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O Carnaval, os preconceitos e a diversidade

Recomendações do Conselho Municipal de Igualdade Racial (COMPIR) de Belo Horizonte sobre condutas durante o carnaval pode ter produzido efeito contrário

Em meio a controvérsias de uso e convivência e no espaço urbano em diversas cidades, o Carnaval se firma a um só tempo como momento de liberdade e expressão, e de tensão e disputa. O Conselho de Igualdade Racial da capital mineira divulgou uma nota[1] no último dia 13 com a intenção de evitar práticas racistas, machistas ou homofóbicas.

Chamado livremente de cartilha por várias pessoas, o texto na verdade é uma nota curta e trata de questões objetivas, compartilhando algumas orientações que visam combater atitudes e o uso de fantasias entendidas como incentivadores de preconceito. Foi uma ação específica do colegiado do COMPIR como forma de propor mudanças na postura das pessoas sobre sete questões importantes:

  1. O assédio à mulher negra.
  2. A representação caricatural do povo negro por meio da pintura da pele com tinta preta (também conhecido como blackface).
  3. O uso representativo / recreativo de roupas e estilos de cabelo próprios das religiões de matriz africana e indígena.
  4. A ridicularização de elementos da cultura cigana, por reforçar estereótipos das práticas e vestimentas dos ciganos.
  5. Recomendação para evitar homens vestidos de mulher, por reforçar estereótipos de gênero.
  6. O respeito à população negra LGBTQI[2].
  7. Criminalização e estética da cultura negra e periférica (que também se refere à violência contra jovens negros).

Com um objetivo inicial positivo, as recomendações do Conselho sobre como não adotar práticas preconceituosas no período do carnaval foram consideradas por muitos como uma espécie de cerceamento à expressão da sociedade[3]. As questões levantadas tanto pelas recomendações quanto pelas reações contrárias nos levam a um problema central no debate sobre a diversidade cultural: a questão da apropriação cultural[4]. Abaixo listamos alguns textos sobre esse tema, que é central neste debate. A nota do COMPIR aponta claramente isso, quando diz, por exemplo: “não nos sentimos homenagead@s com essas fantasias” e “usar objeto sagrado de maneira recreativa é reduzir a cultura indígena ao exótico”.

A pesquisadora Nilma Lino Gomes[5] aponta a questão de forma mais direta, afirmando que os símbolos e características da cultura negra são questões identitárias e se descontextualizadas descontextualizadas continuamente podem reforçar uma naturalização de certos preconceitos e até interferir nas representações sobre o negro na sociedade: “a discussão sobre a apropriação cultural do corpo não pode ser feita sem levar em consideração o contexto histórico, social e etnográfico no qual os sujeitos […] estão inseridos. É nesse contexto que os sujeitos e seus corpos adquirem significação.”

Em um momento de acirramento de ânimos no país, pode-se ter uma ideia do que pode causar um conjunto de recomendações avulsas sobre esses temas. Respeitar o direito de uma pessoa sair vestida como quiser, na base do bom humor, como pontuaram alguns entrevistados (nas matérias para as quais colocamos os links abaixo) traz a necessidade de uma postura de não ridicularizar qualquer tradição ou forma de ser e isso se constrói com o tempo.

Em geral, a convivência em sociedade, a educação para a diversidade, para viver em uma sociedade pluralista exigiriam de todos o mínimo de bom senso para não haver humilhações ou chacotas para com o que as pessoas são, tem, fazem ou ainda para condições específicas (gordos, carecas etc). Pode ser que essas pessoas não gostem de brincadeiras sobre qualquer característica deste tipo.

Em 2016, um casal saiu fantasiado de Aladin e Jasmin e fantasiou o filho negro de macaquinho Abu[6]. O casal afirmou que não tinha a intenção de ofender ninguém, que era uma brincadeira, mas especialistas apontaram que era uma situação delicada e que exigia um posicionamento para não cair na naturalidade, como apontou Nilma Lino Gomes em entrevista à época:

“Acho que é uma simples brincadeira e não estou com essa intenção de ofender ninguém, mas, sabendo que nós temos um imaginário racial e práticas racistas, eu diria que nós precisamos tomar cuidado com a diferença, tomar cuidado com o outro, tomar cuidado com qual mensagem nós queremos passar […] A sociedade brasileira foi colonizada com uma ênfase muito grande na colonização do outro, do diferente, das diferenças.”

