Incrustada no coração da África, sob uma impenetrável floresta tropical, Wakanda parece uma nação miserável de agricultores. Mas sua pobreza é falsa, e serve de cortina para esconder um grande segredo: uma montanha de um metal com propriedades especiais que, explorado ao longo de séculos pelos wakandenses, permitiu um desenvolvimento científico e econômico jamais sonhado por qualquer outro país.
Recém-lançado, o filme Pantera negra narra a trajetória de T’Challa, rei da utópica Wakanda e dono do título de Pantera Negra, herói lendário da nação. Futurista, com equipe e elenco majoritariamente negros, o longa é o exemplo mais atual de um movimento estético-artístico que mistura fantasia, tecnologia e referências africanas pré-diáspora, resultando em narrativas ficcionais que colocam homens e mulheres negros no centro: o Afrofuturismo.
“É um movimento que abrange diversas narrativas de ficção especulativa – aquela que se propõe a especular sobre o futuro ou o passado -, sempre da perspectiva negra, tanto africana quanto diaspórica”, resume Kênia Freitas, comunicadora e curadora da mostra Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica, que aconteceu na Caixa Cultural, em São Paulo, há três anos.
Ela explica que o Afrofuturismo é “amplo e abrangente”, e engloba música, quadrinhos, cinema, moda, artes plásticas e literatura. Atualmente, sua estética é visível, por exemplo, nos clipes futuristas da cantora Janelle Monáe, nas “canções cósmicas” de Erykah Badu e Outkast e, ainda, nas telas de Jean-Michel Basquiat, que carregam referências de um passado ancestral com toques contemporâneos. No cinema, além de Pantera negra, o longa Uma dobra no tempo, com estreia prevista para março, também se enquadra na estética: dirigido por Ava Duverney, o filme de aventura tecnológica é protagonizado por uma jovem atriz negra, Storm Reid, e por Oprah Winfrey.
Já no Brasil, as maiores expressões afrofuturistas estão em filmes como Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, na música do grupo Senzala Hi-Tech e na ficção científica de Fábio Kabral, autor de O caçador cibernético da rua 13 (Malê) – romance que mistura crenças do Candomblé a um planeta tecnológico semelhante a Wakanda.
“Minha ideia é romper com a lógica ocidental e europeia de que o continente africano não tem nada a oferecer e, ao mesmo tempo, trazer uma visão afrocentrada, para que as produções ficcionais não sejam sempre histórias de brancos em que os pretos estão ligados ao crime ou são malandros”, afirma o escritor.
Ironicamente, o termo “Afrofuturismo” foi usado pela primeira vez por um homem branco, o teórico e crítico cultural Mark Dery, em seu ensaio Black to the future (1994). No texto, porém, Dery questiona a ausência de autores negros na literatura de ficção científica nos Estados Unidos – e, ao mesmo tempo, data o nascimento da estética que chamou de “afrofuturista” entre os anos 1960 e 1970, nas notas musicais do jazzista Sun Ra (que afirmava não ser deste planeta), nas palavras da escritora Octavia Butler (a primeira mulher negra a ganhar notoriedade no gênero da ficção científica) e, ainda, nos quadrinhos do Pantera negra, publicados pela primeira vez em 1966 pela Marvel Comics.
“Embora Sun Ra e Butler não se considerassem afrofuturistas, as características do movimento já eram visíveis em suas obras”, diz Kênia Freitas, que aponta algumas dessas marcas: a autoria e o protagonismo negros, a estética ancestral africana misturada ao futurismo e a exploração de temas que “atravessam a experiência de vida do autor”, como um Estado violento, o genocídio da população negra, o encarceramento em massa, a desigualdade social, choques culturais e, principalmente, a falta de liberdade.
“Nem sempre isso aparece de forma óbvia. Em Branco sai, preto fica, [que se passa em Brasília], de repente as pessoas das cidades-satélite precisam mostrar o passaporte para entrar no Plano Piloto. Não é uma prisão de fato, mas há uma privação da liberdade marcante aí”, lembra Freitas.
Como o próprio nome diz, as narrativas afrofuturistas geralmente se passam em futuros distópicos ou utópicos, povoados por protagonistas como o rei de Wakanda – o que, para Freitas, simboliza uma “necessidade de projetar futuros em que a população negra, atualmente oprimida e excluída, esteja presente e atuante”. Mas se criar um futuro, mesmo que absurdo, traça possibilidades para a negritude, olhar para trás e revisitar a história “também é importante para as pessoas pretas entenderem que elas detêm uma narrativa ancestral, ao contrário do que mostram os livros de história”, afirma Fábio Kabral.
No romance Kindred, por exemplo, Octavia Butler imagina o que aconteceria se uma mulher negra da década de 1970 fosse mandada de volta para os Estados Unidos escravocrata. Já O caçador cibernético da rua 13, de Kabral, além de resgatar elementos da antiga mitologia Iorubá, usa uma narrativa sobre abdução alienígena, tema frequente na ficção científica, como uma metáfora para abordar a escravidão: “Nos dois casos, o ser humano é retirado do seu mundo e colocado em outro, hostil e desconhecido, em que ele precisa se adaptar ou morrer”, explica o escritor.
A escravidão, concorda Freitas, transformou suas vítimas em “verdadeiros alienígenas”, incapazes de se comunicar em uma língua desconhecida, separados “do que era familiar” e as tornou, acima de tudo, vulneráveis. “Somos descendentes deste processo de alienação. Se apropriar da escravidão para criar algo novo, como uma narrativa de ficção especulativa, é comum no Afrofuturismo“, afirma Kênia Freitas.
Para ela, a força do movimento está justamente na possibilidade de “manipular e apropriar-se dos tempos passado e futuro para propor uma subversão do pensamento” que, hoje, estaria focado na branquitude. “São histórias de repressão, de violência, de racismo – mesmo que sejam outras espécies de alienígenas, outras sociedades, outros planetas ou outros tempos. E isso acaba sendo, no final das contas, uma forma de repensar e criticar o presente”, conclui.
Fonte: Revista Cult
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