Nas últimas décadas, vivemos no Brasil e no mundo um movimento de busca pelo respeito aos direitos da personalidade, aqueles que visam a proteger a dignidade da pessoa humana. Assim é que surge um clamor social de respeito pelas diferenças, como aquelas relativas à cor da pele e à orientação sexual.
A sociedade tem sido cada vez menos tolerante com certos tipos de condutas ofensivas e discriminatórias. Não é que esse tipo de comportamento, como o racismo e a homofobia, tenham deixado de existir. Longe disso. Mas, pode-se dizer que a sociedade, de modo geral, aceita menos esse tipo de conduta. Atualmente, distribuir ofensas simplesmente pela cor da pele ou pela orientação sexual das pessoas pode trazer problemas e até dar cadeia. A lei já diz que racismo é crime. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento para discussão sobre a criminalização da homofobia. O julgamento foi suspenso no dia 21 de fevereiro. Até o momento da interrupção do julgamento, os quatro ministros do STF que votaram se mostraram favoráveis à criminalização da discriminação por conta da condição sexual ou identidade de gênero. Serão necessários mais dois votos dos sete restantes para que a medida seja aprovada. Caso ocorra a aprovação, os crimes de discriminação por condição sexual ou identidade de gênero poderão ser enquadrados na Lei 7.716, de 05/01/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Mas não é só na Justiça Criminal que são sentidos os efeitos dessas mudanças. A Justiça do Trabalho tem sido uma forte aliada no combate às práticas discriminatórias no ambiente de trabalho, como o sexismo, racismo, homofobia, entre outras.
Nesta Notícia Jurídica Especial, trataremos do caso de um empregado que era reiteradamente ridicularizado pelo superior hierárquico, por ser homossexual. Diante do assédio moral sofrido por ele, a empresa, uma prestadora de serviços de conservação e limpeza, foi condenada a pagar ao trabalhador indenização por danos morais no valor de R$ 30.787,60. A tomadora dos serviços, uma rede internacional de supermercados que atua no mundo inteiro, foi considerada subsidiariamente responsável pelo pagamento da indenização.
A sentença, da lavra do juiz Tarcísio de Correa de Brito, da 5ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, é uma aula sobre os direitos humanos no âmbito nacional e internacional, retratando os preconceitos sofridos pela comunidade LGBTQIA+, sigla que abrange lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queers, intersexuais, assexuados e outros mais, adaptando-se às classificações sexuais do mundo moderno. A decisão reconhece a necessidade de proteção das minorias, tanto por meio da legislação como pela atuação do Poder Judiciário.
A versão das partes envolvidas
O encarregado alegou que o gerente lhe dirigia ofensas e provocações, já tendo dito: “seu cabelinho não é de homem”, “blusa rosa não é de homem”, “dengue não é coisa de homem”, e por aí vai. Afirmou que a conduta causava-lhe humilhação, vergonha e afetava sua autoestima. Já a empregadora, sustentou que havia uma relação de amizade entre o gerente e o trabalhador e que eles sempre “brincavam entre si”. De acordo com a defesa, o empregado jamais teria comunicado que sofria esse tipo de constrangimento no local de serviço, tanto que trabalhou lá por mais de dois anos. Por sua vez, o supermercado afirmou se tratar de empresa de grande porte, conceituada e reconhecida internacionalmente, que trata seus empregados com respeito e profissionalismo.
Depoimentos reveladores
Mas os argumentos das rés não foram acatados. Ouvida como testemunha, a supervisora operacional e gestora do contrato de prestação de serviços celebrado entre as empresas revelou que o “gerente de prevenção” era o supervisor do autor da ação, confirmando o tratamento injurioso que imperava no local de trabalho. Ela apontou que o gerente tratava o encarregado de forma diferente, com certa implicância, e lhe dirigia ofensas homofóbicas. Criticava o cabelo, o jeito de andar e outras observações desrespeitosas relativas à orientação sexual do trabalhador. Segundo relatou, certa vez esse gerente queria que o autor voltasse para casa para trocar uma camisa porque era cor de rosa, quando, então, ela mesma teve que intervir.
Dano moral configurado
A decisão reconheceu a violação explícita a todo o conjunto normativo internacional e nacional de proteção ao autor enquanto integrante da comunidade LGBTIQ+, por intermédio do gerente, empregado do tomador dos serviços, em flagrante gestão por injúria, tanto no âmbito privado quanto público.
Com amparo no artigo 5º, incisos V e X da CF/1988, garantiu o direito do trabalhador à reparação por dano moral. O entendimento se baseou também nos artigos 186 e 927 do Código Civil brasileiro, que estabelecem a responsabilidade civil do agente causador do dano, no caso, as empresas envolvidas. Foi explicado que, com o advento do Código Civil de 2002, a responsabilidade civil do empregador por ato causado por empregado, no exercício do trabalho que lhe competir, ou em razão dele (como no caso), deixou de ser uma hipótese de responsabilidade civil subjetiva com presunção de culpa (Súmula 341/STF), para se tornar hipótese legal de responsabilidade civil objetiva.
Segundo constou da decisão, os prejuízos morais sofridos pelo autor dizem respeito aos atributos da personalidade, como a honra, a intimidade, a vida privada, a moralidade, a privacidade, a imagem, etc. “O ato ilícito em si faz gerar, inexoravelmente, a ofensa de ordem moral no indivíduo”, registrou o julgador, entendendo não ser necessária a prova do dano moral.
