Arquivo Pessoal / Rafael Moreira

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O fim do Ministério da Cultura – Entrevista com Rafael Moreira

O Ministério da Cultura (MinC) foi criado em 1985 durante o processo de redemocratização do país, e sempre padeceu com baixo orçamento e limitações em suas políticas públicas. No dia 1º de janeiro de 2019  sofreu outra ameaça: uma nova medida o extinguiu. Rebaixado a Secretaria Especial da Cultura, a instituição já teve a sua frente 6 secretários e suas ações são cada vez mais desastrosas.

Diante desse cenário, o cientista político Rafael Moreira, em parceria com o jornalista Lincoln Spada, realizou entre 2020 e 2021 uma série de entrevistas com trabalhadores e pesquisadores da área da cultura, homens e mulheres, de diferentes setores e partes do país, para compor uma rica pesquisa sobre a extinção do Ministério da Cultura (MinC). O trabalho resultou no livro “O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as Políticas Culturais na era Pós-MinC”, recentemente publicado pela editora Imaginário Coletivo.

O prof. José Márcio Barros, coordenador do ODC, entrevistou Rafael Moreira para saber mais sobre o trajeto da pesquisa e também sobre o processo de desmonte das políticas públicas de cultura em nosso país.

Rafael Moreira é Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Bacharel em Ciências Sociais pela mesma Universidade, realizando parte dos estudos na Universidad Autónoma de Barcelona – UAB. Licenciado em Ciências Sociais pela Faculdade de Educação da USP. É pesquisador associado do NUPPs, o Núcleo de pesquisa de Políticas públicas da USP, e do CEBRAP, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É comentarista de política dos veículos de comunicação da Baixada Santista, onde reside atualmente.

O livro pode ser adquirido por meio das redes sociais: Instagram e Facebook @rafaelpolitica ou por e-mail: rafaeldardaqueusa@hotmail.com

Qual ou quais os objetivos centrais da pesquisa que deu origem à obra? Por que optaram pelo formato entrevista e quais os critérios para escolha dos/das entrevistados/entrevistadas?

A primeira ideia ao começar a elaborar a pesquisa foi refletir sobre os impactos da extinção do Ministério da Cultura e levar isso de uma maneira mais didática e acessível para um público mais amplo. Tivemos a preocupação de não ter uma escrita muito acadêmica, elaborar uma obra acessível para que todos compreendessem que a extinção de um ministério vai muito além da estrutura física daquele ministério propriamente dito e da mudança do rearranjo de cargos. Ela impacta a representatividade do setor, impacta as políticas públicas que são tocadas por aquele ministério. Ao longo da pesquisa veio a pandemia de Covid-19 e acabamos incorporando esse assunto, abordando-a nas entrevistas  e também na parte textual, pois, para além da ideia de refletir sobre a extinção do MinC nossa ideia foi também dar representatividade para os diferentes segmentos que foram impactados por essa extinção. Procuramos realizar isso por meio de representatividade social, portanto, metade dos entrevistados são mulheres, metade são homens, metade são autodeclaradas pretas ou pardas e a outra metade branca, para que tivéssemos desde o princípio uma paridade racial e de gênero para que pudéssemos abarcar o máximo de seguimentos possíveis, mesmo dentro das limitações que tivemos, devido ao contexto da pandemia. As ferramentas tecnológicas de comunicação permitiram que entrevistássemos muitas pessoas que estavam em diferentes regiões do país, como a Mestra Joana, na periferia de Recife, o Juca Ferreira, que salvo engano, estava em Brasília, a Antônia que estava em uma comunidade no litoral sul paulista.

A obra foi financiada por edital de um programa da SMC/PMS de 2019. Como você avalia a importância das políticas públicas de cultura dos municípios e estados brasileiros neste contexto de desmonte e asfixia no nível federal?

As políticas públicas de cultura de municípios e estados, no contexto atual que a gente vive, são fundamentais.  Sem elas, por exemplo, não teríamos conseguido escrever essa obra que analisa toda essa catástrofe que estamos vendo em nível federal. E para além disso, o impacto que a pandemia trouxe (para além da extinção, que é anterior à pandemia), boa parte dos segmentos culturais foram os primeiros impactados. Boa parte das pessoas que lidam com cultura necessitam de um público presente. Então, todo mundo teve que se desdobrar, rever a forma que atuava no seu segmento e, de certa forma, as políticas públicas que já existiam nos municípios e nos estados, permitiram que alguma coisa continuasse, permitiram o mínimo de renda para quem é trabalhador da cultura nesse momento de completa catástrofe sanitária por conta da pandemia.

