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Um morrer em vida: a morte social na esfera da saúde

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Janaína Aredes [1]

A morte não se explica unicamente como a interrupção das funções vitais. Como fenômeno sociocultural possui significados os mais diversos, sempre associados a contextos, sujeitos e universos simbólicos próprios. Pode-se dizer que é um fenômeno polissêmico. Enquanto parte integrante da vida, a morte também está presente nas mais variadas situações cotidianas: nos meios de comunicação, nas expressões artísticas, quando morre um ente querido, ou até mesmo quando o homem pensa em sua própria morte. Há ainda vários tipos de causa de morte, como morte por causas naturais (advinda de alguma enfermidade clínica) e mortes por ações externas, denominada como morte não natural (oriunda de acidente, homicídio ou suicídio).

Entretanto, a definição e extensão de sentidos relacionados à morte não se esgotam aqui, há ainda um tipo específico e singular de morte: a morte social que, não se constitui social como uma morte em si, mas um paradoxo que revela como que o biológico e o social se fundam. A morte ocorre quando determinadas perdas de funções – sejam elas físicas e/ou sociais – acarreta interdições, no sentido de que há um rompimento dos papeis desempenhados pelo indivíduo num determinado grupo. E ainda, esse tipo de morte atrela-se ao fato do indivíduo tornar-se improdutivo e, por não desempenhar os papeis postulados pela sociedade de consumo, permanece, diante dela, marginal e à parte da vida social. Dessa forma, tal fato torna o sujeito oculto e despojado de direitos, especialmente o direito à sua individualidade.

Na perspectiva da diversidade cultural, esse tipo de morte insere-se nos mais variados contextos sociais, a sua definição e aplicação conceitual pode ser estendida para boa parcela dos sujeitos marginalizados socialmente, especialmente no campo de atenção à saúde, no qual a diferença é bastante expressiva. A morte social, embora em alguns casos não esteja diretamente vinculada ao processo de morte biológica [2], também pode ocorrer relacionada a este. São os casos de doentes vítimas de uma enfermidade que, pela debilidade física, consequentemente, os privarão de atividades sociais. Neste caso é uma morte em vida que é dúbia de sentido: é tanto física como social. São vários os exemplos, tais como: portadores de doenças infectocontagiosas como Aids, tuberculose, hepatite e demais sequelas do sistema neurológico como Traumatismo Raquimedular (TRM).

Em algumas situações, especialmente em casos de sequelas graves, os doentes estão inseridos num contexto no qual a vida sofre um impacto abrupto e inesperado e, portanto, refere-se a vítimas de algum trauma ou manifestação de uma doença repentina. Ou seja, são pacientes que não nasceram com tais sequelas e que precisam se readaptar a essa nova condição física e social. São sujeitos, ainda, estigmatizados [3] em função da sua condição física e, por consequência, são desintegrados socialmente. Além disso, é importante pontuar que, por detrás de muitas dessas sequelas, insere-se uma multiplicidade de histórias trágicas que afetaram a vida desses pacientes envolvendo acidentes, agressões, assaltos, tentativas de suicídio, dentre outras que, de fato, marcam uma ruptura na vida dessas pessoas.

Inserido nesses pontos, devido à gravidade dessas doenças, as vítimas não retomam suas atividades anteriores de forma plena, sejam atividades que envolvem sistema locomotor, neurológico, ou mesmo atividades sociais, como trabalhar, estudar. E, caso as retome, os doentes precisam criar outro “espelho de si”, a imagem que ele tem de si precisa ser ressignificada diante dessa nova condição física que irá privá-lo de algumas atividades realizáveis antes do acometimento da doença. Isso porque ele torna-se um diferente, devido ao seu novo estado, mas tal condição não o faz detentor do direito a essa diferença que, por uma fatalidade, ele adquiriu. Ao contrário, essa nova readaptação requer o enfrentamento de vários entraves sociais, como o estigma da doença que pode englobar tanto os aspectos físicos, comportamentais ou morais.

Como consequência, na morte social, especialmente inserida na área da saúde, o sujeito torna-se oculto, desconhecido e desprovido de direitos fundamentais e elementares. Ele perde o direito de ser diferente e, acima de tudo, de ser igual na sua diferença de forma equivalente. Isso gera uma perda da sua individualidade, apresentando assim, um risco para sua existência subjetiva e simbólica.

_____

[1] Janaína Aredes é tanatóloga, possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010) e Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012-2014). Tem experiência na área de Antropologia Urbana e Antropologia das Sociedades Complexas, com ênfase em Antropologia da Saúde e da Morte, Bioética e Educação Ambiental.

[2] Aqui entendida como o desenvolvimento de uma doença que pode ou não resultar na consumação total da morte biológica.

[3] O estigma se refere a uma característica pejorativa que desqualifica determinada pessoa ou grupo social impossibilitando-os a um convívio social pleno.

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3 Comentários para “Um morrer em vida: a morte social na esfera da saúde”

  1. Avatar Vanessa dos Santos disse:

    Olá
    Fiquei muito interessada pelo assunto, no entanto fiz uma pequena pesquisa e não consegui encontrar nenhuma outra referência. SE for possível, gostaria de pedir que você disponibilizasse algumas bibliografias? fico na esperança e desde já te agradeço. Parabéns pelo texto.

  2. Avatar Sheila Nagem Perru disse:

    Parabéns por levantar a questão da morte social e permita-me externar não uma opinião mas uma justificativa. Não foi a interdição que tirou essas coisas da pessoa. Foi a doença, foi a lesão. A interdição veio para permitir a outra pessoa que cuide dos interesses do interdito. Essa visão do que sobrou é muito positiva para a auto-estima e coisas assim, mas os profissionais de Saúde fazem muito mal em tentar impedir os direitos sociais em nome dos direitos fundamentais. Falo com conhecimento de causa e lamento pelos cuidadores de fato que não conseguem ser curadores de direito. Eu consegui, mas fiz muitos inimigos.

  3. Avatar daltair disse:

    É preciso que se desmistifique o suicídio como escapismo ou covardia; é preciso pensa-lo como algo plausível, desde que uma escolha feita sob condições de sanidade mental e capacidade de discernimento.

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