REPRODUÇÃO: REDE BRASIL ATUAL
Um estudo divulgado pelo programa Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mostra que 41% das crianças de 6 e 7 anos não sabem ler e escrever. Esse é o maior índice de analfabetismo registrado no país desde 2012.
O recorte de idade se deu em razão do Plano Nacional de Educação (PNE), que tem como diretriz curricular a alfabetização de crianças no 1º e 2º ano do ensino fundamental, quando as crianças tem idades entre 6 e 7 anos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Maria Eduarda Quiroga, explica as raízes desse cenário e aponta caminhos a serem traçados no retorno das crianças às escolas após a pandemia e, em especial, para a construção de uma educação inclusiva e emancipadora.
Entre algumas das justificativas apontadas estão os impactos da pandemia, onde os professores e crianças precisaram buscar novos métodos de ensino e aprendizagem, a quebra da rotina escolar, assim como a falta de políticas públicas para que os responsáveis pela orientação das crianças pudessem ter condições de fazer esse trabalho no dia a dia.
“Faltaram políticas públicas, talvez, como a construção de espaços de diálogo entre os responsáveis e os profissionais da educação. A gente fazia as atividades remotas, as propostas, mas quem estava lá, no dia a dia dos estudantes, orientando, não tinha nenhuma instrução ou preparo para trabalhar com esse tema, e faltou receberem alguma mediação para fazerem isso. Sobretudo nas escolas públicas, porque muitas vezes os responsáveis têm menos escolaridade, e foi onde a gente encontrou essa dificuldade de forma mais aguda”, lamenta Maria Eduarda.
Além do aumento do índice de analfabetismo, o estudo faz um recorte de que os maiores impactados são crianças pobres e negras. Sobre isso, a professora explica que faltaram estratégias dos governos para um melhor acolhimento às crianças em situação de vulnerabilidade ou sem responsáveis em condições de fazer o acompanhamento escolar.
“Se ela está no processo [de alfabetização], ela não pega um trabalho, uma prova e lê sozinha, ela ainda precisa da mediação entre ela e o conteúdo que está ali. Se a pessoa que está ajudando não tem condições de fazer essa mediação, como ela vai desenvolver? Então faltou pensar outras estratégias. Era possível fazer diferente? Eu acredito que era”, explica.
Para além de superar o momento pós pandemia, Maria Eduarda cobra melhorias nas escolas públicas e o retorno de políticas que estimulem o prazer pela leitura, como o básico, que é o acesso aos livros. Na contramão do ideal, o país tem vivido um apagão de bibliotecas e estima-se que 40% das escolas, públicas e privadas, não dispõem de biblioteca.
Sancionada pelo presidente Lula em maio de 2010, a Lei 12.244, visava construir um país de leitores no Brasil. A legislação também estabelecia a universalização das bibliotecas até o ano de 2020 e a implementação de bibliotecas em todas as instituições de ensino do país, sejam públicas ou privadas, no prazo de 10 anos, ou seja, até 2020.
A meta não foi cumprida e em novembro de 2021 a Câmara de Deputados aprovou, inclusive, o Projeto de Lei 4003/20, que aumenta esse prazo para 2024, deixando a educação para depois.
Na entrevista, Maria Eduarda relembra que por volta de 2011 o Brasil chegou próximo de erradicar o analfabetismo, o que garantiu uma geração de crianças que podia sonhar alto e via na educação uma possibilidade de mudança, mas que isso vem sendo destruído ao longo dos últimos anos, a partir da destruição de políticas públicas como o Plano Nacional de Biblioteca da Escola.
“Essas crianças começaram a ter o direito de sonhar como qualquer outra criança e aí conseguimos avançar em um processo mais democrático da educação, um processo mais plural, mas infelizmente isso foi se perdendo a partir de 2016, com o fim do Plano de Biblioteca Escolar e tudo, mas a pandemia acelerou esse ‘não lugar’ de novo, de forma muito preocupante. Temos esse desafio, agora, de reconstruir esse lugar e dizer: ‘não é um não lugar’.
Para falar sobre o aumento do analfabetismo nesse período da pandemia, das crianças mais em casa, do ensino remoto, primeiro temos que falar que existem vários métodos de alfabetização. Não existe um método certo, nós que estudamos e trabalhamos com isso, temos todo um arcabouço para avaliar que método vai ser aplicado em cada criança e em cada realidade.
