“Gingar é ir de encontro ao outro”!
As organizações políticas, comunitárias e tradicionais no continente africano e na diáspora[1] atestam uma forma costumeira e conciliadora de lidar com os conflitos – em relação à natureza e a sociedade – nos influenciando numa dimensão contingencial da experiência civilizatória africana no Brasil e nos dando um caminho de como articular novas bases ético-jurídicas para pensar o direito numa ótica emancipatória. Observamos, logo, de início, que a tentativa aqui, é tanto mais epistemológica tanto quanto de produção cultural e, que, estas perspectivas serão sempre trazidas como um discurso de origem e não de finalidade.
Os Bacongos, aqueles povos do antigo Reino do Congo que, hoje, estão localizados nas regiões onde se encontram os países: Angola, Congo, Brazaville e Gabão, nos apresentam uma narrativa de mundo e uma consciência cósmica extremamente valiosa para interpretação da realidade dos africanos e seus descendentes em todo o mundo. Esta mandala cosmológica ou o cosmograma Bakongo[2] referencia-se na travessia do Kalunga, como uma linha que atravessa oceanos e continentes além das montanhas do Oeste e permite o diálogo entre os mundos dos vivos e mortos além de outras possibilidades simbólicas que delas se extraem.
No mundo dos espíritos Kumpemba é onde residem diversas forças que determinam as ações humanas. Este pode ser um pressuposto para pensar o comportamento, os modos de resolução de conflitos e os mecanismos que acionamos para respondermos a muitas das nossas questões de verdade e justiça. Esta proto-narrativa civilizatória nos convida a pensarmos questões contemporâneas sobre humanidade, ética, direito e justiça; já que o direito hegemônico, através de suas lógicas e equações, não consegue responder as aspirações dos novos sujeitos subalternizados da sociedade moderna.
É possível afirmar um direito africano ou afro-brasileiro? Existe um repertório comum que informa e unifica este direito? Este direito pode ser universalizável como pressuposto de justiça a outras comunidades não africanas? Estas são as indagações que proponho tematizar para sugerir a possibilidade de um debate nos campos da antropologia jurídica, da filosofia africana e da filosofia do direito.
René David alerta que a experiência africana se assemelha ao processo assimilacionista romano quando teve que elaborar um jus gentium para reconhecer as culturas e valores dos não-romanos. Entretanto, nos países africanos colonizados abriu-se a uma conformação para um direito ocidental formal, importado, quase que, literalmente, dos países de origem.
O congolês Kunzika dá uma elevada amplitude aos usos dos provérbios Kikongo na vida comunitária e institucional do Congo e ainda nos presenteia com suas possibilidades linguísticas em outras línguas, nada diferindo do que sempre foi apresentado como senso comum teórico eurocêntrico respaldado numa liturgia jurisprudencial de base germano-românica e, mais recentemente, reforçado com a doutrina consuetudinária do Common Law do empirismo anglo-saxônico. Este sistema de referência ou repertório tópico possui forte poder sobre os critérios de resolução dos conflitos, ainda, na contemporaneidade.[3]
As expressões: “mfumu ka dianga ngulu a kutu dimosi ko”, assim traduzida para o português: “o chefe não ouve só por um ouvido” tratando do direito ao contraditório e “mvumbi mvula tembo kina kawene kikanatumunanga” – “a morte é como uma chuvada, ela leva o que encontra”, tratando da isonomia para todos, localizam alguns dos pressupostos ético-jurídicos do costumem da lei e da obediência fundado em elementos naturais, religiosos ou tão somente convencionais praticados há séculos naquele continente, e, em especial, no Brasil.
Como podemos entender as diversas formas de lidar com os costumes originados do processo civilizatório africano em confronto com o direito germano-românico, fenomenológico, positivista e culturalista do direito brasileiro? As comunidades tradicionais e as referências mais ancestralizadas das nossas experiências comunitárias (Candomblé, Capoeira, Quilombo, Comunidades Tradicionais etc.) dão conta de que os valores e noções de justo têm sempre acompanhado as noções de integração e comunhão com a natureza, uso comunitário e coletivo da propriedade, restituição no lugar de retribuição de pena, famílias extensas etc.
