Incluir a gastronomia brasileira como segmento beneficiário da política de incentivo fiscal. Com esta missão, aguarda aprovação na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6562/13 que visa alterar a Lei 8313, de 23 de dezembro de 1991, mais conhecida como Rouanet. A mudança proposta, de autoria do deputado mineiro Gabriel Guimarães, pretende apoiar os processos de produção, pesquisa, preservação e difusão dos diversos modos de comer e preparar os alimentos que, por sua vez, configuram como prática cultural a gastronomia. As práticas gastronômicas abrangem rico universo de bens culturais formado por utensílios, ingredientes, equipamentos e saberes que traduzem características regionais e identitárias do povo brasileiro.
Algumas leis estaduais de incentivo à cultura incluíram a gastronomia como, por exemplo, as do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. A perspectiva é que, uma vez o setor contemplado na Rouanet, o incentivo a projetos culturais atenda às demandas e expressões diversas na área, especialmente, em relação a projetos que não se enquadram em programas desenvolvidos pelo Ministério da Cultura (MINC). Poderão ser contemplados eventos, pesquisas, publicações, bem como criação e manutenção de acervos relativos ao crescente setor gastronômico nacional. A proposta tramita em caráter conclusivo que dispensa a deliberação do Plenário, sendo o projeto votado pelas comissões designadas para analisá-lo: Cultura; Finanças e Tributação; Constituição e Justiça e de Cidadania.
O texto do projeto de Lei 6562/13 defende que a inclusão da gastronomia como segmento beneficiário favorece a dimensão econômica da atividade cultural, estimulando a captação de recursos, com a promoção do desenvolvimento e crescimento do setor, bem como ainda, conforme ressalta a dimensão antropológica da mudança: “a medida tem o valor simbólico de constituir o reconhecimento oficial dessa manifestação como parte integrante da cultura nacional, merecedora de fomento e de apoio do poder público”.
Política cultural
A Lei Rouanet (1991) dispõe do Programa Nacional de Cultura (Pronac), com a oferta de três mecanismos de captação para o setor cultural brasileiro: Fundo Nacional de Cultura (FNC), Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e o incentivo a projetos culturais que permite, especificamente, a aplicação de parcela do Imposto de Renda por cidadãos (pessoas físicas) e empresas (pessoas jurídicas).
São contemplados pela Rouanet os segmentos: artes cênicas; livros de valor artístico, literário ou humanístico, música erudita ou instrumental; exposições de artes visuais; doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para manutenção desse acervo; produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragens; preservação do patrimônio material e imaterial; construção e manutenção de salas de cinema e teatro que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em municípios com menos de 100 mil habitantes.
A inclusão da gastronomia na Lei Rouanet ocorre exatamente no momento que o novo ministro da Cultura, Juca Ferreira, recoloca em discussão o principal mecanismo de fomento da cultura nacional. Conforme declarou em entrevista concedida em 6 de fevereiro ao jornal O Globo, a gestão do ministro levanta a bandeira da redução do teto da renúncia fiscal para 80%, em vez dos atuais 100% deduzíveis pelas empresas no valor de seus impostos, quando investem em projetos culturais.
A ideia do ministro é gerar mecanismos de avaliação de projetos que promovam equidade na distribuição dos recursos, a fim de financiar a cultura em todo o território nacional e suas linguagens. “A Rouanet dá a aparência de parceria público-privada, mas é a empresa decidindo onde vai aplicar o dinheiro, é a privatização de recursos públicos para construir imagens de empresas, algumas delas altamente lucrativas”, afirmou Juca.
Para o ministro, com a revisão proposta, a atual crítica aos excessos concedidos ao mercado permanece, no que se refere, desta vez, ao dirigismo público que deve ser enfrentado, segundo ele, com a “participação da sociedade, transparência, lisura política, não dentro do balcão de uma repartição”.
Atualmente, a Lei Rouanet responde por cerca de 80% dos recursos públicos de incentivo à produção cultural brasileira. Para o ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia, Albino Rubim, é urgente discutir o sistema de financiamento da cultura, para revisão do mecanismo da Lei Rouanet, porque, fundamentalmente, este não apresenta a “complexidade necessária a partir do conceito ampliado de cultura”. O resultado desse modelo, como enfatiza o ex-secretário, é a “predominância brutal” das leis de incentivo, refletindo processo de financiamento incompatível com as políticas de diversidade cultural vigentes.
