COLUNAS

A capital e o capital – Coluna de Fayga Moreira 03/06/2025

Por聽Fayga Moreira*

 

Nos mudamos, no alvorecer do ano corrente, para uma cidade bem pequena no interior da Bahia. Peguei meus filhos, meus livros e algumas caixas de coisas 煤teis, outras dispens谩veis, mas com valor afetivo. Disse adeus (ali谩s, um at茅 breve) para a capital carioca. Deixamos um territ贸rio com cerca de 6 milh玫es de habitantes para viver em um munic铆pio com 12 mil pessoas.

Certo dia, caminhando pelas ruas pacatas, meu filho me perguntou: 鈥渕茫e, por que aqui n茫o tem gente morando nas ruas?鈥. Fiquei, por alguns segundos, tentando encontrar uma resposta que estivesse 脿 altura do seu questionamento. Me resumi, na ocasi茫o, a elogiar a sensibilidade dele e o olhar cr铆tico sobre um problema social que eu sequer havia notado a inexist锚ncia desde nossa chegada.

As crian莽as n茫o naturalizam o horror.

No Rio, t铆nhamos muitos 鈥渧izinhos鈥 em situa莽茫o de rua. Gente que vivia embaixo de uma marquise e sempre cumpriment谩vamos ao passar em frente 脿 sua casa-cal莽ada. Em nosso trajeto at茅 a escola que estudavam, esses moradores j谩 faziam parte da rotina, da paisagem urbana, onde fica t茫o evidente a m谩quina de exclus茫o e desumaniza莽茫o que normalizamos. Essas pessoas, humanas como n贸s, j谩 nos eram t茫o familiares que sent铆amos falta quando n茫o estavam em seu canto habitual.

Ensinei para eles que, o m铆nimo de dignidade que pod铆amos lhes devolver era olhar nos olhos de cada um como quem diz: te vejo, para mim voc锚 茅 um igual. H谩 um abismo entre n贸s, mas eu te enxergo. Ensinei porque aprendi com o Padre J煤lio Lancellotti: fazer contato visual com pessoas em situa莽茫o de rua, ainda que voc锚 n茫o possa ajud谩-las, 茅 um gesto em si transformador. Parece algo simples, mas n茫o 茅. Quando voc锚 olha nos olhos, voc锚 devolve a elas a humanidade que a desigualdade social e a condi莽茫o de vulnerabilidade retiram.

Quando meu filho notou algo que havia passado despercebido para mim, fiquei dias refletindo, digerindo aquela pergunta t茫o disruptiva. E tudo que me ocorria era a contraposi莽茫o entre comunidade e capital. Ser谩 fortuito que as capitais recebam o mesmo nome do sistema produtor de cis玫es sociais desumanizantes em que estamos imersos? Suponho que n茫o. As capitais, em geral, s茫o os territ贸rios com maior concentra莽茫o e circula莽茫o de capital. E aqui me refiro estritamente ao capital econ么mico (que promove a hierarquiza莽茫o de classes sociais por meio da renda, do patrim么nio, do acesso a bens materiais e servi莽os privados). Em um sistema baseado na explora莽茫o do trabalho para obten莽茫o de lucro, na produtividade como fundamento para a prosperidade, no individualismo como princ铆pio basilar da meritocracia, a concentra莽茫o de renda 茅, lamentavelmente, sin么nimo de adensamento de pobreza e de miserabilidade. O capital n茫o s贸 gera, mas se nutre da falta de justi莽a social.

Mas apenas nas capitais o capital viceja? Claro que n茫o.

Nos interiores desse nosso Brasil profundo, inclusive, as din芒micas de opress茫o e exerc铆cio do poder podem ser at茅 mais violentas que as operadas pelo sistema financeirizado que atinge a todos. Mas 茅 tamb茅m nesses lugares, onde quase todo mundo se conhece, que o sucesso financeiro, como l贸gica exclusiva de distin莽茫o social, se mostra menos totalit谩rio.

No micro, a sensa莽茫o de pertencimento comunit谩rio encontra algum espa莽o para florescer. Zygmunt Bauman atentou muito bem em seus livros para a diferen莽a entre 鈥渃omunidade est茅tica鈥 (aquela que s贸 entende como comum seus iguais e faz do diferente, inimigo) e 鈥渃omunidade 茅tica”. Os 鈥渂em-sucedidos鈥 criam, segundo ele, simulacros de comunidade, que n茫o pressup玫em responsabilidades 茅ticas compartilhadas, muito menos compromissos coletivos. J谩 nas periferias, a ideia de comunidade se torna estrat茅gia de resist锚ncia e mecanismo de sobreviv锚ncia, em contraponto 脿s viol锚ncias estruturais a qual s茫o submetidas. Contudo, dessa comunidade, busca-se sair por meio do sucesso.