Como você compara as ações de extinção e desmonte das políticas públicas de cultura nos três momentos destacados no livro: Governo Collor, Governo Temer e a agora no Governo Bolsonaro?

Foram momentos bem diferentes da história do Brasil. No Governo Collor vivíamos um momento de primeiro avanço neoliberal tanto no Brasil quanto na América Latina, e o Collor dá eco a esse tipo de agenda promovendo o enxugamento de ministérios. Ele vem com a imagem do novo, do jovem etc., após derrotar o Lula no segundo turno de 1989 e tenta avançar nesse sentido, promovendo o “enxugamento da máquina pública”. Era também um momento de transição democrática. Ele foi o primeiro presidente eleito de maneira direta, então, por mais que tenha sido catastrófico seu governo, sua eleição consolida a nossa transição democrática. Como disse, a questão era que naquele momento a onda neoliberal estava chegando na América Latina e ele representava essa agenda e levou adiante o enxugamento da máquina pública. Já no Governo Temer temos a conjuntura de golpe parlamentar contra a Dilma em 2016 e, por um lado, acho que tem também essa agenda neoliberal (a ver o documento Ponte para o Futuro), e por outra lado, já havia uma expectativa de que o movimento cultural faria forte oposição, tanto ao governo dele quanto ao golpe. Portanto, acredito que a tentativa dele de extinguir o Ministério da Cultura tem a ver com esses dois fatores: a agenda neoliberal e a tentativa de asfixiar o movimento cultural, que faria uma forte oposição (e fez) no governo dele. Porém, ele não teve força. Teve um caldo de cultura naquele momento, uma intensa mobilização e articulação nacional que não permitiram que isso fosse levado adiante. Agora, no Governo Bolsonaro essa articulação já não estava mais tão forte, até por conta dos efeitos do Governo Temer. No Governo Bolsonaro ele consegue levar adiante, até por conta do apoio popular que ele teve – e vale lembrar infelizmente que ele teve respaldo popular para levar essa agenda dele adiante -, um ataque a uma série de segmentos: ciência, educação, as pautas representativas que estão ligadas às minorias sociológicas e a pauta cultural. No começo do livro colocamos que a agenda dele é muito mais uma agenda anticultural, de completa destruição, de extinção das políticas públicas que foram sendo construídas ao longo de décadas. Portanto, é uma conjuntura já bem diferente daquilo que aconteceu no Governo Collor e no Governo Temer, quando os dois tentaram extinguir o Ministério da Cultura e não conseguiram. No Governo Collor acontece o impeachment, voltam atrás com a medida e o Ministério da Cultura é recriado, e no Governo Temer a medida dura de 2 a 3 semanas e, por conta da pressão do movimento cultural, ele tem que voltar atrás e o ministério é recriado também. No Governo Bolsonaro, infelizmente, os artistas, os trabalhadores da cultura, não tiveram força suficiente.

Censura, desmonte institucional e asfixia orçamentária, essas podem ser consideradas as três principais estratégias do atual governo federal para a cultura? Qual produz efeitos mais nefastos?

Como colocado na pergunta, censura, desmonte institucional e asfixia orçamentária são de fato as grandes marcas desse governo em se tratando da nossa Cultura. É uma censura que é promovida tanto a partir do âmbito institucional, quanto a partir da base de apoio que o governo tem, por meio de movimentos sociais organizados ou não. O desmonte institucional que passa tanto pela extinção do Ministério da Cultura propriamente dita quanto pela nomeação de pessoas para algumas secretarias ou órgãos subordinados à Secretaria de Cultura que são completamente incapazes de exercerem os cargos que ocupam, colocadas ali de forma intencional, pois sabe-se da incompetência delas, inclusive. E, por fim, a asfixia orçamentária que é um processo que já vem de algum tempo. O Ministério da Cultura sempre contou com uma parcela pequena do orçamento e, ainda assim, conseguia levar adiante políticas públicas de grande impacto para o nosso país. Mas, com a redução do orçamento para essa pasta, o impacto é ainda maior. Fica difícil dizer qual dessas três estratégias produz efeitos mais nefastos, pois impactam tanto na produção cultural do nosso país, que é extremamente rica, criativa, quanto nas próprias condições de vida de quem depende desse segmento. Muitas vezes a pessoa que vive diretamente da nossa Cultura acaba tendo até que mudar de área, trabalhar com qualquer outra coisa que não seja cultura, simplesmente para pagar as contas e fazer três refeições no dia.