Então, faltaram políticas públicas, talvez, como a construção de espaços de diálogo entre os responsáveis e os profissionais da educação. Porque chamo atenção para esse caso especificamente? Porque a gente fazia as atividades remotas, as propostas, mas quem estava lá, no dia a dia dos estudantes, orientando, não tinha nenhuma instrução ou preparo para trabalhar com esse tema, e faltou receberem alguma mediação para fazerem isso.
Sobretudo nas escolas públicas, porque muitas vezes os responsáveis têm menos escolaridade, e foi onde a gente encontrou essa dificuldade de forma mais aguda.
As crianças de 6 e 7 anos, em geral, tiveram dificuldade no processo de alfabetização à distância. Claro, nas escolas públicas isso foi muito mais acentuado e ainda vemos crianças que, rapidamente, quando você está ali presencial, ela consegue começar a pegar, a ler, mas ficaram ali, dois anos
E tem dois anos que escutei uma vez da Madalena Freire, que acho que é muito real, é que nessa faixa etária, para alfabetizar é um pouco de adestramento também, assim como um músico tocando um violão. A ausência da escola, da rotina, prejudicou a possibilidade de fazer esse adestramento, essa rotina, que ajudam a evolução do passo a passo do processo de leitura, alfabetização e letramento.
A pandemia piorou a realidade do acesso ao conhecimento, o acesso a livros, porque para você querer ler, para você gostar de ler, você tem que ter contato com o livro, e a gente tinha um bom plano de biblioteca escolar até 2016. A gente recebia uma caixa de livros para séries de alfabetização nas escolas, por bimestre, e podia inclusive emprestar para os alunos levarem para casa, terem contato. Lerem ou não lerem, mas sentirem aquela curiosidade aguçada: ‘eu quero aprender a ler e saber o que é isso que está na minha mão’.
Mas quando você não tem contato com o livro, você não leva para casa, é só um artigo que está lá, distante. Porque se rasgar, se perder, não vai ter reposição, você não cria esse gosto pela leitura, você não se coloca na ponta dos pés, não desenvolve o prazer da leitura. Se você não desenvolve o prazer da leitura, então qual a função da leitura para você? Qual a função da escrita? Então acho que uma das coisas, sem dúvidas, que diferencia muito é o acesso ao livros.
Isso diminuiu no Brasil, nos últimos anos. E elas, [as crianças] direto em casa, têm menos acesso ainda. As salas de leitura da escola que elas visitavam uma vez por semana, ou a cada 15 dias, as crianças não estavam visitando mais. [Na pandemia] os livros estavam aprisionados na sala de leitura e as crianças aprisionadas em casa, ou na rua, dependendo de cada realidade, mas não tendo acesso ao livro para ter essa sensação do prazer de ler.
Fora a questão da alimentação, fora que as crianças, às vezes, moram em espaços muito pequenos, sem outros estímulos, ou passam o dia na rua. A lógica do distanciamento, em muitos territórios, ela não é viável. Então você teve uma série de realidades que se entrecruzaram e que já interferiam antes na aprendizagem, porque muitas crianças da escola pública, nossos alunos, não têm acesso a um espaço para estudar, senão na própria escola, não têm com quem tirar uma dúvida, às vezes é com o irmão mais velho, quando tem. Então é uma série de fatores que se somam e que, sem dúvida, a pandemia e a ausência da rotina na escola acentuaram.
Acho que um pouco pelo que já falamos aqui. Primeiro, as crianças negras são a maioria das crianças pobres, por isso é de classe e raça, porque as informações se cruzam o tempo todo. É difícil uma escola pública em que a maioria das crianças não sejam afrodescendentes. Você tem desde pais analfabetos ou com pouca escolaridade, que tem menos condições de contribuir com os filhos, como também os espaços nas residências, outras possibilidades de estudar, como um acesso à internet para receber os conteúdos escolares desse período.
Muitas famílias não tem acesso à internet, mal tem um plano de dados que garante um Whatsapp, então como iam acessar as plataformas e assistir aquelas aulas? Ou não têm um computador, não têm um celular que dê conta. Então a ausência da estrutura tecnológica também pesou. E falavam: ‘imprime as coisas e entrega e vai buscar’. Mas quem vai buscar? Quem imprime? Quem orienta a criança, mede o acesso dela ao conteúdo? Porque na alfabetização, sobretudo, a criança ainda não está alfabetizada, ela está no processo de [alfabetização].
