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Mulheres indígenas e bandeira LGBTQIAP+: resistência que reflete liderança e ativismo

Envolvidas em movimentos LGBTQIAP+, mulheres indígenas desenvolvem importantes ações que contemplam a realidade das comunidades

Por Júlia Bahia Tavares

Reprodução: Revista Íris [1]

Imagem de capa: Ilustração de Yacunã Tuxá

Yakecan Potyguara. Foto: Reprodução

O preconceito e a intolerância aos indígenas LGBTQIAP+ não é novidade: a primeira vítima registrada na historiografia do Brasil colonial foi o Tibira, indígena Tupinambá assassinado em 1614 em São Luís, no Maranhão. Para adentrar ainda mais, as mulheres indígenas LGBTs sofrem tripla opressão, pensada à luz da interseccionalidade, ferramenta imprescindível para essa realidade. Entre- tanto, essas opressões são um problema mas também um motor para o ativismo e resistência dessas mulheres.

O ritmo e lógica indígena é outro, sentido e vivido em um desdobramento diferente dos não-indígenas. Há beleza e sensibilidade nesse movimento. Isso já sabemos – ou deveríamos saber. Através de relatos sinceros e potentes, Jéssica Yakecan, mulher indígena sapatão da etnia Potyguara, contou à reportagem sobre a sua experiência como mulher indígena LGBT.

Yakecan vive em Crateús, no Ceará, moradora do bairro periférico São José fundado em meados de 2005 por sua família Potyguara. Sua mãe desempenhava um papel importante na comunidade durante o seu crescimento. “Quando eu era curuminha, minha mãe ficou com o local para construir as casas dos parentes e uma rua ficou responsável. Ela usava muito o ativismo dela lutando, e todo sábado ela fazia sopa para dar para as crianças, que tinham muitos parentes passando necessidade”, comenta.

Além da referência materna, Jéssica relatou sobre a importância indígena e espiritual que seu pai representa para ela. “O meu pai, com a força espiritual dele me ensina muitas coisas, me ensina segredos porque ele é o pajé, tem as curas dele, aprendi a tocar atabaque. Nós moramos no terreiro de umbanda, eu nasci dentro do terreiro e fui aprendendo toda essa força espiritual dele, ele me ensina muitas coisas”, diz ela.

Destinado a fortalecer a pauta indígena LGBT+, o Coletivo Tibira foi co-criado por Jéssica em parceria com Katu Mirim, Neimar Kiga, Priscila Tayna, Yacunã Tuxá, Erisvan Guajajara, Tanaíra Sobrinho e Danilo Tupinaky’îa. A mídia social é a primeira idealizada por indígenas LGBT+, espaço para trocas de experiência, informações, fortalecimento e protagonismos, como símbolo de resistência. O Instagram (@indigenaslgbtq) contabiliza 21.400 seguidores até a presente data de escrita da reportagem, e publica informações sobre indígenas LGBT+, além de promover a divulgação de trabalhos e ações feitas por eles e também por indígenas de outros povos originários.

Ao longo de uma vida marcada por ativismo – que incluiu muita luta, um detalhe chamava a atenção naquelas falas: sua emoção e motivação ao contar sua própria história. Quando Yakecan relata o momento em que se entendeu mulher indígena sapatão, detalha a dificuldade de aceitação dentro do seu próprio povo, mas também como esse acontecimento abriu portas para conhecer e se identificar com outros parentes LGBT. A partir disso, criou o Coletivo Caboclas com seu amigo Thiago Potyguara-Guarany, projeto que busca dar visibilidade para indígenas LGBT do estado do Ceará (também no Instagram @indigenaslgbt_crateus).

Participou do webdocumentário Perudá, Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” do curso de Jornalismo. O projeto relatou sua história e de outros dois indígenas de etnias distintas, contando dos desafios em comum a partir de diferentes ângulos.

Para além da ótica do ativismo político, Jéssica faz curso Tupi para o resgate da língua mãe, curso que está sendo introduzido para 60 alunos dentro das escolas indígenas do Ceará, que hoje totalizam 46. “Estamos conseguindo trazer a língua materna que foi tirada pelos portugueses, mas muitos parentes resistiram. Estamos estudando e tendo professores de fora (da Amazônia, são indígenas formados em língua indígena). Estamos aprendendo muitas palavras para estar passando para os nossos curumins”, relata.

