Fonte: Nonada Jornalismo
Quando você assiste a uma peça de teatro de rua no Brasil ou compra um livro de escritores e escritoras brasileiros, já pensou em toda a logística e nos agentes envolvidos? Seja por financiamento via incentivos fiscais seja por editais públicos, a maioria das produções nacionais só são possíveis porque existe um sistema complexo – com produtores, gestores e servidores – responsável por incentivar as diversas formas de expressão da sociedade brasileira. Dados do extinto Ministério da Cultura apontam que a área impacta também na economia do país, na medida em que a indústria criativa é responsável por 2,64% do PIB nacional, gerando 1 milhão de empregos diretos e R$ 10,5 bilhões em impostos por ano. Com um novo governo e novas diretrizes ideológicas, esse sistema, que vem no caminho da consolidação e profissionalização, pode sofrer significativas alterações, se considerarmos também que a nova gestão é ideologicamente oposta à anterior.
Na posse como ministro da Cidadania, Osmar Terra anunciou que irá manter “todos os componentes do Ministério da Cultura”, sem explicar exatamente ao que estava se referindo. Um dos principais questionamentos atuais é como o governo deverá a estrutura complexa do MinC e todas as ações (algumas delas garantidas por lei, como contamos abaixo) se o próprio ministério foi extinto e substituído pela Secretaria Especial de Cultura, cujo secretário é o pelotense Henrique Pires.
Em dezembro de 2020, o Plano Nacional de Cultura (leia mais abaixo), responsável por orientar princípios básicos da gestão de cultura, além de objetivos e metas, perde sua validade. Isso significa que o PNC pode ser alterado em sua totalidade, inclusive com uma nova vigência, o que impactaria as políticas estatais por um período indefinido e não apenas durante o governo Bolsonaro. Em um país plural e calcado na diversidade cultural como o nosso, qualquer mudança pode ser significativa para as pessoas que dependem dessas políticas de incentivo.
Até o momento, com exceção de comentários sobre a Lei Rouanet (leia mais abaixo), o governo não sinalizou grandes mudanças internas. Contudo, um fato que passa despercebido já desde o governo Temer é o anúncio de uma futura alteração no Conselho Nacional de Políticas Culturais (leia mais abaixo). Ainda que não se saiba que alterações serão efetivadas, o fato abre brechas para extinguir e substituir mecanismos culturais, caso a composição do conselho sofra alterações em sua estrutura, considerando que o novo governo tem sua própria orientação ideológica.
Para avaliar a dimensão das políticas culturais no Brasil e as perspectivas para o governo Bolsonaro, entrevistamos a professora da Ufrgs Rosimeri Carvalho da Silva, mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Sociologia pela Université Paris VII e doutora em Administração pela HEC-Paris. Rosimeri também coordenou o curso de extensão Administração Pública da Cultura, que capacitou gratuitamente mais de dois mil alunos via EAD.
Abaixo, apresentamos um panorama geral das políticas culturais no Brasil e o que está em jogo com relação a algumas das principais conquistas na área. Além delas, existem diversas entidades governamentais cuja nova orientação também é incerta, entre elas a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Fundação Palmares (responsável por políticas para a cultura Afro-Brasileira) e a Fundação Nacional de Artes (Funarte).
Enquanto, na ditadura militar, a gestão de cultura foi marcada pelo autoritarismo, pela censura e pelo controle absoluto da produção, nos governos democráticos houve avanços a passos lentos na área da Cultura. Um deles foi a Lei Rouanet, que começou a ser discutida no governo Sarney e foi implantada definitivamente no governo Fernando Collor de Mello. Para a professora Rosimeri Carvalho da Silva, foi apenas a partir de 2003, no entanto, que a cultura recebeu sua devida atenção.
“No governo Lula, começou a se estruturar no Brasil um processo de políticas públicas culturais sistemático, planejado, refletido e inclusivo, ou seja, que não pensasse somente na arte consagrada ou na arte de massa, mas que considerasse também a cultura popular e as diferentes formas de expressão no Brasil, no que se configurou chamar de conceito antropológico de cultura. É um conceito um pouco controvertido, porque inclui muitas coisas, mas era uma tentativa de reconhecer, através das políticas de governo e de Estado, a diversidade cultural brasileira. Aqueles que governaram o Estado estenderam a mão do Estado para auxiliar aqueles que já faziam cultura popular no Brasil e que nunca tinham sido efetivamente reconhecidos e apoiados. Por outro lado, as políticas voltadas para as artes reconhecidas e para a cultura de massa também receberam um olhar mais atento, maior planejamento, maior estrutura e organização, ainda que muitas coisas não tenham sido feitas, porque não se pode resolver tudo em uma dezena de anos.
