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Diversidade biocultural: do que estamos falando?

POR: JOSÉ MÁRCIO BARROS

O termo diversidade biocultural permanece ausente nos discursos acadêmicos e nas narrativas militantes, tanto no campo da defesa e promoção da diversidade cultural, quanto no campo da biodiversidade. Essa ausência revela o quanto, a despeito da estreita relação entre as questões culturais e as questões ambientais, continuamos separando o que deveria ser considerado de forma articulada. Conforme afirma o sociólogo ambientalista mexicano Enrique Leff (2006), a Modernidade, entendida como modelo de organização política, econômica e cultural singular, afastou a natureza da cultura. Entretanto, a crise ambiental em que vive a humanidade desde a segunda metade do século XX, e especialmente as evidências empíricas ressaltadas pela pandemia de COVID-19, reacende a necessidade e a urgência de atualizar, propagar e criar mecanismos de controle social para a efetiva implementação de uma Agenda Socioambiental sustentada pela perspectiva da diversidade biocultural.

A utilização cindida da diversidade cultural e da biodiversidade, mais do que limitar a efetividade das políticas públicas, é, ela própria a negação da própria diversidade. O legado da Modernidade – que de certa forma se estrutura na perspectiva antropocêntrica de superioridade da cultura sobre a natureza – e as apropriações e usos distorcidos e oportunistas do modelo de desenvolvimento sustentável como alternativa à crise ambiental que década a década recrudesce, parecem ser os responsáveis por essa sutil e paradoxal realidade. Discursivamente integramos natureza, cultura e suas diversidades. Mas tal integração parece não transbordar da esfera dos discursos, das idealidades e das formalidades, à exceção de ações na forma de programas e projetos de resistência tanto na área cultural como ambiental que, ora reforçam as tradições ora constroem posturas inovadoras que apontam para uma nova práxis da diversidade biocultural. (Barros, 2016, p. 13)

De acordo com a Convenção da Diversidade Biológica da UNESCO, promulgada em 1992, biodiversidade refere-se à

(…) variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. (UNESCO,1992, Art.2)

Ou seja, a biodiversidade nos remete a uma realidade em três dimensões:  a diversidade biológica no planeta, a variabilidade genética das espécies e a diversidade de ecossistemas formados por diferentes combinações de espécies. (Mendonça, 2014 p.31)

Já o conceito de diversidade cultural é assim apresentado na Convenção da UNESCO sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais:

(…) refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. (UNESCO, 2005, Art.4)

Como podemos depreender, há uma dimensão relacional em ambos os conceitos. Tanto a biodiversidade quanto a diversidade cultural resultam da capacidade de articulação e integração que não se esgotam nas qualidades imanentes de cada uma, mas exatamente na dinâmica interacional de seus componentes. É a articulação e equilíbrio que define a presença e a potência da diversidade tanto no meio ambiente quanto na cultura.

Sendo assim, por diversidade biocultural devemos entender a diversidade da vida em todas as suas manifestações  biológicas, culturais e linguísticas interrelacionadas em um complexo sistema socioecológico (Maffi; Woodley, 2010) e, neste sentido, uma outra urgente obviedade precisa invadir nossas consciências e nossas ações: a relação dinâmica e igualmente articulada entre proteção e promoção.

Se a biodiversidade tem na proteção uma ação estratégica para a sua preservação e potencialização, sem a promoção, entendida como construção de uma consciência humana sobre sua importância, ela estará sempre sob ameaça. Já para a diversidade cultural, a realidade é ainda mais radicalmente articulada. A ação conjunta e equilibrada entre proteção e promoção é ponto de partida, dado que se caracteriza como um aprendizado socialmente desenvolvido.

Como enfatizado por Mendonça(2014), a diversidade biocultural  requer a compreensão de que a diversidade biológica e cultural constitui a expressão de um todo e é fruto de processos cumulativos, adaptações e da natureza co-evolutiva do homem e seu ambiente de vida. Depende da qualidade das relações entre as dimensões naturais e culturais, presentes nos saberes e práticas dos diferentes povos e sociedades.

Referências

BARROS, José Marcio. Cultura, diversidade e os desafios do desenvolvimento humano. In: Diversidade Cultural: da proteção à promoção / José Márcio Barros (org.); Belo Horizonte,  Autêntica Editora, 2008, 15-26.

BARROS, José Marcio. Diversidade biocultural na política cultural brasileira: uma aproximação ao SNC e PNC”. In: LOPES, José Rogério et alli (Orgs.). Políticas culturais e ambientais no Brasil: da normatividade às agências  coletivas, Porto Alegre, Ed. CirKula, 2016.

MAFFI, L. & WOODLEY, E. Biocultural diversity conservation: a global sourcebook. ed. London: Earthscan, IUCN, 2010. Disponível em http://terralingua.org/

MENDONÇA, Guilherme Cruz de. Diversidade Biocultural, Direito e Cidades: implementação do marco jurídico sobre diversidade biocultural na cidade do Rio de Janeiro. 245f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

UNESCO. Convenção sobre a Diversidade Biológica. Disponível em:  https://www.cbd.int/

UNESCO. Convenção sobre a Proteção e Promoção das expressões da diversidade cultural. Disponível em: http://es.unesco.org/creativity/

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