Cosmograma Bakongo
Nessa travessia do Kalunga, a visão cosmogônica e comunitária dos conceitos de lei e crime dos Bacongos estudados por Fukiao deve ser revisitada à luz dessa moderna tendência de um direito que renasce preservando as autoridades tradicionais africanas na África e na diáspora. Na mesma trajetória, analisaremos, à luz de Ramose e Wiredu, os elementos da cosmovisão Ubuntu, as perspectivas de restauração e equilíbrio como comportamento ético vital e sua relação com os processos de consensualidade exaustiva nessas comunidades.
A positividade formal do direito resulta injusta e iníqua. Como buscaremos novas invenções originais que respondam às nossas perguntas existenciais e práticas? Temos produzido um sem-número de projetos de extra judicialidade como orientadora de acesso ao direito e à justiça refletida nas propostas de mediação de conflitos e suas diversas abordagens. Experiências, as mais variadas, tem tomado conta da agenda dos órgãos estatais (arbitragens, mediações, mutirões conciliatórios, etc.) e das organizações sociais no Brasil afora como saída para um direito dogmático e elitista que muito pouco nos diz através de seus “provérbios” e “modos de fazer” ético-jurídico. Será que esta potencialidade resolutiva em se equacionar os conflitos no interior da comunidade e sem responsabilizar a pessoa isoladamente nem retirá-lo do seu meio, buscando saídas na coletividade, não é uma tradição africana esquecida pelas novas gerações?
A Convenção 166 da ONU se apresenta nesse contexto o qual critérios hermenêuticos mais complexos e heterogêneos tiveram que ser adotados pelas cortes internacionais e pelos países do sistema para localizar modos de aplicabilidade de resolução de conflitos preservando-se a autonomia e os costumes das comunidades e povos tradicionais. Nesse aspecto, a área penal foi a que mais teve que se acomodar com os métodos de mediação para o tratamento dos conflitos.
Um exemplo mais próximo da experiência com os indígenas originários da América Latina nos chama para a leitura sempre ampliada das diversas cargas semiológicas que o conceito de etnicidade exige. No caso da América Latina, os repertórios ancestralizados das diversas etnias se valem de um “capital étnico” poderoso para a afirmação de direitos em nome de uma “potência plebeia”[4] na Bolívia. O autor vaticina que “fica bastante claro que, a Bolívia é, a rigor, uma coexistência de várias nacionalidades e culturas regionais sobrepostas ou moderadamente articuladas”. A existência de uma sociedade multiétnica impõe que o modelo de estado e de sua base jurídica seja também pluralista. Esta possibilidade foi materializada através da carta constitucional binacional na Bolívia que adota critérios de autonomia política local, equidade, proporcionalidade, solidariedade etc. O reconhecimento de uma comunidade política multinacional e multicultural pode caracterizar-se enquanto referência bastante proveitosa para os nossos debates e em nome de uma pluralidade jurídica pode ser experimentada, também, no Brasil.
O tema da diversidade étnico-racial no sistema normativo brasileiro é algo novo no debate sobre as juridicidades. Podemos encontrar fontes esparsas, nada muito elaborado ou aprofundado no repertório livresco nas livrarias e bibliotecas. Entre estas poucas obras quero referir-me ao livro Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial, organizado por Flávia Piovesan e Douglas Martins (2006), através do Instituto Pro Bono[5] que pode ser considerado um estudo inaugural sobre o direito à igualdade étnico-racial, o confronto a uma suposta norma jurídica neutra e universal e a necessidade de uma cultura jurídica pluri-normativa.
Nesse momento diversas mudanças estão ocorrendo nos países africanos e em especial, no Brasil. Todos se preparam para o futuro e buscam modelos que combinam direito moderno e direito tradicional. Este é o desafio do século XXI para os africanos e a diáspora. A Cosmovisão afro-brasileira proporcionada pelo “mundo da vida” (moralidade, eticidade e juridicidade) embora subalternizada e criminalizada pode inspirar elementos de uma nova juridicidade original emancipatória.
Nessa travessia de avanços e reversibilidades, o cosmograma Bacongo pode nos servir de base para compreendermos nossa realidade afro-brasileira como pressuposto para pensar o direito. Nesse caminho, cabe a construção de uma nova cultura a qual funde uma filosofia jurídica de natureza descolonial, original e emancipatória para, enfim, vislumbrarmos novos caminhos para o Kalunga!
Fonte: artigo de Sérgio São Bernardo/ Portal Geledés
Imagem 1: Portal Geledés
Imagem 2: Cosmograma Bakongo/ Portal Geledés
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