PREFÁCIO DO LIVRO
ALIMENTO DO INTELECTO
A primeira graduação acadêmica de Daniela Lima de Almeida foi em Economia Doméstica, curso cuja designação para Aristóteles, autor, dentre tantos outros, da Poética e da Retórica, corresponderia a algo muito próximo de um pleonasmo literário, considerando que a etimologia da palavra economia advém de matrizes gregas, a saber: oikos (casa) + nomos (normas), cuja junção significa “administração da casa”. Nessa mesma seara, Daniela fez Especialização em Gestão da Qualidade em Serviços de Alimentação.
Por volta de 2007, sua vida acadêmica principiou uma mudança significativa, quando ingressou no Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), defendendo, ao final da graduação, a monografia “O Direito à Igualdade como Humano e Fundamental: evolução nas constituições brasileiras e sua aplicação atual”; na mesma instituição, sem intervalo, fez também o Curso de Mestrado em Direito Constitucional, cuja conclusão redundou na dissertação intitulada “Dimensionamento Constitucional da Liberdade de Expressão Artística no Brasil”, que forma o substrato deste livro.
Da minha parte, tive a sorte de ser o orientador dos dois trabalhos, resultantes que foram, mais diretamente, das disciplinas Teoria dos Direitos Humanos (da qual Daniela foi monitora) e Direitos Culturais, pela oportunidade de conviver com uma pessoa sedenta de conhecimentos, com forte formação ética e humanística e que, à semelhança de Bobbio, sempre demonstrou a preocupação primeira de explicar a si própria os conteúdos que estuda para só depois disso partilhar, em mesa bem posta, seu conhecimento com os demais, razão pela qual é hoje admirada e querida professora de Direito na cidade de Fortaleza.
Se eu quisesse encontrar um ponto de contato entre a primeira e a segunda formação de Daniela, correria o risco, que efetivamente correrei, de agora ser repreendido pelo mesmo Aristóteles, a partir de ensinamentos contidos em seus estudos de lógica, do cometimento de uma falácia de ambiguidade, por usar uma mesma palavra com sentidos diferentes. Pois bem, o que há de comum entre as duas fases é a ideia de alimento: na primeira, alimento preponderantemente elaborado para manter o corpo; na segunda, para o intelecto. Desse último tipo de nutrição tratarei, doravante.
Como provedora de alimentos intelectuais, Daniela tem muita atenção aos seus convivas ao se dispor desenvolver um trabalho que demanda delicados e múltiplos ingredientes, cuja mistura, se não for adequadamente dosada, torna indigesto o resultado final. Seus desafios começam com o fato de que a predisposição para estudar a dimensão constitucional da liberdade de expressão artística no Brasil demanda, antes de tudo, desvendar os enigmas do inciso IX do Art. 5º da Constituição Brasileira de 1988, no qual está definido que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Trata-se de um enunciado normativo cheio de armadilhas, sendo uma delas a de fazer aparentar que as várias liberdades referidas teriam idêntico tratamento jurídico e, portanto, as mesmas dimensões constitucionais, o que é evidentemente incorreto e constatável por quem se dispõe a interpretar sistemicamente, no texto constitucional, cada uma das mencionadas liberdades. Para perceber as diferenças, basta lembrar que a liberdade científica é minorada pelos experimentos com seres vivos, principalmente os humanos; ou ainda que a liberdade de comunicação é constitucionalmente balizada por cautelas e medidas protetivas para com as pessoas de menos idade, dificuldade para divulgação de certos produtos, ou o próprio controle estatal sobre alguns meios. Com simplicidade e clareza, Daniela percebe esse complexo quadro constatando que “a Constituição de 1988 garante a liberdade de manifestação do pensamento, independente de censura ou licença, dispondo da liberdade de expressão como gênero, especificando-a em intelectual, artística, científica e de comunicação”.
