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Ocupação Cambridge une luta e arte pelo direito à cidade

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Experiência de cinema colaborativo em São Paulo aproxima artistas e intelectuais de movimentos de sem-teto e refugiados

 

Ocupar está em voga na cidade de São Paulo. Secundaristas, massa crítica, hortelões comunitários, Ministério da Cultura (MinC), fábricas de cultura, Minhocão, jornadas de junho, ­rolezinhos foram e são fenômenos que apontaram para movimentos de apropriação e ressignificação dos espaços públicos e da vida pública. São insurgências distintas, na maioria um pontapé da juventude. E que, apesar de separadas no mapa, possuem pontos comuns: resistência, prática autônoma e discurso apartidário. Uma experiência chama especial atenção nesse fluxo, principalmente pelo cruzamento entre diferentes tribos urbanas – militantes, artistas, jornalistas, psicanalistas, arquitetos, médicos e refugiados: a Ocupação Cambridge, fruto de um movimento não tão novo, mas importante na história das lutas sociais da cidade, pela moradia digna.

Situado no primeiro quarteirão da Avenida 9 de Julho, vizinho do Vale do Anhangabaú, o Hotel Cambridge é dos tempos da “terra da garoa”, inaugurado em 1951. Cerrou as portas em 2002, resistindo ainda algum tempo – antes de fechar de vez – como espaço de festas e eventos, num lobby agitado encimado por andares abandonados. Acabou ocupado na noite de 22 de novembro de 2012 pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC). O edifício sem elevador tem 15 pavimentos e 241 quartos. Após a ocupação, um mutirão de limpeza removeu 15 toneladas de lixo em caçambas de quase 60 caminhões. A reciclagem não era apenas do lixo, mas também do espaço, que deixava de ser um lugar sem função social para abrigar mais de 170 famílias, cerca de 500 pessoas.

“Além de moradia, aqui promovemos ações e debates, para que o direito constitucional que garante a moradia seja cumprido pelo Estado, corrigindo as falhas cometidas há décadas pelo poder público na distribuição urbanística e habitacional das cidades brasileiras”, afirma Carmen Silva, líder da ocupação e da Frente de Luta por Moradia (FLM). O movimento atuou no centro, pois entende que a morada digna não é apenas “telhado e quatro paredes”, mas estar cercada por serviços públicos como transporte, escola, posto de saúde, creches, faculdades e oportunidades de trabalho. A luta é pelo direito à cidade.

 

Shopping rua

Chamam a atenção na ocupação diversos aspectos, entre os quais a gestão coletiva do espaço. As famílias dividem a limpeza e se responsabilizam pelas áreas comuns do prédio. Quando há um morador novo, uma força tarefa busca nas ruas móveis e objetos que possam ser reutilizados (o que eles chamam de “shopping rua”). Há horários limitados para visita, não se tolera o uso de drogas e todos devem participar das assembleias e ações do movimento pela cidade. Para quem vem de fora, impressiona o nível de participação dos moradores em assembleias, fóruns, conferências municipais, passeatas e decisões sobre o orçamento público da cidade. Uma verdadeira aula de cidadania e cuidado com o bem comum.

A liderança feminina também se destaca. “Temos muitas heroínas por aqui”, conta Carmen. “As mulheres ocupam cada vez mais o espaço de luta, defendendo suas famílias e a moradia digna.” Ela própria é uma dessas. Cansada das agressões domésticas, trocou Salvador por São Paulo. Deixou com a família os sete filhos e voltou para buscá-los anos depois. Chegou em São Paulo com as mãos vazias e cheia de esperança no peito. Morou de favor na casa de amigos até saber de uma ocupação no centro. Começava ali a emocionante trajetória de uma vida política marcada por lutas e conquistas, até se tornar líder do movimento que abriga, em mais de 60% dos casos, mães solteiras como ela.

Também nas ocupações do centro vários refugiados encontraram base para nova vida. A ausência de políticas públicas para imigrantes e refugiados faz das ocupações uma alternativa de adaptação e integração com a cidade. Vindos do Congo, Haiti, Senegal, Togo, Camarões, Benin, Colômbia, Peru, Bolívia, República Dominicana e Palestina, procuram, além de uma vida melhor, emprego e um meio de enviar dinheiro para seus familiares nos países de origem. “Quando o refugiado chega na cidade não tem onde dormir. O Brasil abriga cerca de 9 mil refugiados, e em São Paulo são apenas 340 leitos no centro de acolhida”, afirma Pitchou Luambo, refugiado da guerra pelo minério na República Democrática do Congo – e morador da Ocupação Cambridge.

