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Violência, democracia e direitos humanos

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A taxa de homicídios por 100 mil brasileiros passou de 11,7 em 1980 para 26,2 em 2010. No mesmo período, cresceram também o número de execuções sumárias, muitas delas envolvendo policiais civis e militares, o tráfico de drogas, associado à luta pela conquista de territórios, e os conflitos nas relações interpessoais com desfecho fatal.

A evolução dos indicadores de violência nas últimas três décadas surpreendeu os que esperavam que o processo de democratização do país se traduzisse na pacificação da sociedade e na reconciliação da segurança com o respeito aos direitos humanos.

“A expectativa era que o fim das arbitrariedades desse lugar ao estado de Direito, mas, junto com a reinvenção institucional, o que se viu foi uma explosão de violência”, analisa Sérgio Adorno, coordenador do Centro para o Estudo da Violência (NEV), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.

A urbanização e migração para as cidades, consolidadas nos anos 1980, os déficits sociais e econômicos do passado e sucessivas crises econômicas alimentaram um ambiente de tensão, ao mesmo tempo em que o Estado se revelava ineficiente no papel de mediador de conflitos. “A polícia não investiga e os criminosos não são processados ou punidos, revelando um fosso entre o potencial de violência na sociedade e a capacidade do Estado de contê-la no marco do estado de Direito”, afirma Adorno.

As estatísticas dão provas disso: entre 1998 e 2003, dos 344 mil boletins de ocorrência policial registrados em 16 delegacias de polícia na cidade de São Paulo, apenas 6% converteram-se em inquérito policial. Entre os crimes violentos, 93% dos casos foram registrados como de autoria desconhecida. A impunidade não inibe a violência e alimenta a desconfiança da população. “Estamos vivendo uma situação de desencontro entre os cidadãos e suas instituições”, analisa Sérgio Adorno.

Crimes de autoria desconhecida

O controle legal da ordem e as políticas de direitos humanos são temas fundadores deste CEPID que começou se organizar como Núcleo de Estudos da Violência (NEV) na Universidade de São Paulo (USP), em 1987. Desde o início, o principal desafio do NEV – constituído como CEPID em 2000, no primeiro edital do Programa – foi entender por que, no Brasil, a democracia não se traduziu em segurança com respeito aos direitos humanos.

As pesquisas, aos poucos, mostraram que o sistema de justiça criminal brasileiro funciona como um funil: largo na base (o registro de entrada das ocorrências) e estreito no gargalo (o número de casos que recebem desfecho processual, inclusive condenatório).

Para compor esse quadro, os pesquisadores começaram perscrutando estatísticas oficiais, mas tiveram que recorrer a outros procedimentos metodológicos porque as informações disponíveis não permitiam acompanhar o andamento dos crimes no interior do sistema de Justiça criminal. Foi preciso, por exemplo, individualizar registros, monitorar notícias publicadas nos jornais e até criar um banco de dados para aprofundar a investigação.

“A polícia só registra homicídio, tentativa de homicídio, agressão seguida de morte, encontro de cadáver. Se não recorrer a outras fontes, não dá para conhecer os autores ou saber as circunstâncias em que esses crimes ocorreram”, descreve Nancy Cardia, coordenadora do CEPID. Apesar de o país contabilizar crimes desde o Império, as instituições de segurança pouco utilizam estatísticas para conhecer os fenômenos sociais que engendram os crimes ou para coordenar informações sobre segurança pública.

Utilizando informações secundárias, os pesquisadores puderam analisar mais detidamente 197 processos penais instaurados e julgados, para apuração de responsabilidade em crimes de homicídio, em um dos tribunais de júri da capital e traçar o perfil de vítimas, agressores, testemunhas e até do corpo de operadores técnicos do direito.

Surpreenderam-se com a “banalidade das mortes” e a incapacidade da Justiça de “traduzir diferenças e desigualdades em direitos”, comentou Adorno no artigo Crime, justiça penal e desigualdade jurídica, publicado na edição 132 da Revista USP, referente a pesquisa similar anteriormente realizada. Ele observou, por exemplo, maior incidência de sentenças condenatórias nos processos em que os réus eram defendidos por advogados dativos, constituídos pelo juiz para os que não têm recursos para pagar as custas dos processos.