A Constituição de 1988 e os direitos da comunidade LGBTQIA+
Para destacar o alcance do artigo 4º da CF/88, que estabelece o princípio da prevalência dos direitos humanos como base da República Federativa do Brasil, principalmente em suas relações internacionais, o juiz citou, entre outros grandes juristas, o internacionalista Valério Mazzuoli. Segundo registrado, ao analisar o tema dos direitos humanos da comunidade LGBTQIA+, o professor reconhece que, além de uma questão cultural que subsiste em inúmeros contextos de perseguição e de violação de direitos dos integrantes desses grupos, há questões políticas que fomentam a violência e a perseguição a eles direcionada, em desrespeito aos princípios e às normas do Direito Internacional Público contemporâneo. Nesse ponto, o juiz destacou que o artigo 3º, IV, da CF/88 reconhece que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A condenação
Diante do contexto apurado, a sentença condenou a empregadora, com responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, a pagar ao trabalhador indenização por dano moral, fixada no valor de R$ 30.787,60, com base no artigo 223-G, I a XII, e na última remuneração de R$ 1.539, 38. Para tanto, o juiz levou em conta a grave violação reiterada aos direitos tutelados para o grupo LGBTIQ+, praticada pelo gerente do supermercado, com a tolerância da empregadora e dos responsáveis por ambas as empresas, destacando, sempre, que a gestora da empregadora tinha conhecimento dos fatos e pouco fez. Segundo os fundamentos, outro gerente do tomador teve ciência das provocações reiteradas ao trabalhador e também pouco ou nada fez.
A responsabilidade do empregador e do tomador de serviços
No caso, as empresas foram responsabilizadas pela atitude homofóbica do preposto, ou seja, do gerente do estabelecimento e superior hierárquico do autor.
Mesmo que não haja culpa da empresa, segundo o magistrado, ela responde pela atitude do preposto e também pelas atitudes de todos os trabalhadores que lhe prestem serviços ou realizem alguma atividade em seu nome, pouco importando a natureza jurídica do vínculo. Conforme explicou, cabe à empresa o dever de cuidado na escolha de trabalhadores idôneos, oferecendo o devido treinamento para que possam exercer diligentemente suas funções.
A decisão reconheceu ainda a responsabilidade subsidiária da rede de supermercados pelo pagamento da indenização por danos morais ao trabalhador. Para o magistrado, houve flagrante descumprimento das obrigações inerentes ao contrato de emprego, com a conivência explícita e implícita do tomador dos serviços, considerando que a prática de ato discriminatório contra o trabalhador foi provocada por ato de seu colaborador.
Lei Rosa: esforço municipal contra a homofobia
O caso examinado ocorreu na cidade de Juiz de Fora, lembrando o magistrado que o artigo 108 da Lei Orgânica do Município, de 30 de abril de 2010, reconhece que é “dever do Município apoiar e incentivar a defesa e a promoção dos direitos humanos, na forma das normas legais e constitucionais, tratados e convenções internacionais.
Ao proferir a condenação, o juiz fez questão de registrar que, há 18 anos, vigora na cidade de Juiz de Fora a Lei nº 9.791, de 12 de maio de 2000 (Lei Rosa), que dispõe sobre a ação do município no combate às práticas discriminatórias em seu território, por orientação sexual, cujo cumprimento é obrigatório, nos termos do artigo 3º da LINDB. Ele lembrou que o artigo 1º da lei dispõe que: “Será punida, no Município de Juiz de Fora, nos termos do art. 1º incisos II e III, artigo 3º, inciso IV e artigo 5º, incisos X e XLI da Constituição Federal e do art. 114 da Lei Orgânica Municipal, toda e qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra qualquer cidadão homossexual (masculino ou feminino), bissexual ou transgênero”.
Os atos homofóbicos praticados pelo gerente do supermercado foram enquadrados em dois incisos do artigo 2º da Lei local: “I – submeter o cidadão homossexual, bissexual ou transgênero a qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica; VII- praticar o empregador, ou o seu preposto, atos de demissão direta ou indireta em função da orientação sexual do empregado”.
O julgador ainda pontuou que o artigo 3º da Lei municipal prevê que “são passíveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda e qualquer organização social ou empresa, sejam elas detentoras de personalidade física ou jurídica, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas no município de Juiz de Fora, que intentaram contra o que dispõe essa Lei”.
Chamou a atenção também para a necessidade de apuração da prática em processo administrativo, o qual deverá ter início por iniciativa do trabalhador ofendido ou de autoridade competente, como previsto no artigo 4º da Lei Rosa.
E citou o artigo 13 da Lei Orgânica Municipal, segundo o qual “O conhecimento de situação que afronte as garantias previstas nesta lei, ou seja, quando ocorra qualquer tipo de discriminação contra o cidadão, acarretará, independentemente de denúncia da vítima, a lavratura imediata de auto de infração, dando-se início ao competente processo administrativo, no qual será assegurada ampla defesa”.
O magistrado determinou que, após o trânsito em julgado da sentença, seja expedido ofício à Secretaria Municipal de Atividades Urbanas para a lavratura de auto de infração contra o supermercado e o gerente de quem partiu as condutas homofóbicas, com cópia da sentença.
A decisão também determinou que cópias das decisões judiciais sejam remetidas ao centro de referência para a defesa e valorização da autoestima e capacitação profissional do cidadão homossexual, bissexual e transgênero ou similar, no âmbito municipal, para conhecimento.
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