórios periféricos; “subdesenvolvidos”, que é outra forma de falar sobre a barbárie constitutiva de nossas práticas culturais cotidianas, de nossas instituições e nossas democracias republicanas “falidas”. E quando olhamos os atentados terroristas que continuam acontecendo no século XXI, especialmente aqueles que sucedem em países protagonistas de ações e projetos civilizatórios a nível mundial, como a França, a questão deve voltar à tona. Não é tão fácil explicar os atentados terroristas atuais por meio de uma oposição entre civilização e barbárie como a imprensa e vários analistas internacionais sustentam. Observamos práticas civilizatórias ocidentais, racionalmente ensinadas, treinadas e financiadas em nome do fundamentalismo ocidental do capital, esse sim, dos mais perigosos dos radicalismos existentes no mundo contemporâneo.
Os atentados terroristas da atualidade não podem ser reduzidos a expressão de um choque de civilizações onde religiões e fundamentalismos islâmicos se digladiam insanamente. ISIS, o Estado Islâmico, é fruto do projeto civilizatório dos países centrais, financiado pela economia de mercado capitalista ocidental e expressa o núcleo mais profundo dessa barbárie cultural, econômica, desigual e consumista. Protagonistas e vítimas destes atentados expressam o modelo político e econômico pendular que transforma inimigos e aliados em lados de uma mesma realidade que tanto nos seduz, mas cujos radicalismos nos levam a refletir sobre o tipo de barbárie que estamos apoiando, e sobre o projeto civilizatório que estamos suportando em consequência. Trata-se de reconhecer, à luz de Kusch, a dialética da barbárie e a necessidade de se conjugar autenticidade e emancipação e não tolerâncias oportunistas.
Matérias sobre Rodolfo Kusch:
2012, Revista Ñ, Clarin. Rodolfo Kusch: olvidado y rescatado vivo http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/Rodolfo-Kusch-olvidado-rescatado-vivo_0_824917529.html
2013, Página 12. Una cosmovisión latinoamericanista http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/subnotas/28799-7391-2013-05-31.html
[1] Doutorando do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (UFBA). Pesquisador em formação e membro do CULT – Centro de Estudos Multidisciplinares em (IHAC/UFBA) e da Rede Nacional de Formação de Pesquisadores em Políticas Culturais. Pesquisador do grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural.
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