Cultura do bairro onde surgiu a marrabenta, gênero musical mais popular do país, é um dos temas do festival Back2Black, no Rio
MAPUTO — Há quatro décadas, Lourenço Marques era uma cidade partida. Na capital de Moçambique, então colônia portuguesa, os brancos viviam na “cidade de cimento”, às margens da baía, e os negros na “cidade de caniço”, conjunto de bairros periféricos em condições precárias, de onde não podiam sair sem documentos. A divisão foi extinta com a independência do país, em 1975. A capital foi rebatizada de Maputo e a antiga fronteira entre as duas regiões, a avenida Caldas Xavier, virou a avenida Marien Ngouabi, hoje uma via movimentada que em nada lembra os tempos de segregação.
Basta atravessar a avenida, porém, para mergulhar na história recente de Moçambique. É lá que fica a Mafalala, bairro-símbolo da periferia de Maputo. Com cerca de 20 mil habitantes, é um labirinto de casas de madeira e zinco, ruas de terra e vielas demarcadas por chapas metálicas que fazem as vezes de muros. É também o berço de expoentes da literatura, da música, das artes plásticas e da política moçambicanas, com papel decisivo nas lutas de libertação nacional e na formação da identidade do país.
Na próxima semana, o público carioca vai ter acesso a uma parte dessa produção cultural de Moçambique, ainda pouco conhecida no Brasil, apesar dos laços históricos entre os países. O Festival Back2Black, que acontece nos dias 20 e 21 na Cidade das Artes, terá shows de três dos principais músicos moçambicanos hoje — Wazimbo, Mingas e Moreira Chonguiça — e promoverá a estreia de um documentário sobre a marrabenta, gênero musical nascido na Mafalala. Em Maputo, o bairro começa a atrair mais visitantes, graças ao trabalho de uma associação que realiza festivais e tours na área e pretende criar um museu sobre a história local, inspirado em Soweto, distrito negro sul-africano que esteve na vanguarda da luta contra o apartheid, e nas favelas brasileiras.
— A Mafalala é o baluarte das artes e dos intelectuais de Moçambique — diz o cantor Wazimbo, por telefone, listando nomes de ex-moradores ilustres do bairro, como os escritores José Craveirinha e Noémia de Sousa, o compositor Fany Mpfumo, o jogador de futebol Eusébio, que se consagrou na seleção portuguesa e no Benfica, e líderes da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), como Samora Machel e Joaquim Chissano, os dois primeiros presidentes do país depois da independência.
Wazimbo cresceu na Mafalala, para onde se mudou pouco depois de nascer, em 1948, em Chibuto, no interior do país. Assim como ele e sua família, muitos recém-chegados em busca de trabalho se instalavam no bairro, que começou a crescer no início do século XX às portas da “cidade de cimento”. Sem poder circular livremente pela capital moçambicana, conviviam na zona segregada moradores vindos de outras regiões de Moçambique e de países africanos vizinhos, indianos de Goa e chineses de Macau.
A trilha sonora dessa mistura cultural era a marrabenta. Ela surgiu nos anos 1930, numa fusão de ritmos moçambicanos, como zucuta e magika, e estrangeiros, inclusive o samba, que chegavam pela única rádio da colônia. Era a música mais tocada nos banguenis, as concorridas tabernas clandestinas da “cidade de caniço”, frequentadas também por brancos. A origem do nome, que remete à expressão “me arrebenta”, é incerta: seria uma referência ao público que dançava até cansar ou à xigogogwana, guitarra caseira feita de lata, cujas cordas sempre se rompiam nos shows.
Essas histórias são resgatadas no documentário “Marrabenta”, dirigido pelo moçambicano radicado no Brasil Victor Lopes e produzido pela Cine Group. É uma espécie de “Buena Vista Social Club” da marrabenta, reunindo nomes da velha guarda, como Dilon Djindji e João Domingos, e destaques atuais, como Wazimbo, Mingas e Chico António. O filme mostra a evolução do gênero e sua presença no dia a dia moçambicano.
— A marrabenta não é só um estilo musical, é uma forma de viver. Tem a ver com o jeito como nos vestimos, falamos e nos comportamos. É a nossa História — diz, por telefone, a cantora Mingas.
A valorização da marrabenta em tempos coloniais, quando muitos conjuntos de Maputo tocavam fados e viras, foi parte de um movimento mais amplo de apelo às raízes moçambicanas impulsionado por intelectuais da Mafalala. Os mais celebrados pelos moradores são Noémia de Sousa (1926-2003) e José Craveirinha (1922-2003). Na escola do bairro, seus rostos estão gravados numa parede ao lado de outros ícones locais, como Samora Machel, que viveu numa casa de teto de zinco antes de se tornar líder da guerra de independência e primeiro presidente do país, e Eusébio, que aprendeu a driblar no campinho de terra da vizinhança.
Jornalista e poeta, Noémia de Sousa foi uma das pioneiras na defesa da libertação de Moçambique, nos anos 1940, e por isso foi presa e censurada. Exilou-se nos anos 1950, em Paris, de onde continuou a pregar o fim do colonialismo. Seus versos nacionalistas, que circulavam clandestinamente durante a guerra contra o regime português, passaram a ser lidos até nos livros escolares depois da independência, e foram reunidos mais tarde no único livro que publicou, “Sangue negro” (inédito no Brasil).