Para ele, a discussão e uma nova lei deveriam equacionar e tratar do sistema de financiamento adequado à visão ampliada de cultura e às políticas de diversidade cultural. Nesse sentido, adverte Rubim, apenas o acréscimo de novo setor constitui ação insuficiente para a garantia do atendimento ao direito à cultura por meio de políticas públicas. “Por óbvio, que o novo e correto conceito ampliado de cultura incorpora a gastronomia, como também outras áreas culturais. Mas a questão não é tão só e centralmente esta”, critica. Em artigo publicado no portal Uol, em 13 de fevereiro, “Juca Ferreira e o financiamento à cultura no Brasil”, o pesquisador (CNPq) afirma: “O descompasso entre as políticas de financiamento, centradas nas leis de incentivo, e as políticas de diversidade cultural quase inviabiliza a realização de tais políticas no país”.
Postura convergente tem a pesquisadora e consultora na área de Políticas públicas, Isaura Botelho, que questiona os fundamentos sobre os quais se desenvolve a discussão. É equivocado, na sua visão, tratar a Lei de benefício fiscal como paradigma determinante da inclusão ou não de um segmento como cultural. “Reconhecer determinado setor como parte da cultura não se esgota e nem começa por aí. Significa sim ter uma política de desenvolvimento desse segmento: criar espaços de discussão de prioridades, ver as necessidades de formação, as questões que envolvem a profissionalização e a inserção no mercado, por exemplo”, argumenta.
Em tese, políticas culturais devem promover o estímulo a novos criadores, espaços e formas artísticas, bem como visam buscar o equilíbrio desse apoio ao conjunto do território e, como explica a pesquisadora, “as leis são uma pequena parte de uma política cultural, cujo papel principal é, exatamente, atender ao mercado. Portanto, é um equívoco esperar desse mecanismo – lei de incentivo – o poder de equilibrar demandas, zelar pela boa distribuição territorial ou ser democrática. Os orçamentos públicos é que devem ter esse papel”.
A ex-secretária de economia criativa do MINC, Claudia Leitão, concorda quanto às distorções na distribuição dos recursos da Lei Rouanet, cujos diagnósticos merecem, acertadamente, a crítica do ministro Juca Ferreira. Ela relaciona os principais problemas, descrevendo-os sob efeito cascata: apesar dos milhares de projetos analisados pelos técnicos do MINC, apenas 20% conseguem captar de recursos; 80% estão concentrados em dois estados, Rio de Janeiro e São Paulo; dentro destes dois estados, 60% ficam nas respectivas capitais; os proponentes que captam são, geralmente, os mesmos, aqueles que dão retorno à imagem da empresa que patrocina.
A ex-secretária lembra ainda a importância do Projeto de Lei 6.772/2010 que institui o ProCultura, ao prever o Fundo Nacional da Cultura (FNC) como principal mecanismo de financiamento federal. Para tanto, o FNC deve ser transformado em fundo de natureza contábil e financeira – podendo, ainda, receber recursos por meio de doações e patrocínios – para repasse de recursos não utilizados em um exercício para o ano seguinte.
“O projeto de reforma da Lei Rouanet, conhecido como Procultura, ainda tramitando pelo Senado Federal, teve sua versão inicial modificada. É preciso estar atento a essas modificações que foram, pouco a pouco, sendo produzidas ao longo do seu processo de tramitação no Congresso. A presença dos lobbies das indústrias culturais, lamentavelmente, é muito mais eficaz em impor suas propostas à Lei do que a pressão e as demandas das minorias, cuja contribuição é essencial para um novo projeto de financiamento à cultura no país”, constata.