 

Cinema colaborativo

A diversidade cultural resultante desse encontro entre brasileiros de diferentes regiões, imigrantes e refugiados, inspirou a cineasta Eliane Caffé a produzir o filme Era o Hotel Cambridge. “O que me interessava retratar era o choque cultural entre refugiados e brasileiros, e aí apareceu o tema das ocupações. Mas no lugar do choque encontramos semelhanças: tanto os refugiados como os trabalhadores de baixa renda dividem esse problema em comum: a falta da moradia”, diz.

Nas oficinas preparatórias, em que Eliane reuniu os refugiados para o estudo e escolha dos “personagens”, foi formado o Grupo dos Refugiados e Imigrantes Sem Teto (Grist), que decidiu expandir os encontros para além do filme. Hoje, o Grist promove debates e palestras sobre refúgio, história africana, xenofobia, racismo e descriminação e promove cursos, campanhas, festivais e shows para difusão e valorização da cultura. Em um ano, o grupo realizou o 1º Fórum dos Refugiados e Imigrantes Sem-Teto de São Paulo, o 1º Festival Musical dos Refugiados de São Paulo (no Largo da Batata, tradicional palco de manifestações na zona oeste) e o evento Conexão Cultural (no Museu da Imagem e do Som, o MIS).

E não foi o único coletivo que se originou no contexto da gravação de Era o Hotel Cambridge. O filme inspirou a formação e o cruzamento de novas ações e movimentos. Um verdadeiro laboratório social e cultural, fazendo São Paulo despertar para uma forma incomum de pensar o cinema: como um legado social. A experiência desafiou as estruturas hierárquicas e tradicionais de direção e produção, propondo uma forma participativa, colaborativa e inclusiva.

O filme mistura ficção e documentário e narra a trajetória de um grupo de refugiados recém-chegados, que se unem aos sem-teto e dividem a ocupação de um antigo edifício no centro de São Paulo. Foi realizado por meio de um processo colaborativo entre a Aurora Filmes, um grupo de estudantes de arquitetura da ­Escola da Cidade e o MSTC. O elenco reúne atores profissionais, como José Dumont e Suely Franco, e atores sociais: os moradores, que interpretam a própria história.

Durante a fase de criação do roteiro, pesquisa e seleção dos personagens, além dos encontros dominicais com o grupo dos refugiados, foram realizadas oficinas de vídeo com os moradores da ocupação, e o observatório web, com exibições e debates. Toda a produção artística envolveu moradores, não apenas como parte da equipe, mas usando dos seus saberes e tecnologias, como o shopping rua.

A professora de Desenho e Arquitetura Carla Caffé, da Escola da Cidade, também diretora de arte de Era o Hotel Cambridge, elaborou um curso para que os alunos colaborassem com o desenho e produção de arte, como na definição de cores, tecidos, imagens, animações, figurinos e cenários. A ideia foi fazer um “cinema de intervenção” em vez de um “cinema de passagem”. Tudo o que fosse construído para os cenários não deveria ser desfeito, e sim ter uma função, um legado, enquanto a ocupação existir.

A disciplina foi realizada com 21 estudantes e o professor Luís Felipe Abbud. A atividade experimental uniu ensino de arquitetura ao de direção de arte cinematográfica. A disciplina trouxe à tona problemáticas urbanas como a compreensão e atuação com um movimento social de luta por moradia (MSTC) e o reúso inteligente de materiais descartados, em oficinas com o Coletivo Basurama. “Equipamos a biblioteca, o brechó, a área das costureiras e o saguão de entrada do hotel”, diz Carla. “Equipamos os pontos de encontro e interação dos espaços comuns do edifício, para incentivar o espírito de coletividade do movimento.”

Os encontros de pesquisa e criação com os personagens sociais começaram a reunir entusiastas de todos os campos e ganhar vida própria. Mesmo depois de as gravações terminarem, o intercâmbio social e cultural era tão forte que muitos da equipe do filme resolveram continuar­ suas ações e oficinas, e novos movimentos começaram a brotar na ocupação: a fome dos paulistanos em ocupar, sair das bolhas, cruzar fronteiras e desafiar a ordem.

