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Participação e democracia: o Brasil precisa de conselhos

REPRODUÇÃO: NEXO JORNAL

Governo Bolsonaro investe contra instâncias de participação e controle social das políticas públicas, uma das mais importantes inovações democráticas produzida pela sociedade brasileira 

FOTO: ELZA FIÚZA/AGÊNCIA BRASIL

Vivemos uma situação inusitada. A democracia brasileira — construída a duras penas e ainda muito distante de garantir direitos plenos a toda a população — tem sofrido ataques por parte do atual governo federal.

De um lado, toda forma de participação e mobilização política que lhe seja desfavorável é desqualificada. O ataque mais recente foi a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que os manifestantes do último dia 15 de maio eram “idiotas úteis”, desrespeitando estudantes e professores em todo o país, que de forma pacífica protestavam  contra os cortes na educação.

Desde que se iniciou a articulação política que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, vivemos longos e intensos anos de conflitos sociais e políticos que resultaram na disseminação de críticas frequentes à organização coletiva, à militância e ao ativismo. A cada semana vemos uma expressão de como o atual governo pretende enfrentar a crise política na qual o país está imerso: pela restrição da democracia. Tal intencionalidade se manifestou claramente quando  Bolsonaro declarou que iria “botar ponto final em todos ativismos do Brasil”.

De outro lado, está em curso um desmonte das políticas públicas, seja pelo corte e contingenciamento de verbas, como no caso da educação, seja pela extinção de órgãos responsáveis por sua execução. O governo Bolsonaro investe contra uma das mais importantes inovações democráticas produzida pela sociedade brasileira: os conselhos de políticas públicas.

SOMENTE COM A AMPLIAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO E DO CONTROLE SOCIAL SERÁ POSSÍVEL O EFETIVO ENFRENTAMENTO DOS DIVERSOS PROBLEMAS ESTRUTURAIS DA SOCIEDADE BRASILEIRA — DESIGUALDADES, CORRUPÇÃO, VIOLÊNCIA, PRIVILÉGIOS — QUE NOS TROUXERAM À CRISE ATUAL.

Com a publicação do Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, colegiados construídos para possibilitar a participação e o controle social das políticas públicas pela sociedade civil são ameaçados de extinção. Por seus efeitos de extinção generalizada e sem parâmetros, a medida ficou conhecida como “revogaço”. Como em várias outras iniciativas do atual governo, a proposta de eliminação da participação e do controle social expressa um profundo desconhecimento da complexidade das sociedades contemporâneas e, mais especificamente, da gestão pública nesse contexto. O decreto também se dirige ao funcionamento da administração pública, pois prevê a extinção de comitês, grupos de trabalho, salas, câmaras técnicas e outras estruturas que estão presentes em todos os órgãos da administração pública federal. Essas estruturas fazem parte do cotidiano da execução de políticas públicas e eliminá-las, sem critérios, pode causar prejuízo ao funcionamento do Estado e aos serviços públicos.

Existem aproximadamente 90 conselhos nacionais com participação da sociedade civil instituídos, sendo que 53 podem ser extintos. Dentre essa enorme lista, estão temas tão diversos como o Conselho do Idoso, o LGBT, de Erradicação do Trabalho Infantil e da Biodiversidade. O governo estipulou que os ministérios devem justificar a permanência de seus colegiados à Casa Civil e, caso não seja aceita a justificativa, eles estarão formalmente extintos em 28 de junho.

Mas, afinal, como surgiram e o que fazem os conselhos?

O direito de participação dos cidadãos e da sociedade civil foi consagrado ao longo da Constituição de 1988, que não à toa, tornou-se conhecida como a constituição cidadã. Ao longo das três últimas décadas, ocorreu um processo gradual de expansão de conselhos de políticas públicas, conferências, orçamentos , planos diretores e planos plurianuais participativos entre outros mecanismos de participação e controle social.

Essa expansão ocorre em conjunto com a ampliação e universalização de políticas sociais fundamentais para a redução da desigualdade, como saúde, educação e assistência social. Hoje, há conselhos dessas políticas em praticamente todos os mais de 5.000 municípios brasileiros. Eles são responsáveis por fiscalizar a aplicação do dinheiro e verificar se a política está sendo implementada. A desestruturação de conselhos nacionais pode impactar a existência dos conselhos estaduais e municipais, afetando a execução das políticas públicas e a participação dos cidadãos no nível local.