Através dos ensinamentos do seu pai, hoje é a única mulher Yakecan em sua cidade batizada e cruzada para bater nos tambores dos terreiros. “Me apaixonei, fiz cursos de percussionista e dou oficina de percussão e batuque. Dou aula para os curumins na escola indígena de percussão. Sou muito apaixonada pela percussão, por tabaca, agodô, tambor”. Seus comentários sobre o universo da percussão e da umbanda são de entrega e entusiasmo, demonstrando na prática como acontece a passagem de tradições dos povos originários.

“A gente tem a MIC (Articulação das mulheres indígenas do Ceará), onde temos as conversas e sempre estou colocando as questões das mulheres que são LGBT+. Vemos que teve um caso de uma mulher trans indígena que morreu e não foi falado, e não foi falado porquê, porque era uma mulher trans indígena. Então existem essas dificuldades ainda para nós que somos mulheres lésbicas, bi, trans, pansexual. Mas estamos aí para fortalecer, estamos aí porque a Jurema nunca abandona nós mulheres”, comenta.

A importância da resistência indígena é incontestável. Uma realidade cheia de variantes, sentimentos e dificuldades, é irreal não dizer sobre as camadas que tecem essa rede, principalmente no universo LGBT+. Leonaria Tupinambá, mulher indígena cis e pansexual, é também de Crateús no Ceará. Em uma realidade de resistência para sobreviver, sua família viveu um massacre na aldeia em que seu avô vivia na Amazônia, o que sempre provocou suas reflexões identitárias.

Ao se identificar como mulher indígena pansexual, ela relata a importância de resistir. “A minha vontade de exercer o protagonismo nessas questões das mulheres indígenas sempre existiu porque é quem eu sou, é a minha realidade, eu estou no meu lugar de fala para poder lutar por isso, e pelo menos no meio do meu povo a gente sempre fala sobre até porque a maioria são mulheres, então é um assunto que a gente sempre aborda”, relata Leonaria.

“Então existem essas dificuldades ainda para nós que somos mulheres lésbicas, bi, trans, panssexual. Mas estamos aí para fortalecer, estamos aí porque a Jurema nunca abandona nós mulheres.” diz Jéssica Yakecan

Leonária. Foto: Reprodução

Descendo para a região pernambucana do Nordeste brasileiro, está Yacunã Tuxá, mulher indígena e lésbica, pertencente da etnia Tuxá que se situa no limite do município de Inajá. Vive hoje em Salvador, Bahia, e seu povo tem ocupação territorial no município de Rodelas, também na Bahia. Por meio de relatos feitos por áudios no WhatsApp, a história do seu povo pode ser considerada uma das mais fortes já escutada. A aldeia tradicional estava situada na Ilha da Viúva, e foi atingida por barragens no final da década de 80. Barragem construída pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), as águas inundaram a cidade de Rodelas, deslocando 40 mil pessoas e 200 famílias Tuxá.

Transgredindo o até então direito garantido ao território pela Constituição, a comunidade foi remanejada para uma região muito menor do que o seu território tradicional, em um processo velado que dizia que em 6 meses teriam a terra de volta. Continuam, até hoje, sem o seu território demarcado. O acordo firmado entre a Chesf e a comunidade era de indenização e demarcação da terra. “Foi um processo super perverso para o meu povo porque não houve consentimento, foi tudo feito de maneira criminosa, e nós não tínhamos muita noção do que estava acontecendo, do que que eles podiam fazer ou não”, conta Yacunã.

Dentre as principais consequências da expropriação, estão as condições exponencialmente inferiores às que viviam em seu território tradicional. Dependiam do rio São Francisco para sobrevivência, fundamental para o desenvolvimento da agricultura e pesca para subsistência, além do apoio para rituais e etc. Após o rompimento da barragem, o rio São Francisco também não permanece o mesmo.

Em função desses impactos, o povo Tuxá teve que encontrar outras formas de resistência, e deve-se destacar o incentivo à educação. “O povo Tuxá se tornou um povo muito escolarizado, inclusive que se destaca aqui entre os povos indígenas da Bahia, inclusive do Brasil por ser um povo que sempre busca um ensino superior”, diz ela. As mulheres indígenas da comunidade perceberam a educação como uma potência para disseminar o conhecimento dos povos originários, principalmente do que tinham em seu antigo território.

Yakecan Potyguara. Foto: Reprodução

Sempre muito atuante em seu povo, desde os 15 anos organiza um grupo jovem dentro da comunidade, chamado Tatuxá Maracá. “Foi um grupo muito importante na história do povo Tuxá, a história mais recente, porque passou a articular os jovens para eles terem um contato mais direto com nossa cultura, de perpetuar, da pintura, da dança, do canto, da produção mesmo, a gente mantinha um blog na internet que a gente postava poesias, textos, fotos das atividades que aconteciam na comunidade”, comenta. Além disso, sempre viajou junto com as lideranças do seu povo e esteve a frente na luta pelo território.