A construção da horta comunitária no telhado do prédio – com o Coletivo Habitacidade –, aulas de dança africana, intervenções de jornalistas independentes, grupos de trabalho em psicanálise – conduzidos por profissionais do Instituto Sedes Sapientiae –, a formação do Centro de Assistência à Saúde dos Imigrantes e Refugiados (Casir) e ações do coletivo interdisciplinar Linha de Frente e da Residência Artística Cambridge são algumas das ações que acontecem hoje no local.

Era o Hotel Cambridge ganhou prêmio e foi lançado em setembro deste ano no Festival San Sebastián, na Espanha, um dos mais importantes do mundo. Ganhou reconhecimento internacional em exposições como no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o MIT, nos Estados Unidos), em março. No Brasil, deve entrar em cartaz no início de 2017.

“Eu gostaria de seguir esta experiência de um filme expandido também na fase de comercialização”, diz Eliane. “Os festivais convidam, pagam passagem ­aérea geralmente para diretor e produtor. Quando você chega lá no tapete vermelho tem a mídia imensa esperando você passar, e quando a gente fala em lançamento expandido, quer dizer não deixar o pessoal do movimento fora dessa, e aproveitar a oportunidade para fazer novas articulações similares em evento que estão acontecendo no mundo, de ocupação e de refugiados.”

Na Espanha, Carmen Silva, do MSTC, conheceu e fez alianças com lideranças da Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH), associação surgida em fevereiro de 2009 em Barcelona. “Estamos conseguindo levar para fora a nossa luta”, celebra Carmen. “É uma grande oportunidade de dar visibilidade ao movimento que sempre foi muito discriminado pela mídia. O filme permitiu mostrar que não somos vândalos, e sim famílias e trabalhadores lutando pelos direitos garantidos na nossa Constituição.”

 

Direito de ocupar

Em tempos em que o espaço público das cidades se vê ultrajado por bombas de efeito moral e balas de borracha, ocupar virou palavra de ordem para quem defende a democracia e a vida. Como diz o poeta Hamilton Faria, sociólogo do Instituto Pólis: “É preciso desobedecer as práticas antidemocráticas: na vida cotidiana, nas instituições e na sociedade em geral. Ocupar não é invadir. É entrar pacificamente e dizer ‘olha, eu tenho voz e isso me pertence’. A Funarte não é do Ministério da Cultura, as escolas não são do governo estadual, os espaços públicos não são do governo. Eles são públicos”.

O conceito do Direito à Cidade tem ganhado visibilidade e reconhecimento, não apenas entre a sociedade civil mas também dos governos mundiais (como a inclusão do termo na Nova Agenda Urbana, documento oficial da Organização das Nações Unidas). A arquiteto e curador Guilherme Wisnik lembra que a ideia de Direito à Cidade para Henri Lefebvre (filósofo francês, autor do conceito) implicava não em um direito aos serviços da cidade exatamente, mas um direito de transformar a cidade. Inventar uma nova cidade a partir do real.

Segundo Wisnik, o pensamento ficou esquecido por no mínimo duas décadas (de 1980 e 1990) de predominância do pensamento neoliberal de que tudo aquilo que foi postulado como possibilidade transformadora nos anos 60 tinha se revelado impossível, segundo o raciocínio pragmático. “Mas na virada do século aconteceu por diversas frentes uma espécie de ataque ao coração do sistema, e essas manifestações se desdobraram em possibilidades reais de que o sistema pudesse ser mudado”, afirma.

A Ocupacão Cambridge não é apenas um marco de resistência ao modelo individualista, competitivo e alienado das cidades modernas capitalistas. É, ao mesmo tempo, um modelo a ser observado e aprendido como paradigma de cidade e relações humanas. As soluções para os grandes problemas que vivemos nas cidades não precisam ser inventadas, mas reconhecidas e fortalecidas. Era o Hotel Cambridge é um exemplo de apropriação das tecnologias e saberes produzidos nas ocupações.

Fonte: Brasil de Fato

Imagem: Jardiel Carvalho/R.U.A Foto Coletivo

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