REPRODUÇÃO: NONADA
Ilustração da capa: Joana Lira
(Descrição da imagem: um homem cego com seu cão-guia e uma mulher cadeirante assistem a um espetáculo de teatro, no qual um ator, emoldurado por cortinas vermelhas, se ajoelha em cima do palco, decorado com lua e estrelas)
Josy desfila com cuidado pelo térreo da Casa de Cultura Mario Quintana, um dos equipamentos culturais mais conhecidos e frequentados de Porto Alegre. O piso formado por alguns degraus e pedras irregulares não é nada acolhedor a quem não enxerga, como é o caso de Josy, nem a quem tem baixa visão. A situação se repete em outros pontos culturais e museus da cidade, no quais escadas, rampas erroneamente improvisadas e pouca sinalização desencorajam pessoas com deficiência a buscarem eventos culturais. Para além da mobilidade física, também é uma barreira a ausência de recursos acessíveis em relação à própria obra artística, como a audiodescrição e legendas.
Integrante do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão e do Movimento de Mulheres com Deficiência Inclusivass, iniciativa da ONG Coletivo Feminino Plural que promove ações protagonizadas e voltadas a mulheres com deficiência, Josiane França tem dois filhos e trabalha como modelo. Ela também é uma líder nata, mobilizando a comunidade de pessoas cegas da capital a comparecer nas poucas opções com audiodescrição de cinema e teatro da cidade divulgadas e demandando melhorias na acessibilidade aos funcionários dos equipamentos culturais.
Na tarde em que nos encontramos, Josy conversava com o técnico Leonardo Nunes, responsável pelas sessões de cinema acessíveis na casa. A modelo é uma das 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência física, motora ou intelectual no Brasil. “Nada de piso tátil”, lamentava Josy ao técnico durante nossa entrevista. “Realmente, eu não tinha ideia, que bom que tu estás me falando”, respondeu Nunes, que me contou mais tarde que não recebeu treinamento específico para lidar com a acessibilidade. Programas de capacitação e especialização destinados aos profissionais da cultura crescem no país, mas especialistas apontam que ainda não é possível afirmar que de fato existam políticas de acessibilidade cultural no Brasil.
Josy, em primeiro plano, em ação do Inclusivass (Foto: divulgação)
(Descrição da imagem: sentada ao lado de Carol Santos, mulher cadeirante, que também é integrante do Inclusivass e de outra mulher não-identificada, Josy veste uma camiseta do coletivo Inclusivass e fala ao público)
Assim como a maioria dos projetos de acessibilidade no Brasil, as sessões com audiodescrição, legenda e tradução para LIBRAS da casa cultural porto-alegrense são recentes, coisa de um ou dois anos no máximo. São os primeiros resultados da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei Nº 13.146/2015), que estabelece metas e prazos para assegurar direitos em diversas áreas, como saúde e educação.
O capítulo IX diz respeito ao direito à cultura, esporte, turismo e lazer, com alguns prazos estabelecidos. O § 6o do capítulo 44 determina que “as salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência”, com prazo a ser cumprido até 2019. O dispositivo também traz um avanço em relação à Lei Rouanet, ao determinar que “os incentivos criados por esta Lei somente serão concedidos a projetos culturais que forem disponibilizados, sempre que tecnicamente possível, também em formato acessível à pessoa com deficiência.”
Regulamentada a legislação, a questão ainda passa por dificuldades culturais e pragmáticas. “Historicamente, há um grande distanciamento entre as instituições culturais e as pessoas com deficiência, que vivem numa tradição de exclusão e numa invisibilidade histórica em relação à sociedade. Esse é o primeiro obstáculo, as instituições precisam fomentar a formação de público-plateia, articulando-se com os movimentos culturais das pessoas com deficiência”, avalia a professora Patrícia Dorneles, coordenadora do Curso de Especialização em Acessibilidade Cultural da UFRJ.
Josy diz que a audiodescrição mudou sua vida, desde que descobriu o recurso e assistiu ao primeiro filme, em 2013. Desde então, não parou mais. Conta que já esteve na plateia tantas vezes no espetáculo “Frida Kahlo, à Revolução!”, que chegou a brincar com a dramaturga e atriz Juçara Gaspar que ela mesma poderia atuar na peça por já saber o texto. “Eu fui atrás, peguei o contato dos profissionais que fazem audiodescrição. Eles estão percebendo que tem público, mas é preciso que eles lembrem as pessoas, que haja mais divulgação. Pode melhorar muito, pode ter mais programação e pode ter lançamento. Quantos lançamentos com audiodescrição tem?”, questiona.