Inspirando-se pelo ritmo educacional crescente do seu povo, Yacunã saiu da comunidade para estudar em Salvador, na Bahia. Estudante de Letras na Universidade Federal da Bahia (Ufba), vê o estudo como uma ferramenta. “No momento tenho seguido essa jornada, de entender a importância da gente ter e buscar fora instrumentos que sejam diferenciais na nossa resistência”.

Durante o processo de mudança e vivência fora do seu território, ela começou a trabalhar como ilustradora, e hoje desenvolve trabalhos de artes visuais que tem como propósito enquanto artista mudar a imagem que a sociedade tem dos povos originários. Comenta que retrata sempre mulheres em seu trabalho, como forma de lidar com a memória da origem indígena, falando das mulheres que foram silenciadas, violadas e escravizadas sexualmente como forma de desconstruir o apagamento da ancestralidade indígena. É urgente falarmos sobre a história do Brasil e sua colonização.

“Hoje eu observo a importância desse lugar, quando eu vejo outras jovens da minha comunidade que mandam mensagem, que repostam coisas minhas no Instagram, a importância da mídia também que alcança muita gente, de poder estar na Universidade e construindo propostas, a gente tem o papel de abrir caminhos né”, relata.

A perspectiva da figura do colonizador deve ser relacionada à objetificação e fetichização dos corpos. Como mulher indígena lésbica, Yacunã enfatiza o desrespeito que vem somado ao racismo e violência de gênero. “Pensar a minha existência como mulher indígena não heterossexual é um pouco disso, de entender que esse sistema por mais forte que seja ele falhou. Porque a gente continua forte diante dessas subjetividades.” Tampouco sente de modo que pudesse agir de outra maneira, lutar por direitos e espaços é uma força atrelada aos seus ancestrais e que origina-se naturalmente em si mesma, sendo uma estímulo que a faz seguir.

“Pensar a minha existência como mulher indígena não heterossexual é um pouco disso, de entender que esse sistema por mais forte que seja ele falhou. Porque a gente continua forte diante dessas subjetividades.” diz Yacunã

Identidade Two-Spirit indígena e luta anticolonial

Retornando aos desdobramentos da colonização, que se desenvolveu em um apagamento da subjetividade indígena, a identidade two-spirit (dois-espíritos) reflete as transitoriedades de gênero que se opõe ao binarismo feminino e masculino. O termo surgiu em 1990 na conferência “Indigenous Lesbian and Gay International Gathering”, em Winnipeg, no Canadá. Organizações homossexuais indígenas o adotaram para recuperar o papel “tradicionalmente sagrado” dos two-spirit em suas culturas.

Termo esse que representa a existência interior de uma união do espírito do homem e da mulher para os indígenas, é também uma forma de resistência às condições ocidentais de classificação (binarismo), de acordo com o artigo “Ser índio e ser gay: tecendo uma tese sobre homossexualidade indígena no Brasil”, do antropólogo Estevão Fernandes. A postura anticolonial deve ser pensada em relação aos movimentos indígenas homossexuais, que não se restringem apenas em demandas de gênero, mas também relacionada a essas construções sociais.

A relação entre a colonização dos povos indígenas nos Estados Unidos e Brasil não é completamente divergente. Enquadramentos que perpassam deslocamentos forçados, imposição de uma educação que se baseia no binarismo sexual e padrões civilizatórios, o que essas análises refletem sobre a colonização, diáspora e poder é a constante relação com a construção da sexualidade indígena hegemônica. Assim, não podem ser compreendidos separados dessa construção hetero compulsória, como por exemplo a homossexualidade indígena relacionada à uma “perda da cultura”.

As críticas two-spirit, então, demonstram os desencadeamentos das dinâmicas coloniais ainda em andamento, como por exemplo políticas que norteiam o casamento entre indígenas (exigência por ser entre homem e mulher), a escolarização, o trabalho, etc. que os colocam nesse padrão heteronormativo. Assim, os indígenas two-spirit dos Estados Unidos e Canadá se aproximam da teoria queer em relação à fluidez de gênero e representam as lutas diversas vividas pelos indígenas LGBTQIAP+ ao incorporarem os rituais e ensinamentos dos povos tradicionais.

[1] A Revista Íris é um produto do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro de Pesquisa em Comunicação | CEPEC Faculdade de Comunicação e Artes, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. A edição foi lançada em novembro de 2020, sob orientação do Prof. José Márcio Barros. A versão integral pode ser acessada em https://issuu.com/irisrevista/docs/irisrevista01

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