E se ela está no processo, ela não pega um trabalho, uma prova e lê sozinha, ela precisa da mediação ainda, entre ela e o conteúdo que está ali. Se a pessoa que está ajudando não tem condições de fazer essa mediação, como ela vai desenvolver? Então faltou pensar outras estratégias. Era possível fazer diferente? Eu acredito que era. Sempre lembro também de Wallon, que desenvolveu a Teoria dos Ciclos, que aqui no Brasil foi um pouco descaracterizada, mas que foi uma teoria desenvolvida para dar conta das crianças que estavam com problemas, inclusive de afetividade, no retorno à escola, pós Segunda Guerra Mundial.
Acho que precisamos ver experiências como essa ou na própria experiência da Educação do Campo, que fala do tempo de escola e tempo de comunidade para conseguir desenvolver um processo, uma práxis, para a teoria e a prática andarem ao mesmo tempo, e seja possível, nesse momento, termos menos prejuízo, sobretudo para as crianças das classes populares, que tiveram menos acesso aos conteúdos escolares nesse período, menos acesso a quem pudesse lhes dar suporte nesse período.
Então na prática ficamos muito no embate, e faltou ocupar as escolas nesse sentido e as políticas públicas de educação, da função social da escrita, da ampliação do direito de ler e se tornar um cidadão e cidadã pleno.
Uma das coisas que discordo muito que ela operou foi a história de começar a alfabetizar a educação infantil e colocar cartilhas na educação infantil. Eu, além de trabalhar com a alfabetização, minha outra matrícula é da educação infantil, e especialista em educação infantil e temos esse debate, que a educação infantil não é um preparatório para o ensino fundamental, portanto, não deveria ter já cartilhas, livros didáticos. Livros de leitura sim, para todo mundo, desde o berçário, mas não livros didáticos, não deveria ter essa instrumentalização no ensino infantil.
O que é fundamental nessa faixa etária, até os 6 anos, é que eles aprendam os conteúdos, a leitura do mundo, a partir das interações, das brincadeiras. Significa que depois não vai brincar mais? Não. Inclusive isso é um problema nas escolas, como se passou o primeiro ano e não brinca mais, mas as brincadeiras são o lúdico por onde podemos introduzir uma série de conteúdos, onde podemos ouvir o mundo da criança e traduzir esse mundo no mundo letrado. Isso Paulo Freire não trabalhou diretamente com crianças, mas trabalhou com adultos, mas o que ele nos traz de legado é fundamental para pensarmos a alfabetização das crianças, sobretudo das classes populares.
Então acho que um dos problemas, sem dúvidas, foi esse. Outro [problema] foi determinar métodos de alfabetização que funcionam: ‘não, é o fonético, não é o não sei o quê, quase vamos voltar para ‘Ela viu a Uva’, e falei aqui no início que existem vários métodos, mas não existe um certo, não existe uma receita de bolo. Nós precisamos conhecer cada criança, cada comunidade escolar, para desenvolver o melhor trabalho, bebendo em vários métodos diferentes, mas sobretudo fazendo a leitura daquele grupo, permitindo que as crianças se reconheçam nos processos delas de alfabetização, sendo ativas, entendendo o processo e querendo ler e escrever.
Esse é o primeiro passo. Mas esse engessamento que o governo faz do que é a alfabetização certa, ela é prejudicial para a maioria das crianças, porque não tem sensibilidade sobre as realidades, sobre os impactos que cada um vive para, de fato, poder se alfabetizar.
A gente tem que procurar essas crianças, acho que a procura foi pequena. A falta da política pública para esse período não presencial, da pandemia, a procura pelas crianças foi pequena. A gente brinca que na hora de ter os índices de aprovação do ano letivo, você procurava as crianças e se ela mal respirasse, você aprovava. Assim você não estimulou que a criança fosse para a escola, você só garantiu seu número.
Para que a criança queira voltar para a escola, estar na escola, ela precisa se sentir acolhida. Se sentir acolhida, é a escola olhar para esse período da criança e compreender que ela desenvolveu saberes, ela não ficou três anos estagnada. Ela aprendeu algo, talvez a cozinhar, sobre as rotinas da rua, os horários.
Não sei o que ela aprendeu, mas eu preciso ouvir, preciso compreender o que ela me traz de conteúdos do mundo lá, os saberes que não estão apenas nos muros da escola, para que eu possa ressignificar junto com ela esses saberes, e transformar de volta, para dentro do mundo escolar e ela entender porque ela tem que voltar para esse universo. É um espaço de muita escuta, de tempo, para os profissionais procurarem essas famílias, essas crianças.