Praticamente todas as forças políticas do país passaram a defender o ideário da participação social, a começar pelo PMDB, que na Assembleia Constituinte defendeu e relatou as emendas populares, propostas pela sociedade civil. Os dois partidos que protagonizaram as disputas pela Presidência da República nos anos 1990 e 2000, PT e PSDB, também tinham o tema da participação social como um elemento central de seus programas políticos. É a partir desse apoio generalizado que se dá o processo de implantação de mecanismos de participação e controle social em praticamente todas as áreas de políticas públicas e em todos os níveis de governo.

Em função da inovação e da difusão de suas experiências participativas, o Brasil conquistou reconhecimento e premiações internacionais ao longo dos últimos 30 anos, tornando-se um país exportador de modelos de participação e controle social. O reconhecimento da importância de espaços de participação passou a marcar o discurso e a atuação de organismos internacionais como a ONU. Tais organismos passaram a defender, particularmente a partir dos anos 1990, a participação social como um mecanismo fundamental de controle democrático, com efeitos de combate à corrupção e de melhorias do desenvolvimento socioeconômico.

Essas experiências possibilitaram a produção de diversos efeitos positivos em termos sociais e governamentais: a abertura da gestão pública para novos interesses, demandas e conhecimentos presentes na sociedade; a mobilização de recursos da sociedade para a identificação e o enfrentamento de problemas sociais; a fiscalização das ações dos gestores públicos; o controle social dos gastos públicos; a produção de políticas mais adequadas às especificidades dos contextos de implementação e das populações beneficiárias; o maior comprometimento da sociedade com políticas públicas que têm o envolvimento da população em sua formulação e/ou implementação; a ampliação do conhecimento sobre a gestão pública por parte da população envolvida nas experiências participativas; entre outros.

A ausência de possibilidades de participação institucional não fará com que os interesses divergentes e os conflitos a eles relacionados desapareçam da sociedade. Essa é apenas uma ilusão autoritária. Somente com a ampliação da participação e do controle social será possível o efetivo enfrentamento dos diversos problemas estruturais da sociedade brasileira — desigualdades, corrupção, violência, privilégios — que nos trouxeram à crise atual. O autoritarismo defendido e praticado pelo atual governo só aprofundará esses problemas, como temos observado nos últimos meses.

A reação ao Decreto 9.759

Felizmente, há diversas iniciativas de questionamento político e jurídico do Decreto 9.759/2019. Há pelo menos cinco projetos de decreto legislativo, de partidos diversos, em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que têm por objetivo sustar os efeitos do “revogaço”. Ainda, há duas ações judiciais em curso: uma Ação Popular, de autoria do PSOL e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo PT. Esta última obteve liminar concedida para ser julgada em regime de urgência, o que deve ocorrer antes da efetiva extinção dos colegiados, prevista para 28 de junho. Por fim, a sociedade civil tem se movimentado pressionando parlamentares, solicitando audiências públicas e promovendo campanhas sobre o tema. A campanha “O Brasil precisa de Conselho” faz parte desse esforço e é promovida por diversos pesquisadores e acadêmicos.

Em breve, o Supremo Tribunal Federal irá julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta contra o Decreto 9.759 de Bolsonaro. A corte terá a oportunidade de reafirmar que a participação social é um direito protegido constitucionalmente, e que instituições participativas como conselhos são parte integrante e fundamental da democracia brasileira. Já há inúmeras cartas, abaixo-assinados, manifestações nacionais e internacionais demandando a manutenção dos conselhos. A resposta à crise política brasileira é mais democracia, é mais participação e controle social. Afinal, o Brasil precisa de conselhos!

Ana Claudia Teixeira é cocoordenadora do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e doutora em ciências sociais pela mesma instituição. 
Carla Bezerra é advogada, doutoranda em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do CEM (Centro de Estudos da Metrópole). 
Marcelo Kunrath Silva é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutor em sociologia pela mesma instituição.

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