É comum ouvirmos que a cultura no Brasil já estava em crise mesmo antes da pandemia de Covid-19, você concorda com essa fala recorrente?

Eu concordo. Como apontei, a pasta de cultura sempre contou com um orçamento bastante pequena em relação a outras pastas. É importante destacar que a partir do ajuste fiscal, ainda no Governo Dilma, em 2015, assim que ela toma posse no segundo mandato, a pasta de cultura é fortemente impactada. Já começa ali um processo de desprestígio da pasta da cultura. Isso se aprofunda no Governo Temer e o Governo Bolsonaro coloca a “pá de cal”. O Governo Bolsonaro seria o fundo do poço desse processo de desmonte das políticas públicas para a cultura em nosso país.

Nas entrevistas, especialmente aqueles e aquelas que são da sociedade civil, a crítica à ‘despolítica’ federal de cultura é acompanhada também de críticas às esferas estaduais e municipais, como você analisa isso?

A partir do momento que há a extinção do Ministério da Cultura isso gera um efeito cascata nos estados e municípios. Aqueles estados que contam com orçamento menor, ou estão mais distantes dos maiores polos econômicos do país, acabam sendo muito mais afetados. Então, quando se extingue o Ministério da Cultura, de certa forma, legitima-se que estados e municípios sigam o mesmo caminho, extinguindo secretarias ou, às vezes, fundindo pastas. Isso passa o recado para as outras esferas de poder que a cultura naquele momento passa a ser menos importante que outras áreas das políticas públicas. Como disse, o impacto acaba sendo maior quando se está longe dos polos econômicos do país. Se o estado tem um empresariado forte e de certa forma até investe em cultura (por ter isenção fiscal ou outro interesse de promover a cultura no país), o impacto acaba sendo um pouco menos sentido, segundo alguns dos entrevistados. E foi isso o que percebemos também ao olharmos os dados da pesquisa. Agora, quando se está em um estado que já conta com baixo orçamento, fica mais complicado. Não há empresariado para preencher esse espaço ou mesmo a sociedade civil. Às vezes até conta-se com o apoio da sociedade civil, mas muitas vezes de maneira pontual, mais para remediar um momento de aperto que o setor passa durante a pandemia, por exemplo. Não é algo a longo prazo, que permita que os trabalhadores consigam se manter sem ter que mudar de área. Essa asfixia acaba levando muita gente que produziria uma cultura muita rica para o nosso país, que acredito ter uma criatividade espetacular, a desistir, pois se sente cada vez mais desestimulada a levar adiante sua arte porque simplesmente não consegue mais pagar as contas e acaba tendo que correr para informalidade. Talvez um dos aspectos mais tristes do momento que a gente vive em relação ao segmento cultural é inibir a produção criativa do país. A ditatura foi uma catástrofe, mas muitos artistas encontraram maneiras de contornar a censura, publicar livros de maneira clandestina, etc. No momento atual, com desigualdades crescentes, extrema pobreza aumentando, e ainda uma crise sanitária como a pandemia, ficou muito mais difícil para quem vive do segmento cultural conseguir se manter nesse setor e não ter que migrar para qualquer outra área.

Análises sobre a criação do MINC em 1985 apontam que desde sua origem a instituição padece de fragilidade política, orçamentária e institucional. Alguns chegavam a ser contra, no sentido de que seria melhor uma secretaria de cultura forte no âmbito do MEC do que um ministério fraco. Como você analisa essa questão?

