Giselle Dupin[1]
No âmbito das comemorações dos dez anos da Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, adotada em 2005, a UNESCO lançou em dezembro último, o Relatório Re|pensar as políticas culturais. Trata-se de estudo extremamente importante para todos os que se interessam pelo tema, pois, além de avaliar a evolução do cenário cultural mundial no período 2005-2015, lança um olhar crítico sobre os impactos da Convenção, o alcance de sua eficácia e os progressos alcançados em sua introjeção pelas 140 Partes da Convenção – 139 países mais a União Europeia.
Baseado principalmente nos relatórios periódicos quadrienais entregues por 71 dessas Partes (e que constituem uma das obrigações previstas na Convenção), o Relatório fornece – pela primeira vez – um quadro de acompanhamento integrado na área da cultura, e uma proposta de indicadores de evolução e de progresso. Com isto, além de ferramenta importante para a avaliação e a pesquisa sobre política cultural, ele poderá orientar os governos nacionais na elaboração e implementação de suas políticas.
A obra foi didaticamente organizada em quatro seções correspondentesaos grandes objetivos do acordo: i) apoiar sistemas de governança sustentáveis da cultura; ii) alcançar uma troca equilibrada dos bens e serviços culturais, e ampliar a mobilidade dos artistas e dos profissionais da cultura; iii) integrar a cultura aos quadros de desenvolvimento sustentável; iv) promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Apoiar sistemas de governança sustentáveis da cultura
O Relatório considera que a sustentabilidade dos sistemas de governança de cultura apoia-se em quatro pilares: as políticas culturais, os meios de comunicação do serviço público, o ambiente digital e a parceria com a sociedade civil.
Lembrando que a Convenção reconhece o direito soberano dos governos a introduzir políticas que visem a proteger e promover a diversidade das expressões culturais, é feita uma avaliação de como a implementação da Convenção influenciou a elaboração ou reformulação das políticas públicas de cultura. Uma das conclusões neste sentido é que a Convenção permitiu não apenas um enriquecimento do conjunto das políticas culturais elaboradas, como a ampliação da própria noção de política cultural, que passou a incluir novas medidas e mecanismos, e a aumentar a área de atuação dos ministérios da cultura, incluindo a defesa da liberdade de expressão e da diversidade cultural nos meios de comunicação, especialmente nos do serviço público. Entretanto, o relatório avalia que esses avanços e inovações, apesar de promissores, são ainda insuficientes.
Embora a tecnologia digital seja percebida positivamente como uma forma de fortalecer e redesenhar os limites entre os diferentes elos da cadeia de valores dos bens e serviços culturais – da criação ao acesso, passando pela produção, distribuição e difusão –, o relatório chama atenção para a desigualdade ainda existente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, no que diz respeito ao acesso a essa tecnologia.
Quanto à parceria com a sociedade civil, o texto lembra que a Convenção é um tratado pioneiro pela importância que atribui à contribuição dos atores da sociedade civil para sua implementação. Mas, se por um lado, a tecnologia digital e a explosão das redessociais, desde 2004, veio facilitar os modos de participação da sociedade civil, incluindo sua capacidade para o compartilhamento de conteúdos culturais, por outro lado, ainda é preciso avançar nas relações entre os governos e as organizações da sociedade civil, pois nem sempre têm demonstrado capacidade suficiente para cooperar de forma eficaz. São apontadas também a ausência de financiamento e de recursos humanos qualificados, e a falta de sensibilização da sociedade civil para a Convenção.
Alcançar uma troca equilibrada dos bens e serviços culturais, e ampliar a mobilidade dos artistas e dos profissionais da cultura
Ao constatar que, apesar da quota dos países em desenvolvimento nas exportações de bens ter aumentado de maneira contínua entre 2004 e 2013, as trocas de serviços culturais são ainda fortemente dominadas pelos países desenvolvidos, o relatório indica que o equilíbrio nessa área ainda não foi alcançado.
