Como a arquitetura das redes de trabalho colaborativo entre pares,
meritocráticas e não-hierárquicas pode contribuir para repensar Política e Estado
Por Bernardo Gutiérrez | Tradução Inês Castilho
Imagine que qualquer cidadão possa dialogar com qualquer conselheiro, deputado, senador ou embaixador. Imagine que possa, com eles, co-criar leis e participar levando ideias para o bem comum. Os governos já não falam apenas com governos. Os ativistas tampouco dialogam somente com ativistas. Nessa nova democracia, há outros mecanismos de diálogo: todos podem falar com todos. E, como se não bastasse, os documentos e conteúdos são totalmente transparentes. Além disso, o sistema não funciona por hierarquia, mas por meritocracia. Quem demonstra mais méritos goza de mais reputação social. Um deputado ou cidadão especialmente ativo em política tem mais autoridade moral que outros.
Bem-vindos à P2Política, um novo protótipo político que funciona de forma parecida à de uma rede peer-to-peer, rede entre pares ou P2P, na sigla em inglês. Esse tipo de rede, também conhecida como rede distribuída, é a base da Internet. Não tem centro. Quanto mais descentralizada, mais robusta. Qualquer nó pode conectar-se a qualquer nó. E é muito comum encontrá-la no universo da tecnologia e da informática. De fato, nos últimos tempos o formato de rede peer-to-peer é usado como metáfora política. Não por acaso. No mundo do software livre, essa topologia de rede inaugurou novos processos participativos, colaborativos e abertos para a organização coletiva.
Apesar dos ataques iniciais do mercado, o software livre não apenas não desapareceu, como se converteu na base dos gigantes da informática. O mundo sofreria um colapso se, de um dia para outro, não existissem o sistema operativo Linux e a rede de servidores Apache, ambos baseados no software livre. Mas o mais interessante é que seu funcionamento é tão exemplar, tão pouco vertical, que está inspirando o pensamento político. Destaco apenas quatro pontos, que poderão nos ajudar a entender o que é a P2Política.
Governança peer.
A governança peer, ou governança dos pares, no mundo do software livre, está baseada em alguns pontos bem concretos – a abertura, a participação, o trabalho em rede e a transparência. A lógica da rede é radicalmente oposta à do mercado ou à da democracia representativa. Os pares não competem, cooperam. Os pares não se regem por uma lógica antagônica – buscam a síntese, ao invés de deslocar o outro. Os pares – qualquer pessoa – podem participar do processo. E os problemas, normalmente, são resolvidos coletivamente, mostrando o código de programação (prática conhecida como release early, release often – libera logo, libera sempre). Aqui entra um novo paradigma: a meritocracia. Javier de la Cueva, em seu artigo Software libre, ciudadanía virtuosa y democracia (Software livre, cidadania virtuosa e democracia), destaca a meritocracia como um dos novos eixos do novo mundo em rede. Uma meritocracia que, longe de basear-se na hierarquia, apoia-se na “sociabilidade, camaradagem, cooperação e virtude cívica”.
Democracia distribuída
A P2Política seria um novo cenário de participação e de interconexão de pares. Democracia distribuída é o título do livro que a Universidade Nômade publicou para abordar as inovações políticas do 15M espanhol. Em certo sentido, a democracia distribuída seria um passo além da democracia aberta. O aberto, isso sim, seria a base desta democracia distribuída de pares conectados.
“O trabalho em rede aberto – como afirma o sociólogo Antonio LaFuente – é o conceito que reúne uma constelação de traços próprios das estruturas horizontais, distribuídas, cosmopolitas, auditáveis e meritocráticas”. A colaboração dos pares, ademais, está dispersa geograficamente, é assimétrica e se organiza em redes.
O fenômeno das Marés da Espanha – mobilizações sociais apartidárias não convocadas por sindicatos – é um claro fenômeno emergente da P2Política. Um novo comportamento em rede, no qual convergem o físico e o digital, o próximo e o distante. Um novo processo que vai substituindo a mediação centralizada dos sindicatos.
Protótipo: a democracia-processo
Em geral, a cultura digital coloca sobre a mesa da P2Política um outro conceito: a prototipagem. O modelo, um arquétipo para imitar ou reproduzir, regeu o passado. O protótipo, primeiro molde imperfeito com que se fabrica alguma coisa, está modelando o presente. O protótipo é melhorado pelos pares. E passa a ser um processo aberto e compartilhado. O sociólogo Alberto Corsín, em Política: modelos y prototipos, alerta sobre a necessidade de construir “um parlamento em permanente abertura e revisão”. Um protótipo de parlamento, qualifica Corsin, “para uma política exemplar (o primeiro molde; uma política protótipo)”.
Estado parceiro, Estado pró-Comum
Michel Bauwens, fundador da Fundação P2P, longe de pensar que as redes vão acabar com o Estado, defende que caminhamos em direção a outro tipo de Estado. O partner State (Estado parceiro) está orientado ao comum e deve garantir as condições para um intercâmbio igualitário entre os pares. Não existiriam, pois, pares – instituições, indivíduos, empresas etc – com mais privilégios que outros para negociar com o Estado. A missão do Estado parceiro seria corrigir a mão invisível do mercado, ineficaz e mitificada. E garantir as condições, infraestrutura e marcos para a colaboração entre os pares, com vistas ao bem comum.
(Este artigo foi escrito como parte e apoio ao WikiSprint P2P global, em razão da Sharing Commons Spring de Barcelona, celebrados dias 20 e 21 de março.)
Bernardo Gutierrez (@bernardosampa) é jornalista, escritor e consultor digital. Pesquisa o mundo P2P e as novas realidades da cultura open source. Fundador da rede de inovação Futura Media.net. O acervo de seus textos publicados em Outras Palavras pode ser consultado aqui.
Fonte: Outras Palavras
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