Considerado um dos fundadores da poesia moçambicana, ao lado de Noémia, José Craveirinha foi o primeiro africano a receber o Prêmio Camões, em 1991 (e tem apenas uma antologia publicada no Brasil, pela Editora UFMG, em 2010). Seus poemas afirmavam as tradições do país, mesclando a língua portuguesa e outros idiomas locais. Mesmo preso, foi um dos mentores do movimento de independência, postura expressa já num verso de seu primeiro livro, “Xigubo”, de 1964: “venho de um país que ainda não existe”.
— Noémia e Craveirinha foram ensinadores da moçambicanidade e da nossa condição colonizada. A Mafalala da sua infância e adolescência os ajudou a entender que havia uma pátria amordaçada que pedia a indignação e a luta emancipadora — diz, por e-mail, o escritor Mia Couto, ganhador do Prêmio Camões em 2013 e um dos principais nomes da literatura moçambicana.
Craveirinha incentivou músicos de Maputo a tocarem a marrabenta, desprezada pelo governo português. Wazimbo, que começou como crooner em bailes e casamentos na Mafalala, lembra de voltar ao país depois de uma temporada em Angola, no início dos anos 1970, e encontrar os compositores engajados, “cantando o novo Moçambique”, diz. Pressionado pelas guerras de independência na África, o regime colonial passou a valorizar o gênero, tentando criar a imagem de um Estado multirracial. Mas continuou a censurar músicas de conteúdo político.
— Por causa da censura, muitas letras de marrabenta tinham aparência inofensiva, tratavam do dia a dia da periferia, de vícios ou problemas conjugais. Mas alguns compositores conseguiam, de forma sofisticada, denunciar a situação do país em suas canções. Falavam da exploração e da luta pela liberdade — diz, por telefone, o historiador moçambicano Rui Laranjeira, autor do livro “A marrabenta: sua evolução e estilização 1950-2002” (inédito no Brasil).
Depois da independência, a marrabenta passou por uma fase de ostracismo. A Frelimo, guerrilha de base rural que instaurou um governo socialista, privilegiava ritmos do interior, em detrimento da música da capital, vista como “decadente e burguesa”, diz Rui. Nos anos 1980, o gênero reviveu com a criação da Orchestra Marrabenta Star, que incluía Wazimbo e Mingas. O grupo fez turnês internacionais e participou de concertos contra o apartheid sul-africano.
Nessa época, o cineasta Camilo de Sousa, nascido na Mafalala em 1953, percorria o país documentando a realidade moçambicana para o Kuxa Kanema, cinejornal oficial que ele ajudou a criar logo depois da independência. Moçambique vivia em guerra civil desde 1977, contra forças apoiadas pelos regimes segregacionistas dos vizinhos Rodésia (atual Zimbábue) e África do Sul. O cinejornal, que começou com o objetivo de “apresentar os moçambicanos aos moçambicanos”, recorda Camilo, tornou-se instrumento de denúncia das atrocidades do conflito, que durou até 1992 e deixou 1 milhão de mortos.
Sobrinho de Noémia de Sousa, que só conheceu no exílio, Camilo lia os poemas banidos da tia em edições caseiras da família. Na infância, via a mãe ser obrigada a sentar nos últimos bancos de ônibus vazios. Militante de primeira hora na guerra de libertação, desligou-se da Frelimo decepcionado com os rumos do partido, que está no poder há 40 anos, tendo vencido todas as eleições presidenciais desde a primeira, em 1994. Ele cita o bairro natal como exemplo das contradições do governo.
— A Mafalala se tornou o que Moçambique quis que ela se tornasse. Os pobres estão mais pobres e os ricos, mais ricos. O país parece ter coisas mais importantes a fazer do que resolver suas questões sociais e culturais. Estão todos mais preocupados com petróleo, gás, carvão — diz Camilo, por telefone.
Descobertas recentes de grandes reservas de carvão e gás natural trouxeram uma injeção de recursos para Moçambique, mas também provocam debates sobre distribuição de renda. Embora esteja entre os 10 países mais pobres do mundo, segundo a ONU, sua economia vem crescendo a um ritmo de 7% ao ano desde 2010. Em Maputo, onde vivem quase 2 milhões dos 25 milhões de habitantes do país, essa expansão se faz notar nos onipresentes canteiros de obras, principalmente na região costeira. A Mafalala, porém, continua a conviver com problemas de infraestrutura e habitação.
Ainda assim, o bairro dá sinais de vitalidade. Criada em 2009, a Associação Iverca promove todo ano o Festival da Mafalala, com shows de marrabenta e outros gêneros encontrados na vizinhança, como o canto e a dança tradicionais do grupo Tufo da Mafalala, formado por mulheres de origem macua, do Norte do país. Além disso, a Iverca promove caminhadas guiadas pelo bairro, com um roteiro montado a partir de obras de Noémia e Craveirinha e entrevistas com antigos habitantes.
O diretor da Iverca, Ivan Laranjeira, diz ter se inspirado em Soweto, o distrito negro de Joanesburgo que hoje é um dos pontos mais visitados da África do Sul. Com planos de criar um museu sobre a Mafalala, a associação trabalha para que governo e visitantes reconheçam o bairro como “um lugar histórico”, diz Ivan:
— A história cultural e política comum aos países de colonização portuguesa se cristalizou na memória e na identidade de certos lugares. Podemos falar da Mafalala como quem fala de bairros de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e até do Brasil.
Fonte: O Globo
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