Giuliana Kauark[1]
Durante estadia (ainda em curso) em Paris, tenho participado de alguns encontros relativos à diversidade cultural, tanto aqui como em outras cidades e países da Europa[2]. Farei a seguir um relato com impressões dessas discussões, evitando o dispensável tom relatorial e trazendo, em seu lugar, questões que revelem esse processo de aproximação e apreensão da temática em terras estrangeiras.
Ao todo são nove questões. O nove é um número cabalístico que representa o fim de um ciclo e o início de outro. Simbolicamente este ensaio visa a encerrar a primeira fase do intercâmbio acadêmico relacionada à observação e iniciar a seguinte de pesquisa e produção.
1 – Quem tem o poder de fala?
O primeiro encontro que participei chamou a atenção porque, embora experiências do Brasil tivessem sido relatadas, não havia nenhum brasileiro à mesa. Na sequência, o cenário não mudaria. Percebi que a maioria dos convidados ou são franceses ou de algum país europeu. Afora os vizinhos, participam também dos debates canadenses, australianos e, a depender do tema da mesa, pessoas oriundas de países francófonos do sul (aguarde a questão 2).
Sem dúvida o domínio da língua francesa ou inglesa é um aspecto importante, porém, não é só isso. Parece haver uma rede de cooperação regional já consolidada. Digo regional, tanto num sentido obviamente territorial como também econômico. Percebe-se uma parceria existente entre países europeus (excluindo, de certa maneira, aqueles do leste e do sul da região), assim como entre os chamados países desenvolvidos (incluindo outros fora da abrangência da União Europeia). Não há nenhuma novidade nisso, apenas um reforço de que aquela velha ilusão que arranjos comerciais, econômicos e de interesses comuns não atingem o campo da cultura é um ledo engano.
Quem fala para eles são, portanto, eles mesmos. Há algum problema nisso? Não há certa hipocrisia nesta colocação já que nós também falamos para nós mesmos o tempo todo? Pode ser, porém, convém lembrarmos que o que discutimos, em geral, só nós ouvimos. Já o que eles discutem se tornam conceitos universais. E, se há pouca diversidade no debate, o pretenso universalismo se torna algo exclusivamente europeu, ou seja, um universalismo localizado.
2 – Quem são os países do sul?
Algo que também saltou à vista foi encontrar sempre uma mesa que tratasse da situação dos países do sul. Em geral, ouvimos palestras de artistas de países africanos ou mesmo artistas europeus que têm como objeto de seu trabalho o que se passa em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Compartilham também o espaço de fala gestores e representantes de instituições de cooperação com países africanos ou árabes localizadas na Europa. A visão que se têm dos países do sul é, portanto, também pouco diversa. Pouco se escuta sobre América Latina, Ásia ou Oceania.
Além disso, os diálogos que presenciei giravam em círculos, tratando basicamente do tema da mobilidade de artistas e da imigração. Inegavelmente são, ambos, temas relevantes. Todavia, gostaria de ouvir relatos sobre o desenvolvimento cultural desses outros países, como eles organizam sua política cultural, qual seu entendimento sobre diversidade cultural, qualquer coisa além da vinda de pessoas originárias desses países para a Europa (seja como artistas, seja como imigrantes).
Outra ausência aparente é da possível cooperação entre as tais nações “sulistas”. Os relatos são, reiteradamente, da cooperação feita pelos países do norte com os do sul. Talvez a crítica aqui não caiba exatamente aos encontros promovidos na Europa e sim aos que se organizam nos nossos países. Não caberia a nós a tarefa de articularmos e conhecermos os países do sul, mais do que nos articulamos e conhecemos nossos não vizinhos do norte?
3 – Qual a definição de expressões culturais?
Com esta pergunta começamos a nos aproximar propriamente do debate da Convenção sobre diversidade cultural[3]. Antes mesmo de pisar em solo europeu já esperava me deparar com esta dúvida acerca da definição de expressões culturais para aqueles que pesquisam ou trabalham com a Convenção.