Advogada e ex-presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência de Porto Alegre, Liza Cenci é cadeirante e atua há anos no âmbito das políticas públicas. Ela aponta a falta de sensibilização da sociedade e do poder público como um dos principais problemas da área. “Temos legislações o suficiente, precisamos que haja sensibilidade e fiscalizações dessas ações. É lamentável estarmos no século XXI passar por situações de privar pessoas com deficiência ao acesso à cultura”, afirma.
(Descrição da imagem: em uma sala de cinema lotada, formada por poltronas vermelhas, um grupo de cadeirantes espera para assistir a um filme)
A Casa de Cultura Mario Quintana é uma das instituições públicas que vem buscando cumprir o prazo de quatro anos da Lei. Apesar de alguns erros apontados por Josy, entre eles uma rampa muito íngreme que não facilita o acesso à bilheteria, a biblioteca Paulo Amorim exibe, desde 2018, sessões periódicas de filmes com recursos acessíveis e entrada franca. No histórico Theatro São Pedro, um dos mais conhecidos e frequentados de Porto Alegre, as escadas são uma das principais reclamações das pessoas com deficiência.
Certa noite, Josy e seus amigos, também com deficiência visual, foram assistir à peça “A visita da velha senhora”. No imponente teatro, o lugar reservado a eles foram os camarotes.“Era uma peça muito longa, mais de duas horas, e as cadeiras antigas, tem uma hora que tu já não consegue mais. Geralmente, em todos os lugares, os funcionários são super atenciosos, mas para chegar nos lugares…”, ela deixa a conclusão no ar. Com relação aos prédios históricos, o Iphan disponibiliza guias técnicos para facilitar o cumprimento da Portaria n° 623/2009 (do próprio órgão), que estabelece um conjunto de ações no campo da mobilidade e acessibilidade urbana.
Até 2017, 1.520 museus brasileiros (41% do total) apresentavam “algum tipo de instalação/infraestrutura para atendimento de pessoas com deficiência”, de acordo com o monitoramento do Plano Nacional de Cultura (PNC). Não é possível avaliar, pelos dados, se tais recursos apresentados são suficientes ou estão funcionando na prática. Os números são relativos à meta 29 do PNC, que tem o objetivo de que 100% dos equipamentos culturais públicos brasileiros possuam recursos acessíveis. A página do PNC informa ainda que 525 bibliotecas públicas (9%) e 139 centros culturais (6%) disponibilizam recursos acessíveis. Não há dados sobre os cinemas, arquivos públicos e teatros.
Programação acessível na Feira do Livro de Porto Alegre é rara (Foto: Diego Lopes/divulgação)
(Descrição da imagem: em um auditório na Feira do Livro de Porto Alegre, grupo de crianças em cadeiras de rodas aplaude um artista que não é visto na foto)
Ainda que a Lei 13.146 regulamente a questão e os produtores e gestores avancem no sentido de uma maior profissionalização na área, a falta de recursos financeiros é ainda uma das principais barreiras da área. “A legislação aponta prazos, mas não se aumentou o orçamento para isso. Ou seja, com isso a acessibilidade cultural vira mais um elemento interno de um projeto cultural que disputa recurso com as outras etapas da produção que também são importantes. Então é necessário ampliar o orçamento principalmente para projetos apoiados com recurso público para que se efetivem com qualidade essas ações”, explica Patrícia Dorneles.
Com relação à produção acessível que já vem sendo apresentada nos teatros e cinemas do país, Josy acredita que é preciso haver um esforço de divulgação dos profissionais de cultura, para que de fato o anúncio dessas sessões realmente chegue ao público interessado. Ela ressalta que as pessoas com deficiência têm outros direitos pelos quais também precisam lutar, como saúde e mobilidade, por isso a cultura acaba sendo destinada ao segundo plano.
Para Patrícia, “70% da população das pessoas com deficiência estão na linha da vulnerabilidade social, ou seja, são pessoas de baixa renda, então já tem muita dificuldade em garantir outros direitos, então a cultura se torna um elemento às vezes não-imaginado. A luta das pessoas com deficiência pela cultura sempre foi algo que esteve distante até de tantos outros segmentos da população brasileira”, diz.
Direito ao artista: entrevista com Luciano Mallmann
Foi na escola, quando ainda era criança, que Luciano Mallmann aprendeu a amar as artes cênicas. Ele participava de todas as peças do grupo de teatro do colégio, por isso não foi surpresa que começasse a trabalhar como ator profissional já aos 21 anos, na TV e nos palcos. Em 2004, quando morava no Rio de Janeiro, um acidente em uma acrobacia aérea de circo causou uma lesão medular, que o deixou de cadeira de rodas desde então.