Apesar das críticas à Lei, a ex-secretária avalia a inclusão da gastronomia na lei Rouanet como medida “estratégica para o país”, frente à restrição do setor ao contexto de atuação do IPHAN, ou seja, enquanto patrimônio cultural a ser valorizado e protegido. “Essa compreensão se revela, paradoxalmente, na sua ausência como setor cultural autônomo, dentro do Conselho Nacional da Política Cultura(CNPC) do Ministério da Cultura. Se observarmos o papel estratégico da gastronomia no desenvolvimento de vários países do mundo, poderemos observar como o Brasil subestima a gastronomia, seja na sua economia criativa, ou no seu turismo cultural. Acredito que os Governos federal, estadual e municipal devem oferecer a esse segmento cultural, tão importante no país, uma maior autonomia, representatividade e organização, a partir da formulação de políticas públicas. E que a Lei Rouanet deve fomentar essa expressão cultural”, justifica.
Dimensões da cultura
O texto do projeto de Lei 6562/13 defende que a inclusão da gastronomia como segmento beneficiário favorece a dimensão econômica da atividade cultural, estimulando a captação de recursos, com a promoção do desenvolvimento e crescimento do setor, bem como ainda, conforme ressalta a dimensão antropológica da mudança: “a medida tem o valor simbólico de constituir o reconhecimento oficial dessa manifestação como parte integrante da cultura nacional, merecedora de fomento e de apoio do poder público”.
A ex-secretária de economia criativa ressalta que a gastronomia deve ser vista como prática cultural e artística, na perspectiva tridimensional da cultura, antropológica, cidadã e econômica, adotada pelo MINC a partir de 2003, durante a gestão do ex-ministro Gilberto Gil. “Na dimensão antropológica da cultura, a gastronomia está. Cabe o Ministério ampliar seu espectro de políticas, lutar por um maior orçamento, por recursos humanos qualificados, capazes de permitir ao MINC abraçar a diversidade cultural brasileira de forma ampla e generosa. Não se trata de cair na armadilha de ter que fazer escolhas a partir de uma falsa dicotomia entre um Ministério das Artes e um da Cultura”, defende.
“Em muitas regiões, a gastronomia, no seu sentido mais amplo, deverá ser considerada como uma área de prioridade de desenvolvimento sustentável, entendendo a gastronomia como um dos importantes segmentos culturais, sociais, turísticos e, principalmente, focado nas suas memórias afetivas”, afirma, por sua vez, a gestora cultural Maria Helena Cunha, destacando os hábitos culturais que traduzem a memória social, representantes, portanto, dos saberes tradicionais de diversas realidades culturais dos territórios brasileiros.
“A gastronomia que nos referimos aqui está voltada para a produção local e artesanal de produtos típicos das regiões brasileiras, dos saberes tradicionais de preparação dos alimentos, seja no processo da produção artesanal do queijo de Minas, hoje já tombado como patrimônio imaterial, os doces feitos nos tachos, a comida indígina, do norte, baiana ou dos pampas gauchos, enfim, de norte a sul do país podemos viajar pela culinária de cada local como um exercício de imersão cultural. E por que não estar inserida como segmento a ser incentivado pela Lei Rouanet?”, questiona a gestora.
A gestora endossa as críticas à Lei Rouanet, defendendo a convergência e o fortalecimento da área cultural em torno da discussão sobre política pública de financiamento para a cultura no país. A dependência excessiva dos recursos de leis de incentivos fiscais revela, na ponta do processo, a instabilidade do investimento em cultura por meio dessas legislações, que dificulta o planejamento a médio e longo prazo, na medida que os agentes culturais submetem-se à lógica da aprovação anual de projetos.
O debate em torno do projeto de lei 6562/13 amplia a discussão sobre a inclusão da gastronomia na Lei Rouanet, para problematizar o modelo de financiamento da cultura e destacar a dependência, por artistas e agentes culturais, da lógica de financiamento baseada em leis de incentivo, como obstáculo ao desenvolvimento e sustentabilidade de projetos na área. Em última instância, a discussão quanto a alternativas possíveis a esse modelo reforça a premissa de que leis de incentivo à Cultura e atividades ligadas ao marketing cultural das empresas não podem substituir a função das políticas públicas destinadas a proteger e promover a diversidade das expressões culturais brasileiras, necessariamente voltadas – tendo em vista a diversidade como projeto político – à garantia dos cidadãos ao direito à cultura.
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