“Houve a quebra de um costume que existia no Brasil na área, que era uma política de balcão, quando as pessoas que tinham acesso àqueles que estavam no Ministério conseguiam apoio para seus projetos. Isso foi sendo alterado, modificado através de políticas sistematizadas de distribuição de recursos através de editais, uma distribuição discutida com a sociedade, com os representantes de diferentes manifestações culturais, com os conselhos de políticas culturais que foram sendo organizados e, consequentemente, há uma transformação na administração pública da cultura no Brasil.”
“Os governos Lula e Dilma investiram muito nisso, porque havia também um hábito na política governamental de que a cultura era administrada por qualquer um. Isso começou a ser transformado, se começou a apostar na profissionalização da administração pública da cultura, através de um apoio do governo federal aos governos estaduais e municipais na estruturação do sistema nacional de cultura. Os municípios tiveram curso de capacitação para gestores públicos. Isso é muito importante para que se tenha um uso mais racional dos recursos tão escassos destinados à cultura e que não se privilegie somente alguns grupos. Para isso, são necessários conselhos estaduais e municipais, é necessário que se organizem as diferentes manifestações de cultura em diferentes linguagens.”
“A cultura tem um aspecto econômico importante. Num país carente como o nosso, no qual a distribuição de riqueza é tão concentrada, as atividades culturais podem envolver um número muito grande de indivíduos na sociedade brasileira. Quando a gente vai ao teatro, a gente vê as pessoas que estão no palco , mas atrás dessas pessoas tem toda uma equipe que preparou aquilo e, atrás dessa equipe, tem muitas atividades que empregam muitas pessoas para que a gente veja o resultado final, que é a peça. É equivocada a ideia de que se distribui recurso para apoiar os artistas que nós conhecemos como celebridades. Há muitas pessoas que dependem disso.”
“Não vejo com otimismo o novo governo. O Ministério da Cultura foi desativado, o que significa que esse governo não dá a mesma importância à cultura que os governos anteriores e, desde 1986, nós tínhamos Ministério da Cultura. Além disso, esse é um governo neoliberal, se eu posso chamar assim. Há dúvidas ainda com relação a isso porque há uma incerteza muito grande sobre como o governo vai agir. Esse é certamente um dos grandes problemas do governo, uma grande incerteza. Não se sabe exatamente o que vai acontecer com a pasta. O ministro diz que vai manter todos os elementos do Ministério, mas ele vai manter as políticas, vai manter as equipes que lá estavam? Eu não vejo com muito otimismo a ação do governo. O MinC já foi ameaçado algumas vezes, pelo menos uma que eu me lembre, e a sociedade civil se organizou, notadamente os agentes culturais. Então o que eu vejo com otimismo é talvez uma ação organizada da sociedade civil.”
Construído participativamente, através das conferências de cultura, o PNC foi instituído pela Lei 12.343/2010 e estabelece princípios, diretrizes, objetivos, estratégias e metas na gestão de cultura no Brasil, atuando como uma espécie de “Constituição” temporária para a área. É a partir do Plano que, em tese, os governos encontram as diretrizes para uma política de Estado na área cultural. Reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira; proteger e promover o patrimônio histórico e artístico, material e imaterial; valorizar e difundir as criações artísticas e os bens culturais estão entre os 16 objetivos do PNC.
O PNC também traçou 53 metas a serem atingidas durante os dez anos de vigência, desde a implementação do Sistema Nacional de Cultura, o aumento de 95% no emprego formal do setor cultural até a implementação de cineclubes em 37% dos municípios brasileiros, por exemplo. No site oficial, o MinC vem realizando o monitoramento do andamento de cada uma das metas. Estados de todo o Brasil já vem trabalhando no estabelecimento de seus próprios planos.
Segundo a lei, o Plano tem validade de dez anos, portanto pode sofrer alterações em sua totalidade após dia 2 de dezembro de 2020, inclusive em seus princípios básicos, entre os quais se encontram liberdade de expressão, criação e fruição; diversidade cultural e respeito aos direitos humanos.