Morosidade judicial

As pesquisas atestaram que a Justiça é morosa. Analisando 28 casos de linchamento, execuções e violência policial ocorridos nos anos 1980, por exemplo, constataram que o tempo de tramitação de um processo podia chegar a 120 meses (10 anos) e que, em apenas um caso, consumiu 10 dos 16 meses previstos no Código do Processo Penal para a conclusão de todos os procedimentos judiciais e judiciários.

O tempo passou consumido na obtenção de provas documentais, na localização e intimação de réus e testemunhas, e assim por diante. “É como se a Justiça desse caução ao sentimento popular: bandido precisa ser morto”, lembra Nancy Cardia. Consultados pelos pesquisadores, os operadores técnicos do direito consideraram “caduco” o prazo estabelecido pelo Código do Processo Penal, ainda na década de 1930, para a tramitação dessa modalidade.

O desempenho da polícia, do Ministério Público, dos juízes, entre outros atores do sistema Judiciário, também foi monitorado pelo Centro para o Estudo da Violência. “Levantamos informações sobre processo de seleção, treinamento, incentivo e promoções e pudemos constatar que o policial que se destaca vira chefe – o mesmo vale para juízes e promotores –, sem nenhum critério claro, e isso afeta o cotidiano da Justiça”, observa Nancy Cardia.

Esse diagnóstico, aliás, deu origem a um curso de treinamento e capacitação em segurança pública, de 180 horas, desenvolvido em parceria com a Faculdade de Economia e Administração (FEA/USP), a Escola Politécnica (Poli/USP), a Fundação Getúlio Vargas e o Banco Mundial. “Foram duas versões presenciais e uma na internet, com grande demanda”, conta a coordenadora do Centro.

Para suprir a falta de informações dos operadores da Justiça, o CEPID publicou, com a Fundação Ford e por meio da Editora da USP, seis volumes com temas relacionados à segurança pública e aos direitos humanos. “O sétimo volume é sobre a tortura e está saindo este ano. É resultado de um seminário organizado para discutir situações de agressão aos direitos humanos depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001”, ela explica.

Fadiga do sobrevivente

Aos poucos, as informações dos projetos de pesquisa foram “refinando” a reflexão da equipe e consolidando a visão de que a “credibilidade é o fundamento das instituições democráticas”, sublinha Adorno. Essa percepção colocou novas perguntas e abriu frentes de investigação: Como a população se relaciona com a violência? Qual a sua percepção de Justiça? Há, no Brasil, uma cultura de violência?

“Enquanto Adorno trabalhava com a polícia, iniciamos um estudo qualitativo, que comparava a percepção de 341 moradores de três dos distritos mais violentos de São Paulo – Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luiz –, tendo como comparação uma amostra de 1.000 entrevistados de outros distritos da capital”, conta Nancy Cardia.

O projeto coincidiu com uma mudança sensível – e favorável – nas estatísticas de homicídios na capital: entre 2000 e 2006, a taxa geral de assassinatos no Estado de São Paulo caiu de 42,07 por 100 mil habitantes para 19,90. “Foi possível documentar essa mudança e identificar seu reflexo nas pessoas mais expostas à violência e em sua percepção das instituições”, diz a pesquisadora.

A exposição à violência é medida por uma gradação que identifica vítimas, testemunhas de atos de violência e indivíduos que, dentro de um determinado período de tempo, tiveram conhecimento de envolvimento de parentes ou amigos próximos. “Os efeitos mais intensos da exposição à violência são observados entre as crianças e jovens”, constatou Nancy Cardia.

Manifestam-se na forma de sintomas físicos, como distúrbios do sono, ansiedade, depressão, entre outros qualificados pela literatura como “fadiga do sobrevivente”. A contrapartida desse sintoma, principalmente entre jovens – objeto de estudo do grupo – é a dessensibilização: “A violência que as vítimas sofrem passa a ser considerada normal”, ela explica em estudo publicado na revistaLusotopie em 2003. “Normalizar a violência resulta também em uma reduzida capacidade de confiar no outro, ou de se vincular ao outro, e em menor interdição quanto à prática de violência.”

Medo, sentimento generalizado

Quanto maior o grau de exposição dos jovens à violência, pior a imagem que eles têm da polícia, o que alimenta a sensação de insegurança. “Poucos acham que conseguiriam convencer um delegado a investigar um caso no qual tenham sido vítimas”, Nancy Cardia constata.

O medo é um sentimento generalizado no Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luiz e encoraja o isolamento: os vizinhos não convivem, não conversam e as crianças são proibidas de brincar nas ruas.