Em conversas com pesquisadores na Bélgica e também na França, isso está muito claro e não há razão para polêmicas. São expressões culturais toda atividade, produto ou serviço que carregue um conteúdo cultural, que tenha sido criado, produzido ou distribuído profissionalmente, que possa ser comercializado nos mercados locais ou internacional e que alimente as cifras da vedete chamada economia criativa. O que não está incluído na lista, por exemplo, manifestações populares, produção artística amadora, valorização de expressões culturais identitárias, etc, não são expressões culturais e, portanto, não são objetos de atenção da Convenção de 2005.
Será que isso deve mesmo valer para todos? Para começar podemos trazer que, no Brasil, o senso comum estabelecido sobre a ideia de diversidade cultural é completamente contrário. Por conseguinte, a concepção de expressões culturais não é limitativa àquelas produzidas de maneira profissional e com potencial mercadológico. Para países africanos, pelo pouco que pude ler e perceber, as expressões culturais seriam qualquer coisa que traspassasse a barreira da censura à liberdade de expressão, comunicação, pensamento, etc. No entanto, defender uma nova concepção de expressões culturais em alguns círculos por aqui é quase uma heresia, uma confusão entre o que seja o debate em torno da diversidade cultural e do patrimônio cultural e um desvirtuamento do propósito principal da Convenção. Será?
4 – Qual o propósito principal da Convenção?
Sobre este ponto confesso que o consenso não é tão grande como inicialmente imaginava. Para os juristas, os militantes da sociedade civil e muitos pesquisadores europeus (sim, uma grande maioria) a Convenção é um instrumento que vale, sobremaneira, para frear acordos comerciais cujas Partes tenham interesses em liberalizar os mercados locais, em especial, o audiovisual, o editorial e o fonográfico. São muitos os artigos, livros e discussões que reforçam esta visão.
Entretanto, pelo que pude perceber tanto da reunião do Comitê Intergovernamental[4] como do Relatório Mundial[5] lançado com análise dos impactos da Convenção nos seus dez primeiros anos, o Secretariado da Unesco[6] deseja reforçar a importância do instrumento no âmbito das políticas culturais. Este discurso é coerente com toda a trajetória da Unesco desde os anos 1960, quando iniciaram os debates sobre políticas culturais nesta organização.
Além disso (e aqui trago uma opinião extremamente pessoal), a Unesco deve agir dessa forma estrategicamente, pois, se ela pregar que propósito principal da Convenção é a intervenção no processo de liberalização econômica no campo da cultura, ela pode, primeiro, encontrar entraves e disputas com outras agências especializadas no seio das Nações Unidas, e, segundo, ela pode dar um tiro no próprio pé já que as análises realizadas até o momento do impacto da Convenção em acordos comerciais é ínfimo em comparação ao que se pregava e desejava.
5 – Quem representa a sociedade civil nesta Convenção?
A Convenção de 2005 tem um artigo inovador (art. 11) que reforça a participação da sociedade civil. Este artigo também foi objeto das diretrizes operacionais que visam esclarecer e orientar os Estados Partes de como operacionalizar os artigos do referido instrumento. Por fim, cabe informar que na sessão do Comitê Intergovernamental realizada em 2015, os representantes da sociedade civil não só tiveram (muita) voz, como reivindicaram e tiveram aceitas suas reivindicações de que fossem apresentados relatórios de aplicação da Convenção nos países membros também pela sociedade civil, além dos relatórios das instituições governamentais. Esta medida trará mais legitimidade à participação civil e o cenário é bastante animador. Entretanto, vale a pena analisar quem está representando a sociedade civil nessas discussões.
Pelo que pude perceber até o momento participam a Federação Internacional das Coalizões pela Diversidade Cultural (que em tese estão em mais de 40 países), ONGs vinculadas à própria Unesco (como o International Music Council, por exemplo) e ONGs europeias. Todas elas são, aparentemente, organizações internacionais da sociedade civil e que reúnem, principalmente, as instâncias associativas de classe dos vários segmentos da cultura. Seus membros estão acostumados a participar de foros de debate de caráter mundial ou regional (como reuniões da Unesco, OCDE, Parlamento e Comissão Europeia, etc). A maioria deles vem acompanhando a discussão da Convenção desde sua origem e compactua da visão mainstream apresentada nas questões 3 e 4. As pessoas se conhecem e se consolidaram num círculo um tanto quanto restrito.