Em relação ao acesso dos artistas e profissionais da cultura aos mercados internacionais, é lembrada sua importância crucial para a promoção de indústrias culturais e criativas sustentáveis, e sua contribuição para o desenvolvimento humano, econômico e social, mas os autores avaliam que, no que diz respeito à mobilidade dos artistas e profissionais da cultura originários dos países do Sul, ainda existe um fosso entre os princípios e ideais da Convenção e a realidade. Essa mobilidade estaria sendo dificultada por questões econômicas e políticas, bem como por restrições de segurança, cada vez maiores, especialmente nos países do Norte. Conclui-se, assim, que a Convenção deve ser utilizada de maneira mais eficaz para permitir a superação desses obstáculos.
Integrar a cultura nos quadros de desenvolvimento sustentável
Após um grande esforço e expectativa, a comunidade de países membros da Convenção da Diversidade Cultural conseguiu que o papel da cultura fosse reconhecido no Programa de desenvolvimento sustentável até 2030, recentemente adotado pelas Nações Unidas. A UNESCO pretende fazer com que esse primeiro relatório sobre a Convenção contribua para a implementação desse Programa, e traz argumentos sobre as ligações entre a diversidade cultural, o desenvolvimento sustentável e a paz. Entretanto, o texto reconhece que, mesmo com os progressos já alcançados, restam muitos desafios a serem enfrentados para que a dimensão cultural seja integrada aos marcos legais do desenvolvimento sustentável e levada em conta nas políticas de desenvolvimento de cada país.
Promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais
A promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais é considerada no relatório uma área pouco explorada da Convenção, embora ela recomende claramente que as políticas e medidas culturais promovam a igualdade dos gêneros, reconheçam e apoiem as mulheres artistas e produtoras de bens e serviços culturais.
As restrições à liberdade artística e ao acesso às expressões artísticas provocam importantes perdas, tanto culturais e sociais quanto econômicas, privam os artistas de seus meios de expressão e de subsistência, e criam um ambiente incerto para todas as pessoas engajadas na arte e seus públicos.
Em relação à igualdade de gêneros, o relatório lembra que ao mesmo tempo em que as mulheres estão muito presentes no setor criativo da maioria das regiões do mundo, elas continuam a ser fracamente representadas nas diversas profissões culturais e nos cargos de decisão de indústrias e organizações culturais. Os autores desse capítulo consideram que, além de consistirem numa injustiça e numa violação dos direitos das mulheres à cultura, os obstáculos à sua participação e progressão nas iniciativas culturais exercem um impacto negativo na diversidade cultural e privam a todos do potencial criativo feminino. Avaliando que a necessidade de garantir a igualdade dos gêneros no setor cultural ainda não foi convenientemente abordada no âmbito da Convenção, eles consideram que um dos maiores obstáculos à luta contra a desigualdade de gêneros na esfera cultural é a falta de dados repartidos por gênero.
Ao longo do texto, o Relatório faz algumas referências ao Brasil e a algumas de suas experiências bem sucedidas de promoção e proteção da diversidade das expressões culturais, como a promoção do empreendedorismo cultural de povos e comunidades tradicionais, e a participação da sociedade civil no acompanhamento das políticas culturais, por meio do Conselho Nacional de Cultura, das Conferências de Cultura e de outras instâncias.
Ao compartilhar as experiências dos diversos países, e analisar as tendências mundiais em matéria de política pública de cultura, tendo como base os relatórios periódicos elaborados pelas próprias Partes da Convenção, esse novo Relatório da UNESCO valoriza esse exercício. O Brasil, que entregou seu primeiro relatório periódico em 2012, está atualmente elaborando seu segundo exercício de relatoria, a cargo do Grupo de Trabalho Permanente do Ministério da Cultura para a Diversidade Cultural, e a ser entregue à UNESCO no final do mês de abril. De antemão, já se constata que, apesar de dispor de um conjunto de bons programas e ações desenvolvidos no período 2012-2015, há uma carência no que diz respeito à avaliação de seu impacto.
[1]Ponto de Contato da UNESCO no Brasil para a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.
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