Após contextualizar o quadro histórico-constitucional em que aparecem, apenas uma dessas liberdades, a artística, protagoniza as preocupações da pesquisadora, que almeja saber se o seu “tamanho” se enquadra no mantra jurídico de que não existem direitos ilimitados e se, mesmo tendo limites –essa é sua hipótese – eles são mais largos e mais elásticos que os das outras liberdades. E a preocupação é pertinente, sobretudo se se recorrer ao mito grego de Prometeu como o ícone representativo das manifestações culturais, lembrando que dentre suas peripécias está o furto dos dons dos deuses e deusas, para dá-los aos seres humanos, como a capacidade da criação, que somente se assemelha ao que é verdadeiramente divino quando se está no campo das artes. Assim, aparenta que, com o fogo roubado pelo titã, que sempre potencialmente se alastra para além do esperando, foi traçada a fronteira das possibilidades criativas e artísticas.
Para o enfrentamento do desafio de argumentativamente “medir” a liberdade que estuda, a autora tem que se arriscar e percorrer searas de terrenos movediços e incertos, principalmente os que levam à compreensão do que seja arte, pressuposto indispensável para o desenvolvimento do tema, que demanda saber se a reivindicação pelo exercício de atividade artística está lastreada numa manifestação que substancialmente pode ser assim considerada. Para esse propósito, inexoravelmente teve que se socorrer de campos do saber como a filosofia, a literatura ensaística e a sociologia, que secularmente fazem o mesmo percurso, quase sem porto seguro, dado que as manifestações artísticas geralmente sequer são consideradas como tal em dois momentos cruciais: em seu nascedouro, quando buscam legitimação, e quando afrontam algo do estabelecido, ou seja, sempre que ameaçam o status quo.
Dito desse modo, parece que, ultrapassada a barreira do reconhecimento, todas as manifestações artísticas deveriam ser aceitas ou toleradas, pois elas estariam numa zona que confere aos seus praticantes uma espécie de imunidade jurídica e até um múnus público de discutir, caso queiram, dada a noção de liberdade, as coisas como estão estabelecidas. É nesse ponto que surge o mais eloquente questionamento de Daniela: essa hipotética incumbência da arte vale para o caso de um ordenamento jurídico calcado em dogmas legitimamente construídos, como democracia, pluralismo político e cultural, dignidade humana, igualdade de gêneros, proteção da criança e do adolescente, e demais direitos individuais e coletivos?
A resposta, desta feita, é buscada preferencialmente no mundo jurídico que, porém, é observado em toda a sua complexidade, nas suas múltiplas fontes, e não apenas as parlamentares, mas também nas que emanam da jurisprudência, dos costumes, das práticas administrativas e dos comportamentos e usos sociais, dos distintos níveis de expressão, sejam conhecidos como segmentos da cultura popular ou da indústria cultural. O resultado é que a autora pontua a diferença entre “dimensionamento” e “censura” da atividade artística, observando que aquele confere o desenho constitucional do direito, em princípio livre, e cuja violação em face de outros direitos deve ser combatida pelos que se sentirem afetados; a censura é a poda prévia e institucionalizada da repressão cultural, já de há muito ideologicamente expurgada dos ordenamentos democráticos.
Em favor do dimensionamento a autora lembra que “até os teóricos mais liberais defendem que a liberdade de expressão não é absoluta, pois ela não pode atingir a um direito que para eles é ainda mais elevado, o de propriedade”. E, colocando-se no lugar dos mencionados teóricos, questiona se “teria o indivíduo o direito de exercer a sua liberdade de expressão artística utilizando material de outra pessoa, sem autorização, sejam os insumos, seja o muro de uma propriedade privada?”
Mas essa é apenas a resposta a uma hipotética contestação extrema que, por isso, legitima a autora a evidenciar os conteúdos, as formas e os agentes mais suscetíveis de gerar atritos e conflitos culturais entre a liberdade de expressão artística e outros valores constitucionais, nunca para defender que um se sobreponha ao outro, mas para deixar à disposição de uns e de outros as opções de se servirem dos conhecimentos que gerou para si e que, como boa alimentadora e professora que é, ficam a todos servidos, tal qual se faz com mesa farta.
Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho
Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza
Pesquisador-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais
Advogado da União
Serviço:
Autora: Daniela Lima de Almeida
Número de páginas: 169p.
Como adquirir: Enviar email para danielajuris@gmail.com
Valor: R$ 35,00 + postagem.
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