É fato que a participação civil não é mais ampla por barreiras econômicas (já que as discussões ocorrem geralmente no continente europeu) e informacional (conhecimento da Convenção e das idiossincrasias de seu debate). Seria possível envolver organizações nacionais da sociedade civil? Qual o potencial desta abertura na participação? Desvirtuaria o foco que se quer manter sobre a Convenção? Haveria adesão? Estas são questões prementes agora que o estatuto da participação civil é considerado crucial para a implementação Convenção pela própria Unesco.
6 – Por que atualizar a Convenção para a era digital?
Na comemoração dos dez anos da Convenção um dos principais temas tratados nos diversos eventos era sua atualização à nova era digital. Uma proposta de diretriz operacional está em trâmite e é preciso reconhecer sua relevância. Sim, quem iniciou esta discussão mais uma vez foram os países desenvolvidos, com destaque para França, Canadá e Bélgica.
Os ativistas da Convenção, principalmente os artistas e representantes de organizações associativas que têm forte atuação no mercado, já perceberam que o mercado mudou. Muitas das reivindicações que esses setores apresentavam, sobretudo de caráter regulatório e político e que a Convenção tinha obrigação de contribuir, estão se tornando cada dia mais obsoletas e insuficientes diante das mudanças. Netflix, Spotify, Youtube, entre outros serviços oferecidos por meio de plataformas digitais, mudaram os modos de produção e distribuição da cultura, tanto local como globalmente. De fato, urge debater como uma Convenção que tem por propósito estimular políticas de regulação do mercado deve ser atualizada diante desses novos desafios.
Mas, como não podia deixar de ser, é preciso identificar alguns pontos críticos sobre este novo enfoque. As discussões mais uma vez centram-se em torno de quem produz esses conteúdos, sobre os direitos de propriedade das obras (sobretudo de difusão) e sua respectiva tributação e arrecadação. Até se debate sobre as mudanças efetivas no consumo e no acesso à cultura pelo público e seus potenciais enquanto plataformas “afronteiriças”, porém, mais como um pano de fundo do que como objeto de políticas efetivas.
7 – Quem paga a conta dita as regras e o percurso do trabalho?
É evidente o protagonismo europeu no que se refere à Convenção de 2005. No Congresso das Coalizões para a Diversidade Cultural foi notável como a agenda do encontro foi definida pela França e como o investimento deste país e do Canadá é o que sustenta este movimento das Coalizões. No que se refere à atuação da própria Unesco, em particular do Secretariado, vemos também que muitos dos projetos executados têm financiamento de governos europeus. O Relatório Mundial, por exemplo, foi apoiado pela Bélgica; o site da Convenção e estudos que serão realizados sobre as questões digitais nos países hispânicos têm investimento espanhol.
Vale lembrar que todos os países membros da Convenção são convidados a contribuir de maneira voluntária e anual com o Fundo Internacional para a Diversidade Cultural, sendo este destinado exclusivamente a projetos oriundos de países em desenvolvimento. Aqueles outros investimentos citados acima, por projetos, são, digamos, extraorçamentários, ou seja, não estão incluídos na contribuição anual sugerida a todos.
Se por um lado posso sugerir como resposta à questão acima que as regras não são ditadas por quem contribui mais, pois é inegável que são realizados debates ampliados e discussões com participação de outros países, posso também inferir que tais contribuições pontuais, por projeto, delineiam os assuntos tratados, os enfoques realizados, as prioridades estabelecidas.
8 – Existem discussões paralelas e dissensos sobre o tema?
Além dos encontros promovidos por instituições oficiais que trabalham diretamente com a Convenção (a Unesco e a Federação Internacional das Coalizões pela Diversidade Cultural), fui a debates de características distintas, um no ambiente universitário e outro realizado por um observatório da diversidade cultural de uma região da periferia de Paris.
O que pude perceber desses encontros é que há um discurso paralelo sobre diversidade dentro da própria França. Não é o discurso oficial ou mesmo o referendado pelas instituições oficiais, tampouco eles parecem querer estabelecer um embate com o discurso oficial. Enquanto que nos debates oficiais a Convenção é o tema principal, sem espaço para reflexões conceituais sobre a diversidade, nesses outros encontros que participei pouco se fala sobre a Convenção, o enfoque é tratar da diversidade cultural como um conceito mais largo.
