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Afaste de nós esse cálice

No dia 12 de outubro de 2017, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) divulgou um vídeo institucional comemorativo para o dia das crianças, intitulado “ A hora do lanche . Nele, Femmenino, personagem drag queen criado pelo artista Nino Barros, visita o Colégio de Aplicação João XXIII e conversa descontraidamente com estudantes de diversas faixas etárias. Femmenino se dirige às crianças para saber o que elas estão levando para lanchar e o que gostariam de ganhar no dia das crianças. A partir das respostas, o artista incentiva uma reflexão sobre o que diferencia um presente comumente dado a uma menina e um presente dado a um menino. Em outras palavras, questionava a obrigatoriedade de as meninas sempre receberem objetos cor de rosa e os meninos, algo azul.
O que era para ser o início de um debate sobre imposições culturais de gênero acabou por render muita dor de cabeça à UFJF. Acusada de desrespeitar o Plano Municipal de Educação de Juiz de Fora (Lei 13.502/2017), o vídeo foi alvo de impugnação pelo conselheiro tutelar Abraão Fernandes, que protocolou junto ao Ministério Público Federal um pedido de providências. No requerimento, ele alegou que não seria uma questão de homofobia, mas sim de respeito à legislação municipal e nacional de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes.
O estopim da indignação do conselheiro tutelar foi supostamente uma das falas da drag queen. Em um determinado momento, ela pergunta a uma das crianças qual a visão dela sobre as diferenças tradicionais entre brinquedos de meninos e meninas. Ao ouvir a resposta de que isso seria preconceito, o artista arremata com a frase: “Viu? Toma, família brasileira! Vamos embora, gente!”.
O “Toma, família brasileira” bastou para que Abraão Fernandes argumentasse que a drag estaria desrespeitando a instituição familiar, defendendo abertamente a questão da ideologia de gênero. O conselheiro também reiterou que a família estaria sendo tratada com desdém e em tom pejorativo, pedindo providências em desfavor da escola e do artista. O seu grande receio, em suma, era que o debate proposto autorizasse “desdobramentos ideológicos” que demandariam “uma análise mais prudente”.

Vídeo Na Hora do Lanche. Fonte: TV UFJF

Mandar alguém “tomar alguma coisa em algum lugar”, realmente, não é a mais elegante das condutas. Entretanto, a reação desproporcional que se seguiu a essa frase, sobretudo o discurso de ódio dos internautas, foi muito além do que a universidade ou o artista esperavam.
 Por outro lado, também não se pode afirmar que o conselheiro tutelar estivesse totalmente desamparado pela legislação municipal. Afinal, ele agiu com base na brecha existente no plano municipal de educação de sua cidade, que expressamente faz menção ao modo como se deve abordar a diversidade. A redação original da Lei 13.502/2017 foi expressamente alterada para que nela constasse uma emenda, proposta pelo vereador André Mariano (PSC), no sentido de que o termo “diversidade” fosse interpretado e utilizado de “forma estrita”. De acordo com o texto, a promoção da cidadania e dos princípios inerentes aos direitos humanos não poderia se sobrepor aos “direitos dos pais à formação moral dos filhos e nem interferir nos princípios e valores adotados no ambiente familiar”.
Como se vê, definir e colocar em prática o conceito de diversidade não é das tarefas mais fáceis, uma vez que a compreensão desse fenômeno estará sempre sujeita a censuras. No caso, a legislação juizforana que deu sustentação à celeuma optou por reconhecer a diversidade, mas com reservas. É como se a câmara municipal dissesse: ok, reconhecemos a existência de algo que se chama diversidade e até mesmo a sua proteção constitucional, mas a formação moral de nossas crianças cabe só aos nossos tradicionais núcleos familiares. Rejeitamos os debates polêmicos e a possibilidade de arejamento de ideias. Optamos pela tradição e nos recusamos a questionar qualquer imposição cultural de gênero. Fiquemos como estamos. Afaste de nós esse cálice.
E assim, o atentado à diversidade ocorrido na Zona da Mata acabou chegando ao conhecimento do presidenciável Jair Bolsonaro, que fez disso mais uma plataforma para avivar o seu discurso moralizante e excludente, com fins meramente eleitoreiros. Reacendeu-se o discurso de intransigência nas redes sociais e o artista Nino de Barros foi alvo de ataques e xingamentos, aos quais preferiu não responder diretamente. Em sua defesa, alega que sua fala foi tirada de contexto, que o vídeo usado pelos seus opositores foi editado e distorcido e que sua proposta inicial não era questionar a existência de meninos e de meninas. A ideia era, tão somente, questionar o direcionamento de brinquedos a meninos e meninas de acordo com a cor, o conhecido padrão rosa versus azul.
Mas isso não bastou para apaziguar o estrago e evitar a chuva de análises superficiais sobre o vídeo, sem sequer se considerar a mera possibilidade de se abrir para o rico debate que ela propunha.
De tudo isso, concluímos que a diversidade ainda é tema indigesto para grande parte da sociedade. O fomento à reflexão sobre o gênero nas escolas poderia ser usado não só para combater a LGBTfobia, mas a própria cultura do machismo, a que todos estão sujeitos, independentemente do sexo e da orientação sexual. Em última análise, reconhecer a diversidade é respeitar os próprios direitos humanos.
Todavia, nem tudo está perdido. A escolha da UFJF de propor o debate contra o reforço dos estereótipos que causam sofrimento não encontrou somente opositores. A OAB/MG Subseção Juiz de Foral emitiu brilhante carta aberta em apoio à instituição, da qual vale destacar o seguinte trecho, que muito bem resume o posicionamento do Observatório da Diversidade Cultural a respeito da questão:
“Fomentar reflexão sobre gênero nas escolas é contribuir para a desconstrução da cultura do machismo, que produz das mais diversas violências contra as mulheres, desde a mais tenra idade; para o combate à LGBTfobia, que mata diariamente seres humanos no Brasil; é contribuir para o reconhecimento da diversidade e respeito aos direitos humanos. Trata-se de construir uma educação socialmente referenciada; de observar normas constitucionais: “art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (CF/88)” [grifo nosso]. Trata-se de observar, ainda, normas internacionais, como o Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999) e, na mesma linha, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992), abaixo parcialmente transcrito:
“Artigo 13. […]. § 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” [grifo nosso]
Omitir-se quanto aos domínios inteiros da vida, quanto à diversidade que marca as vivências humanas é uma escolha, ideológica (na medida em que não há neutralidade), perigosa, ofensiva ao pluralismo, ao direito de aprender a partir de variadas perspectivas. 
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar pedido de liminar na ADI 5537 em março de 2017, com relação a projeto de lei do Estado de Alagoas na trilha do Programa Escola Sem Partido, reafirmou a necessidade de a educação promover o pluralismo de ideias e se garantir a liberdade no ambiente escolar: 
Há uma evidente relação de causa e efeito entre o que pode dizer um professor em sala de aula, a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento e a tolerância à diferença. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo.
A Universidade Federal de Juiz de Fora e o Colégio  de Aplicação João XXIII fizeram uma escolha pouco comum nesse último dia das crianças: ao invés de reforçar estereótipos que causam sofrimento, optaram por comemorar essa data apostando em respeito, liberdade e cidadania. Que sejam tomadas as devidas providências: que escolhas como essa se multipliquem.
 
As Comissões de Direitos Humanos e Cidadania e de Defesa dos Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens da OAB/JF, nesses termos, prestam seu apoio a essa iniciativa e a todos e todas que nela se engajaram”.

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