A questão é efetivamente complexa. Se por um lado todas as culturas são resultado de trocas culturais, existem trocas que são marcadas pela desigualdade e pelo preconceito, e são essas, e não todas as trocas culturais que devem ser criticadas. Entre o essencialismo de que a cultura tem pertencimentos únicos e o outro extremo de que tudo vale em nome da festa, qual seria a forma de resolver de forma plural e democrática os usos e abusos dos sentidos de uns pelos outros

A edição do periódico “Correio da UNESCO”[7], de 2005, logo após a aprovação da convenção da diversidade trazia uma provocação dizendo que “diversidade cultural não se decreta nem se improvisa[8]” (Tradução nossa. UNESCO, 2005, p.49-50). Esta afirmação tinha o objetivo de apontar que as ações concretas que seriam tomadas para a promoção da diversidade cultural não deveriam ser baseadas somente em regulamentações ou experimentos, mas uma junção de ações de sensibilização, reflexão, discussão nos diversos âmbitos das sociedades sobre a dignidade e a validade das variadas formas de expressão dos seres humanos.

E isso, com efeito, exige uma ação coordenada entre vários atores sociais, públicos e privados, entre discussão e aprovação de bases legais que contribuam para a convivência e o reconhecimento ao mesmo tempo que se desenvolva um programa de conscientização e educação para a própria diversidade.

Uma nota avulsa no Diário Oficial, sem estar acompanhada de uma campanha específica, um material de sensibilização e uma mobilização consistente sobre temas tão importantes, pode levar ao efeito exatamente contrário. Somente restringir algumas atitudes ou ações não garante que as pessoas tenham entendido a real motivação de não fazer brincadeiras preconceituosas com o cabelo de algumas mulheres, o cocar dos indígenas ou porque o assédio deve ser veementemente combatido. E não são questões menores, não é vitimização, e deixa mais clara a necessidade de se ampliar os debates e as campanhas educativas para além dos momentos de festa. Afinal, não somos preconceituosos apenas nas festas.

 

[1] A nota que o conselho publicou pode ser encontrada na íntegra no diário oficial, em http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1225290

[2] Sigla para “Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Queer ou Questionadores e Intersexo

[3] Veja algumas repercussões em https://domtotal.com/artigo/8646/2020/02/a-cartilha-do-kalil/ e https://www.otempo.com.br/cidades/cartilha-pede-que-homens-nao-se-vistam-de-mulher-no-carnaval-em-bh-1.2297572

[4] Para aprofundar sobre o tema da apropriação, sugerimos quatro textos:

a) https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/02/17/O-que-%C3%A9-apropria%C3%A7%C3%A3o-cultural-e-por-que-o-tema-vem-%C3%A0-tona-no-Carnaval1 ,

b) https://www.greenme.com.br/viver/costume-e-sociedade/41730-apropriacao-cultural-vestir-de-indio-carnaval/, c) https://www.cartacapital.com.br/cultura/apropriacao-cultural-alem-do-pode-ou-nao-pode-e-tema-de-livro-de-pai-rodney/

d) https://carnavalesca.org/2018/03/06/apropriacao-cultural-antropofagismo-e-outros-carnavais/

[5] Alguns textos da pesquisadora sobre o tema podem ser encontrados em http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf

[6] Relembre o caso, acessando https://br.blastingnews.com/brasil/2016/02/pai-poe-roupa-de-aladdin-e-veste-filho-de-macaco-no-carnaval-racista-dizem-internautas-00779255.amp.html

[7] Esta edição completa em Inglês, Espanhol e Francês pode ser encontrada em https://en.unesco.org/courier/november-2005

[8]cultural diversity can neither be decreed nor improvised

 

POR: José de Oliveira Júnior

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