Nesses debates paralelos as questões que vêm à tona relacionadas à diversidade cultural são de caráter político e identitário. Trata-se da questão de gênero, da intolerância religiosa, da desigualdade social na produção artística consumida, etc. O público alvo dessas discussões é o cidadão da periferia, filho de ou ele mesmo sendo imigrante, excluído por uma sociedade e uma política cada vez mais xenófoba, homogeneizante e desigual. O que se reivindica é voz, é produção de discursos por e não somente para eles, é um entendimento da diversidade como um princípio, tais como a liberdade, a fraternidade e a igualdade, e como um direito.
9 – Alguém falou sobre políticas culturais?
Como pesquisadora na área das políticas culturais vir para França era como vir para a Meca das políticas culturais. Esperava que em todos os debates tivéssemos reflexões sobre a atuação do Estado no âmbito da cultura por meio do desenvolvimento de políticas públicas. Ou ainda não encontrei os lugares certos ou as coisas não são bem assim.
Salvo o que está escrito no Relatório Mundial, pouco ouvi falar de políticas culturais ou mesmo de atuação dos governos, de ministérios da cultura ou órgãos similares no que se refere à implementação da Convenção de 2005. Mesmo na reunião do Comitê Intergovernamental este discurso esteve ausente já que os membros que estavam representando os países eram diplomatas ou funcionários das comissões nacionais na Unesco e não gestores culturais.
Ainda não sei bem o que pensar sobre isso. Por um lado, penso que o enfoque declarado europeu de enxergar a Convenção como um instrumento relacionado às questões comerciais pode ter afastado deliberadamente os gestores públicos da pasta da cultura, já que o que se deseja é uma compreensão do problema por representantes parlamentares ou por gestores de ministérios que tratam de questões de indústria e comércio ou de relações internacionais. Por outro lado, pode ser que artistas, produtores e outros atores culturais estejam satisfeitos com as políticas públicas para a cultura existentes e não vejam como a Convenção pode contribuir para um avanço.
Essa é uma questão importante, especialmente para a pesquisa que por ora desenvolvo. Será ela, portanto, o início do ciclo seguinte. Encontrar as falas sobre políticas culturais no seio das discussões sobre a Convenção será meu propósito principal agora. Entretanto, as questões anteriores continuarão sobrevoando o terreno e, quem sabe, algumas delas aterrissem em outros textos.
[1] Pesquisadora de políticas culturais e da Convenção da Unesco de 2005 sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da UFBA em Cultura e Sociedade. Membro do Observatório da Diversidade Cultural.
[2] Encontros (cidade e instituição realizadora):
[3] Convenção da Unesco de 2005 sobre a proteção e a promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Neste texto, ela aparecerá simplesmente como “Convenção” ou “Convenção de 2005”.
[4] O Comitê Intergovernamental, objeto do artigo 23, é composto por representantes de 24 Estados Partes da Convenção para um mandato de quatro anos. Entre suas responsabilidades estão promover os objetivos da convenção, incentivando e monitorando a sua aplicação e elaborar recomendações para a Conferência das Partes. Entre 14 e 16 de dezembro de 2015 aconteceu a 9ª Sessão Ordinária do Comitê Intergovernamental. Neste texto ele aparecerá simplesmente como “Comitê Intergovernamental”.
[5] Foi lançado no dia 16 de dezembro de 2015, durante a nona sessão do Comitê Intergovernamental da Convenção de 2005, o relatório mundial “Re | formulando políticas culturais”. Este é o primeiro relatório que trata da implementação da Convenção da Unesco sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais. Neste texto, ele aparecerá simplesmente como “Relatório Mundial”.
[6] O Secretariado da Unesco, objeto do artigo 24 da Convenção, é responsável por acompanhar administrativamente os trabalhos relativos à Convenção, sobretudo no que se refere à Conferência das Partes, Comitê Intergovernamental e Fundo Internacional para a Diversidade Cultural.
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Obrigada por compartilhar suas observações e impressões. São reveladoras!
Parabéns, Giuliana.
Jocastra
Obrigada Ronildo!
Fico feliz que o artigo tenha contribuído!
Excelente artigo, parabéns para a autora.
Obrigado pela contribuição.
Ronildo Assis
Produtor Cultural