Voltou a Porto Alegre e produziu alguns espetáculos na cena gaúcha. Ao criar “Icaro”, sua mais recente produção, o artista viu sua obra ganhar asas e rodar o Brasil, um verdadeiro sucesso de bilheteria. No monólogo, Luciano mistura realidade e ficção ao apresentar seis relatos de cadeirantes, que também são histórias universidades sobre valores humanos. Nesta entrevista, Luciano falou sobre as dificuldades específicas dos artistas com deficiência no país. Com exceção de trabalhos relativos à reabilitação, são inexistentes políticas públicas que incentivem o ingresso e o desenvolvimento desses artistas na profissão.
Luciano, em Icaro (Foto: Pedro Portugal/divulgação)
(Descrição da imagem: homem de cabelo curto grisalho, camisa cinza e calça marrom, sentado numa cadeira de rodas, em cima do palco e em frente a um fundo preto)
Nonada – Primeiro, queria saber um pouco da tua história, como tu te tornou ator e sua vivência pessoal nessa questão da acessibilidade na arte. Principalmente, com o espetáculo Ícaro, que foi um sucesso, né?
Luciano – Eu sou ator desde que me conheço por gente, participava de todas as peças no meu colégio, desde pequeno. Aos 21 anos comecei a trabalhar como ator profissionalmente em Porto Alegre, gravando comerciais de publicidade para TV e trabalhando com teatro. Em 1996 fui morar no Rio de Janeiro, para estudar e buscar novas oportunidades. Fiquei morando e trabalhando lá até 2004, quando acabei me acidentando em um treinamento de acrobacia aérea de circo e sofrendo uma lesão medular, o que me deixou de cadeira de rodas desde então. Voltei a morar em Porto Alegre e a trabalhar com Publicidade e Propaganda (sou formado em Comunicação Social pela PUC/RS). Em 2011 produzi e atuei num espetáculo de Nelson Rodrigues, chamado A Mulher Sem Pecado.
Em março de 2017, estreei ÍCARO, um monólogo escrito, produzido e atuado por mim e que tem a direção da Liane Venturella. ÍCARO é um espetáculo dentro da linha de teatro documental, porque escrevi baseado nas minhas experiências desde que me tornei cadeirante, nas minhas percepções sobre a lesão medular e também é inspirado em pessoas que conheci ao longo destes 14 anos, e que como eu são cadeirantes. Já fiz quatro temporadas de sucesso em Porto Alegre e atualmente estou viajando com o espetáculo pelo Brasil, participando de festivais.
Nonada – Na sua avaliação, qual a situação dos artistas com deficiência física no Brasil? Tem conhecimento de políticas públicas que incentivem a participação ativa no fazer cultural?
Luciano – Eu desconheço políticas públicas que incentivem a participação de pessoas com deficiência no cenário cultural. Uma das coisas boas é que temos direito à meia entrada em teatros, shows, cinemas. Mas com relação a produzir cultura, sei que existem escolas e entidades que prestam assistência a pessoas com problemas no aparelho locomotor e outros tipos de deficiência que trabalham com arte. Mas isso num cenário de aprendizado, geralmente com foco na reabilitação e até uma forma de reintegração na sociedade. Agora uma política que facilite e incentive uma profissionalização e promova um produção cultural de artistas com deficiência eu não conheço.
Nonada – Quais são os principais obstáculos que tu encontra para este fazer artístico?
Luciano – Antes de qualquer coisa, na atual situação de nosso país, acho que todo artista, com ou sem deficiência encontra obstáculos e limitações para desenvolver dignamente seu ofício. Cada vez mais existem menos editais, menos dinheiro liberado para fazer cultura e uma desvalorização cada vez maior da profissão de artista. Mas agora no que se refere à acessibilidade, muitos teatros se preocupam com acessibilidade do público com deficiência mas esquecem da acessibilidade dos artistas com deficiência. Nem todos teatros possuem elevadores ou rampas de acesso ao palco e aos camarins e nem piso tátil para cegos. Eu, por exemplo que sou cadeirante, não deixo de me apresentar em nenhum lugar, faço questão de ir mesmo nos teatros que não tenho acesso aos bastidores. Peço ajuda e combino de me carregarem se for preciso. Dessa forma eu mostro na prática a necessidade de se ter uma adaptação, e que muitas vezes pode ser muito simples, como uma rampa móvel por exemplo.
Nonada – E como tu avalia os equipamentos culturais de Porto Alegre nessa questão?
Luciano – Acho que falta um cuidado maior com relação à acessibilidade aos bastidores dos artistas com deficiência. São poucos os teatros te possuem uma acessibilidade perfeita em todos os aspectos: acesso ao palco, camarins e banheiros dos camarins. Mas do jeito que as coisas andam, daqui a pouco até os artistas que não possuem nenhum tipo de deficiência vão ter acesso aos nossos teatros.
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