Como expus anteriormente, o Ministério da Cultura sempre viveu uma fragilidade orçamentária. Mas, sinceramente, sou contra posições que defendem que ele fosse incorporado a outra pasta, atuasse como uma subsecretaria, ou algo do tipo.  Acredito que quando a instituição é colocada com status de ministério, como uma pasta ministerial, isso dá muito mais prestígio a ela, e aquelas pessoas que são ligadas a aquele segmento se sentem muito mais representadas. Sobretudo em uma conjuntura em que você nomeia alguém que é representativo para o setor. Falo, por exemplo, do Gilberto Gil, que talvez tenha sido o auge do Ministério da Cultura no nosso país. No momento dele havia um ministério que contava com um orçamento pequeno mas que tocava uma série de políticas públicas inovadoras. Foi uma mudança de paradigmas nas políticas públicas daquele setor e, ao mesmo tempo, havia alguém que tinha representatividade dentro do setor. Um artista, seja ele popular ou de uma cultura erudita, olhava para quem estava tocando a política do ministério e se sentia representado. O que não acontece quando se tem uma secretaria subordinada a outro ministério, pois acaba-se rebaixando o status que ela tem perante aquele determinado segmento. Entendo quando as pessoas colocam que acham mais interessante ter uma secretaria que tenha “poder de fogo” de fato, mas, prefiro sempre lutar em última instância para que tenhamos um ministério e lá na frente ele seja forte e tenha algum respaldo orçamentário para levar adiante políticas públicas que são importantíssimas para o setor.

A Lei Aldir Blanc (LAB) e seus desdobramentos, conseguiram reconstruir um contexto de participação e ampliação do debate político sobre a cultura? O que esperar do futuro para as políticas públicas de cultura no Brasil?

Acho que a Lei Aldir Blanc conseguiu reconstruir um contexto de participação e ampliação do debate público que a gente tem nosso país em torno da cultura. Mas, devemos destacar que isso se deu em uma conjuntura de excepcionalidade, que é a pandemia. Eu fico imaginando a diferença enorme que teria se fomentássemos um debate público sobre alguma política pública voltada para o segmento cultural em uma condição de normalidade democrática e sanitária. A LAB surge para remediar a situação dos trabalhadores da cultura em um contexto de completa emergência e caos, tanto econômico quanto sanitário. Eu gostaria muito mais que esse tipo de debate fosse fomentado e surgisse em uma conjuntura de normalidade democrática, onde a participação do segmento cultural pudesse ser ainda maior, uma vez que todos estavam muito reclusos em casa, e a questão do uso de redes sociais, internet ou outros meios de comunicação para participar desse debate, de certa forma, ainda exclui parte considerável dos trabalhadores da cultura. Temos que lembra que quando falamos de segmento cultural, falamos de um público bem heterogêneo, que vai desde artistas de elite, que tem uma audiência enorme, consolidada, até a cultura produzida nas periferias ou nas esquinas das cidades, por pessoas que não têm acesso ao debate ou a meios de divulgação de sua produção cultural. A LAB, sim, reconstruiu um pouco esse contexto de participação, mas em uma conjuntura de excepcionalidade e, muito por conta dela, ainda deixando à parte desse processo uma parcela considerável das pessoas que dependem e produzem cultura no nosso país. Agora, o que esperar do futuro para as políticas públicas de cultura no Brasil é a pergunta que todos nós temos feito. Qualquer pessoa que assumir o cargo de presidente da república depois desse governo assume em uma condição de completa “terra arrasada” e vai ter que partir do zero. Desde a elaboração de políticas públicas para o setor, para remediar aqueles que ainda estão sendo impactados pela pandemia até o preenchimento de quadros funcionais dentro do Estado brasileiro por parte de pessoas que sejam de fato preparadas para ocupar os cargos. Temos quadros muito bons dento do meio acadêmico e dentro do segmento cultural para ocupar esses cargos, e que tenho certeza que fariam um trabalho muito melhor do que qualquer pessoa que ocupa, tanto a Secretaria de Cultura atualmente, que tem a sua frente agora uma pessoa que é completamente incapaz de compreender o tamanho que é a cultura para um país como o nosso, assim como nos órgãos que são subordinados à Secretaria, desde uma Fundação Palmares até IPHAN, IBRAM, todos os órgãos que, inclusive, citamos no livro, e que também estão passando por esse processo de desmonte e destruição durante esse governo.

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