Comentário por Rosimeri Carvalho
“Um governo que se anuncia do modo como esse governo está se anunciando dificilmente mantém as mesmas políticas culturais dos governos anteriores. Não é um governo que vai fazer políticas participativas e dificilmente é um governo que vai ter o mesmo respeito com as manifestações da cultura popular que os governos anteriores tiveram. Basta ver como ele se posiciona com relação às sociedades dos povos originários, o modo como eles têm se manifestado na imprensa sobre como eles percebem essas sociedades. É importante considerar o quanto se vai desprezar todos os recursos que foram investidos para construir o Sistema Nacional de Cultura, para organizar, através do PNC, os objetivos e os meios de alcance dos objetivos no campo da cultura no Brasil. Isso é muito importante porque nós temos uma cultura política no Brasil, de que um governo vem destruindo aquilo que o governo anterior tinha construído. Isso começou a ser quebrado a partir do governo Lula, que respeitou e aproveitou muitas das políticas que tinham sido iniciadas no governo Fernando Henrique, porque elas eram boas, fez os ajustes que a coligação entendeu que deveria fazer, mas deu continuidade. Cada vez que os governos investem em uma área no país, ele despende recursos para isso, recursos financeiros, recursos intelectuais, investe o tempo do governo e dos agentes governamentais. Não se pode simplesmente jogar tudo isso numa vala, na medida em que se troca o governo.”
Ainda no governo Temer, o MinC abriu consulta pública para sugestões de mudanças no CNPC. O órgão, composto por agentes culturais, atua no sentido de formular políticas, articulando os níveis federal, estadual e municipal no debate. O CNPC já sofreu duas alterações, em 2009 e 2015. Atualmente, é formado por 18 colegiados setoriais, entre eles artes visuais, design, música, teatro, cultura dos povos indígenas e expressões artísticas culturais afro-brasileiras, estes últimos reconhecidos como elementos culturais após o governo adotar o conceito antropológico de cultura na gestão de Gilberto Gil. Entre as atribuições do plenário do CNPC, estão propor e aprovar as diretrizes gerais do Plano Nacional de Cultura, acompanhar e avaliar a execução do Plano Nacional de Cultura e estabelecer cooperação com os movimentos sociais, organizações não-governamentais e o setor empresarial.
Comentário por Rosimeri Carvalho
“Na medida em que se altera o CNPC, tudo é alterado. Se, por exemplo, ele deixa de ser um conselho participativo, eleito pela sociedade e passa a ser um conselho de notáveis, nós temos um retrocesso terrível, incalculável na verdade, porque é contra isso que se lutou durante muito tempo. É importante que os agentes culturais sejam as vozes ouvidas na construção de políticas culturais no Brasil e esses agentes são múltiplos, são plurais. Então tem que se olhar com muito cuidado quais são as alterações que vão ser feitas no CNPC, porque isso certamente vai impactar em todas as outras políticas.”
Controversa, a Lei nº 8.313/1991 vem sendo criticada nos últimos anos basicamente por duas correntes: uma, pelos agentes culturais insatisfeitos com o mecanismo, que concede às empresas privadas o poder de decisão de qual produto ou evento cultural merece financiamento. A outra corrente, calcada no desconhecimento de como ela funciona, minimiza a importância da cultura e do financiamento público à área. Na prática, os artistas e produtores culturais precisam ter sua proposta de captação aprovada pelo MinC para só então ir atrás de recursos com as empresas. Cada pessoa jurídica pode destinar até 4% dos impostos para atividades culturais. Ao todo, isso equivale a 0,64% do total de incentivos concedidos em nível federal, que depois retornam ao mercado de forma lucrativa, com uma média de 55% a mais do que foi investido, segundo estudo da FGV.
Comentário por Rosimeri Carvalho
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“É muito importante considerar que havia um projeto de alteração da Lei no Ministério da Cultura, desde o governo Dilma. O Ministério nunca conseguiu fazer com que essa proposta fosse apreciada pelo Congresso Nacional, porque há interesses políticos e econômicos vinculados à Lei Rouanet tal como ela é atualmente. Pelo menos nas conversas que eu tive com alguns agentes do Ministério, o MinC reconheceu a necessidade de fazer algumas alterações, porque é muito sério que as empresas privadas detenham o poder de decisão sobre como serão utilizados os recursos públicos na área da Cultura no Brasil, não é justo com a população brasileira. Os recursos têm que ser feitos em nome dos interesses da sociedade brasileira e dos diferentes grupos, e não das empresas privadas. Agora, é muito importante que essas modificações passem pelo Congresso Nacional, porque é uma Lei.”
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