A casa, no entanto, parece não garantir a segurança das crianças e dos jovens. “A experiência da punição corporal em casa, geralmente perpetrada pela mãe, é mais importante do que podíamos imaginar”, diz a coordenadora do NEV. O castigo doméstico violento, conforme têm revelado as pesquisas, é uma experiência importante na vitimização.

“Descobrimos que os indivíduos que relatam terem sido vítimas de agressões violentas em casa, com força para produzir ferimentos ou sequelas, também relatam mais frequentemente alguma forma de exposição à violência nas ruas: conhecem amigos vítimas ou autores de agressão ou são, eles próprios, alvos de ações de terceiros ou da polícia.”

Legitimação da violência

O cenário que emerge da pesquisa qualitativa é preocupante. “Esperávamos que, na geração nascida após a Constituição de 1988, o repertório da força física não fosse mais utilizado para disciplinar crianças. Há anos a Lei da Palmada está parada no Congresso Nacional, depois de ter sido ridicularizada”, afirma Nancy Cardia.

E a violência não está apenas em casa: o espancamento é considerado solução legítima para conflitos na escola e a tortura seria autorizada contra suspeitos de crimes violentos, como estupro, assassinato, sequestro e latrocínio, sobretudo quando envolvem crianças. “Há fortes indícios de que a exposição à violência pode mudar as pessoas, seus comportamentos, suas crenças, seus valores e até a si mesmas.”

Há igualmente indícios de que essa experiência não encoraja uma maior abertura para a vida em comunidade. Ao contrário, encoraja as pessoas a buscar meios individuais de proteção e a se retirar do espaço público, isolando-se ainda mais em um processo que pode ter o efeito oposto: em vez de obterem mais proteção, ganham mais vulnerabilidade, adverte Nancy Cardia.

A descrença nas forças encarregadas de aplicar as leis e a aceitação do arbítrio e da força contra suspeitos de delitos graves crescem na razão direta da exposição à violência. “Se não podemos estancar a violência, como proteger esses jovens?”, ela indaga.

Monitoramento dos casos de letalidade

A agenda de pesquisa qualifica o Centro para o Estudo da Violência como interlocutor privilegiado em fóruns de debate sobre políticas públicas. Ao longo dos últimos 12 anos, o CEPID participou ativamente da elaboração dos programas Nacional e Estadual de Direitos Humanos, da implantação da Ouvidoria de Polícia em São Paulo e dos debates sobre mudança de jurisdição dos crimes de homicídio da Justiça Militar para a Justiça Civil, relaciona Adorno.

Organizou uma dezena de cursos, treinamentos e conferências sobre temas como gestão local de segurança, geoprocessamento e análise espacial do crime, prevenção da violência, entre outros. E compartilhou a experiência em pesquisa, georreferenciamento e análise de dados com diversos órgãos públicos, como a Fundação Sistema de Análise de Dados (Seade), a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), a Coordenadoria de Vigilância em Saúde do Município de São Paulo e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH).

A parceria com a SDH, por exemplo, permitiu o desenvolvimento de uma metodologia para monitoramento de casos de letalidade que serviu de insumo para a produção de um software a ser distribuído às ouvidorias de polícia para a padronização da classificação de informações.

O Centro também participou de avalições externas independentes de projetos como os de Melhoria da Gestão Penitenciária, Revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos, Manual de Policiamento Comunitário, Violência por Armas de Fogo no Brasil, entre outros.

Boa parte das informações de pesquisa, relatórios, documentos e uma robusta base de dados está disponível no site www.nevusp.org, que, entre 2008 e 2012, já contabilizou cerca de 1,5 milhão de visitas.

As atividades de pesquisa, educação e difusão do Centro para o Estudo da Violência continuarão pelos próximos 11 anos, durante a vigência do segundo edital do Programa CEPID. A investigação estará focada na construção da legitimidade das instituições em sua relação com os cidadãos e funcionários públicos.

“As pessoas apostam nas instituições, mas não nessas que estão aí”, afirma Adorno. “A democracia ficou mais complexa. No entanto, algumas exigências do Estado democrático de Direito não foram cumpridas, o que inclui a aplicação das leis, o que tem de ser universal. A Justiça não pode ser desigual. Tem que ser previsível. Tem que haver uma cultura de valorização dos direitos humanos e o principal agente socializador é o Estado.”

Veja também um vídeo com entrevista com Sérgio Adorno e Nancy Cardia em http://cepid.fapesp.br/materia/65.

Por Claudia Izique – Agência FAPESP

Fonte: Fapesp

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