Renata Reis

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Sentidos do Festejar: auto-organização e construção de políticas a partir do cotidiano

Imagem de capa: Renata Reis

Por Renata Reis[1]

A pesquisa que realizei entre 2017 e 2018, foi realizada para obtenção do título de Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBa, contou com a orientação do Prof. Dr José Márcio Barros e está disponível no repositório da instituição no endereço https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/30523. O trabalho aborda a cultura popular expressa a partir de festas tradicionais, religiosas ou calendarizadas em uma comunidade negra rural, autorreconhecida como quilombola, localizada a 18km do centro da cidade de Lençóis – Chapada Diamantina – Bahia, o Remanso. Na proposta de análise inicial, escolhemos a Festa em Louvor a São Francisco das Chagas, padroeiro da comunidade, para perceber como os processos de manutenção e atualização das suas práticas identitárias interagem nas formas de organização e articulação da festa. Esta percepção se dá a partir da vida social construída no cotidiano, que organiza e conduz os seus momentos festivos.

No contexto de uma comunidade rural onde vivem, em média, 56 famílias, o processo de organização de suas festas tradicionais enfrenta uma sequência de ausências e desafios que afirmam o fazer cultural como um lugar de resistência. Ao resistir, a comunidade levanta problemas, assume responsabilidades e enfrenta forças que, ao longo das negociações necessárias, denunciam desigualdades. Assim, trazemos um olhar para as festas populares e tradicionais e suas transformações, sendo este um lugar de politização dos agentes e surgimento de formas próprias de produção cultural. Uma produção contextualizada e fundamentada na identidade e na valorização do território.

A Festa de São Francisco das Chagas, padroeiro dos pescadores e da comunidade do Remanso, é uma festa que segue o ciclo de festividades católicas, sendo realizada anualmente em formato de novena, entre os dias 27 de setembro e 4 de outubro. Para a realização da pesquisa, houve o acompanhamento do processo de levantamento das demandas de organização da festa nos meses que antecedem a sua realização. Tal convivência teve como suporte metodológico a etnografia e a observação participante, instrumentos fundamentais para traduzir e interpretar o vivido. A festa em si, de caráter público e religioso, nos abre para um questionamento sobre como as relações materiais e simbólicas acontecem na viabilização não só dela, mas também de outros momentos festivos da comunidade que emergiram ao longo da pesquisa de campo, a saber: a participação da marujada no IV Encontro de Cheganças da Bahia e a realização das cerimônias em homenagem aos Santos Cosme e Damião, onde é servido o prato típico da r. Assim, a pesquisa se abre para interpretar e perceber diferenças entre estes três momentos festivos, onde cada um demanda resoluções próprias, porém envolvem a tomada de decisões que alcança toda a comunidade. Um processo que permite reconhecer formas próprias de saber e fazer cultura através de práticas singulares sujeitas a disputas, ausência de apoio e negação de direitos. As três formas de festejar analisadas são diferentes em suas origens e sentidos, porém guardam semelhanças identitárias e singularidades que traduzem um modo de vida próprio e fundamentado na prática do Jarê. O universo mítico desta religião de matriz africana que existe apenas na região das Lavras Diamantinas.

Preparativos para a Procissão em homenagem à São Francisco das Chagas. Foto: Renata Reis

 

O Jarê renova valores e influencia comportamentos, ligando e dando sentido a um sistema de símbolos diverso, singular e híbrido oriundo de uma cultura fundamentada na prática do garimpo de serra. Hoje, a reinvenção destas práticas culturais singulares ocorre a partir de descentramentos, fragmentações e contradições, constituindo ambientes políticos de resistência e afirmação, onde as soluções emergem a partir dos próprios sujeitos. Importante observar que estamos lidando com um ambiente onde as relações simbólicas e materiais e valores subjetivos são enaltecidos a todo momento. Ainda assim, não são suficientes para garantir o compromisso contínuo dos agentes envolvidos ou o envolvimento de parcerias externas. Sair do isolamento e realizar agenciamentos ainda é um desafio para a realidade de uma comunidade quilombola.

Os momentos festivos atuam na convergência de dificuldades e potencialidades locais. Expõe contrastes e aproxima as diferenças, estabelecendo pontes entre “opostos inconciliáveis” (Amaral, 2012). Ao acompanhar a realização destas três festas, é possível perceber por exemplo, as múltiplas influências que seduzem os jovens da marujada e provocam o desânimo do mestre do grupo. A possibilidade de viagens é o maior estímulo para ensaios e apresentações da marujada, que se mantém coeso apesar das distrações, já que normalmente é formado por familiares e amigos próximos. Percebemos ainda o papel das mulheres na execução de ações importantes como o cuidado com as roupas, com o alimento e limpeza. Cuidados cotidianos que até se confundem com afazeres domésticos e que no contexto local representam aspectos importantes de uma produção cultural de base.

Assim, a pesquisa buscou revelar, por meio da etnografia, as manifestações culturais tais como vividas e representadas por seus próprios atores. Um ambiente de construção de políticas a partir de saberes próprios, que revela contrastes e guarda em si um potencial de transformação social. Olhar para este ambiente a partir de quem faz a cultura acontecer é fundamental para superar narrativas únicas e valorizar a diversidade nos momentos em que os conflitos se apresentam e as mediações são necessárias. A pesquisa revela a importância de novos protagonistas e como a cultura local se afirma como um lugar de construção de um ser social autônomo.

[1]Gestora cultural, fotógrafa e Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBa. Membro do Observatório da Diversidade Cultural

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