A 鈥渇avela venceu鈥 茅 uma esp茅cie de slogan neoliberal. Um enriquece e leva sua fam铆lia junto. A favela continua sendo onde a classe trabalhadora 茅 explorada ao extremo e desassistida pelo estado (tamb茅m corro铆do ou hermanado com o capital). Bauman nos lembra que esse sistema meritocr谩tico culpabiliza quem supostamente fracassa. Aspas para o autor: 鈥渟omos convocados (…) a buscar solu莽玫es biogr谩ficas para contradi莽玫es sist锚micas; procuramos salva莽茫o individual para problemas compartilhados鈥.

E h谩 sa铆da?

Minha hip贸tese 茅 que, nas cidades pequenas dos interiores, existem mais condi莽玫es para que uma 鈥渃omunidade 茅tica鈥 vigore. Como? Por meio de um tecido social que absorve os desvios e que estabelece um pacto coletivo de cuidado com os mais vulner谩veis. Assim, fica mais f谩cil acessar, inclusive, os direitos sociais garantidos pelo estado. Um menor adensamento populacional acaba produzindo uma sensa莽茫o de menos press茫o e superlota莽茫o dos servi莽os p煤blicos. Mas n茫o s贸: somos todas e todos filhos de algu茅m que importa para essa comunidade. Seja da artes茫, da funcion谩ria do postinho, da professora, do seguran莽a, do pequeno agricultor, do pescador, da feirante, do vendedor de picol茅, do prefeito. Isso significa, tamb茅m, por 贸bvio, um estado de vigil芒ncia constante, n茫o vamos romantizar. A diferen莽a entre um compromisso 茅tico (responsabilidade coletiva para garantir prote莽茫o, cuidado, respeito a todos) e o julgamento moral pode ser muito t锚nue.

Mas fato 茅 que: n茫o h谩 desfilia莽茫o total de um dos membros dessa comunidade. Em algum espa莽o ele encontrar谩 um acolhimento m铆nimo a ponto de n茫o ser necess谩rio que durma nas ruas e passe fome. E isso 茅 muito.

Enquanto pensava nisso tudo para apresentar uma resposta 鈥渟imples鈥 para a pergunta 鈥渇orte鈥 lan莽ada pelo meu filho, um trecho do document谩rio 鈥淎 trama do olhar鈥 passava como um looping dentro da minha cabe莽a. Nela, a c芒mera vai registrando cenas de uma grande cidade, com muitos pr茅dios, muitos carros e muita gente aguardando os sinais nas ruas, imagens acompanhadas por uma fala em off de um anci茫o ind铆gena que descreve, em sua l铆ngua, suas impress玫es sobre nosso modo de vida:

“Sinto que as pessoas que vivem nas cidades est茫o cada vez mais distantes umas das outras, principalmente das suas crian莽as. Fico impressionado quando vejo as moradias. Muitos moram em pr茅dios, se encaixotando, como passarinhos nas gaiolas. A maioria das pessoas vive em condi莽玫es muito desiguais. Na minha aldeia, todos t锚m acesso ao mesmo tipo de habita莽茫o. O ritmo de vida das aldeias e das cidades n茫o s茫o iguais. Para mim, 茅 um desafio muito grande conhecer um pouco da vida dos Warazu (n茫o-铆ndios). Nas ruas, pessoas caminham como formiguinhas, sempre seguindo os mesmos passos. Correm contra o tempo do rel贸gio sem olhar pra cima para ver a posi莽茫o do sol e sentir o movimento da terra鈥 (A TRAMA DO OLHAR, 2009).

Talvez seja sobre isso o senso de pertencimento a uma comunidade 茅tica: quando temos o b谩sico para garantir uma vida digna, o capital deixa de ser a 煤nica forma de vincula莽茫o, distin莽茫o e de cria莽茫o de sentidos coletivos. O tempo deixa de ser associado ao dinheiro e podemos voltar a sentir o movimento da terra, o vai e vem das mar茅s.

 

(*) Jornalista, pesquisadora, produtora cultural, professora universit谩ria, escritora e m茫e.

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