É preciso envolver as famílias, não só as crianças, porque as crianças não tem autonomia sobre si, total. A compreensão das famílias nesse processo é fundamental, para que a gente consiga acolher as crianças e também seus responsáveis, que perderam muita gente, que estão com muito medo. Como a gente sai dessa história? Só com muita escuta e acolhimento. Acho que esse é o caminho para a gente melhorar ou tentar recuperar a evasão escolar.
Acho que rodas de conversas lúdicas com responsáveis e com responsáveis e filhos, que foram processos que a gente viu acontecer na década de 80, se não me engano, quando Paulo Freire esteve à frente da Secretaria de Educação de São Paulo, que são muito possíveis como uma estratégia para você ir reaproximando as crianças e as famílias e reconstruindo esse elo, esse vínculo, e você consegue não ser só um número, se não a a evasão ou o retorno ficam sendo só um número.
Para a gente é um grande desafio. Queremos que as crianças se alfabetizem cedo, que possam se desenvolver plenamente e não precisem sempre de mediação para ter acesso a uma literatura, a uma placa ou a um jornal. Já trabalhei com projetos de progressão, que são as crianças que não se alfabetizaram ao longo do 1º ao 5º ano e vão para as turmas de progressão e você vê ali um desespero muito grande, tanto das famílias, quanto dos jovens, porque é como se eles já tivessem perdido o bonde da história e acham que a única solução é ir trabalhar e a gente vai perdendo esses jovens, na perspectiva de terem direito a sonharem com o futuro.
Então o maior desafio é recuperar essas crianças, para que elas voltem a ter direito a sonhar, que elas compreendam que podem ser o que quiserem, porque a alfabetização pode se dar em um ciclo de três anos, mas não é em um estalo, parece que você vai com uma vara de condão e faz um milagre, mas não é.
Ela pode se dar em um processo mais compacto, em um momento que você consegue despertar aquele desejo, aquele interesse, e esse desejo passa por você conhecer as crianças com quem você está lidando e as demandas concretas dela. Acho que esse é um grande desafio que só vamos dar conta, se os governos entenderem que o profissional da educação, para estudar sua turma, os seus 25, 30, 40 alunos, depende da rede, porque infelizmente temos salas superlotadas, o professor precisa ter o terço extra classe, não é para ele cuidar da vida pessoal não, é para ele sentar e escrever no caderno o nome da turminha toda ele e pensar: “O que eu preciso fazer com A, com B? O que o Joãozinho precisa, é de atenção especial? O que a Maria está precisando que eu estimule, que eu proponha de atividade?”
Isso é para que a gente tenha um olhar para a singularidade e um olhar para a coletividade da turma, para que de fato a gente possa recuperar esse período. Mas também parar com essa noção de recuperar esse período um pouco, porque parece que não foi feito nada e a gente perde o que falei dos saberes que não estão aprisionados na escola. Eu preciso reconhecer esses saberes e acolhê-los na minha sala de aula, eu e todos os professores e professoras, para que a gente consiga vencer o desafio de um analfabetismo que se acentuou de novo. Lembrando que uma década atrás, a gente tinha chegado a um analfabetismo quase zero e isso é incrível.
Sou professora há 22 anos e fazia rodinha de conversa na escola pública e perguntava o que eles queriam ser quando crescer, e as crianças falavam em ser cabeleireira, bombeiro, policial. Era o máximo de carreiras que aparecia, mas lá em 2010, 2011, começou a aparecer com muita frequência medicina, engenharia, direito, arquitetura. Carreiras que não estavam no horizonte do estudante da escola pública de classes de alfabetização, ou do segundo ano, ou da educação infantil.
Ou seja, essas crianças começaram a ter direito de sonhar como qualquer outra criança e aí conseguimos avançar em um processo mais democrático da educação, um processo mais plural, mas infelizmente isso foi se perdendo a partir de 2016, com o fim do Plano de Biblioteca Escolar e tudo, mas a pandemia acelerou esse ‘não lugar’ de novo, de forma muito preocupante. Temos esse desafio, agora, de reconstruir esse lugar e dizer: “Não é um não lugar”.
Precisamos pensar juntos as estratégias de alfabetização, mas o direito de sonhar precisa ser recolocado: ‘vocês podem tudo, como qualquer um pode tudo’. Acho que esse é um grande desafio, uma grande utopia para os profissionais da educação pública e que trabalham com a alfabetização no próximo período.
*Imagem: Pixabay
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