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Arte, negritude e feminismo – Entrevista com Elisa de Sena

A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o 21 de março como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. A data foi estabelecida em memória à tragédia ocorrida em Sharpeville (África do Sul), quando 20 mil negros que protestavam contra uma lei que limitava os lugares por onde eles podiam circular foram atingidos por tropas do exército. O ataque resultou em 69 pessoas mortas e 186 feridas.

Para marcar a data, o coordenador do ODC, Prof. José Márcio Barros, entrevistou Elisa de Sena. Artista da música e das artes cênicas atuante desde 1999, Elisa também é bacharel licenciada em História e pós-graduada em Produção e Critica Cultural.

Cantora, compositora e percussionista, integra o Grupo Tambor Mineiro, é uma das integrantes fundadoras do Coletivo Negras Autoras e do Coletivo Lugar de Mulher. Com um trabalho artístico fortemente ligado a negritude e ao feminismo, Elisa usa sua arte, voz e corpo para abordar ancestralidade, liberdade, direito de ser e ocupar e tantas outras temáticas que surgem de forma natural na sua obra. Seu trabalho musical é enraizado na percussão afro-brasileira, em especial nos tambores de Minas Gerais, mesclados com as possibilidades que o universo da música eletrônica oferece na contemporaneidade. Suavidade e força marcam a sonoridade dessa mulher negra que não separa o seu lugar de fala do seu fazer artístico.

Ao final da entrevista disponibilizamos os links para ver, ouvir e acompanhar Elisa de Sena.

A data de 21 de março foi escolhida pela ONU como o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial em função de um massacre da polícia de Sharpeville, na África do Sul, ocorrido em 1960, onde 69 pessoas negras que participavam de uma manifestação pacífica contra o regime apartheid de segregação racial. Passados 62 anos do ocorrido, a violência motivada por razões raciais continua. Como você, enquanto historiadora, artista, mulher, negra, analisa essa questão?

Eu sempre gosto de pensar que datas como essa nos trazem dois pontos importantes. O primeiro, e mais sabido deles, é o marco histórico que faz manter viva a memória da luta daqueles que vieram antes de nós e que passaram por situações que não deveríamos mais vivenciar atualmente. O segundo, é o uso destas datas para colocar pautas tão importantes na luta diária no foco da discussão em dias específicos. E aqui falo da mídia, imprensa, redes sociais e diálogos diversos que acontecem quando as pessoas se dão conta dos motivos pelos quais estas datas foram estabelecidas.

Se ainda hoje a população negra vivencia violência policial explicita, levando a morte muitos de nós, é prova de que ainda há um longo caminho para se percorrer na luta pela eliminação da discriminação racial, e que demarcar datas como essa é o mínimo que o poder público deve fazer. Sempre tendo em vista que ações em prol da eliminação da discriminação racial devem ser feitas diariamente nos mais diversos âmbitos políticos e sociais. Dia 21 de marco é mais um dia para olharmos para o que já foi feito e para o que ainda precisa ser feito. Além de honrarmos a memória daqueles que tiveram suas vidas perdidas no massacre.

Para a mulher negra, a luta por direitos e respeito parece ser em dobro, pois além da discriminação racial há a luta pela igualdade de gênero. Como você encara tais desafios?

Quando olharmos para a sociedade como uma pirâmide social vemos no topo dessa pirâmide os homens brancos, abaixo deles as mulheres brancas, abaixo delas os homens negros e, por fim, na base da pirâmide, as mulheres negras. Ser mulher negra nessa sociedade é ser duplamente estigmatizada, tendo que lidar com preconceitos de gênero e de raça. E aqui falo como mulher cis, que tem consciência que para uma mulher trans negras os desafios são ainda muito maiores.

Quando olhamos a história do feminismo vemos que as mulheres estavam lutando por direitos bastante importantes para o gênero, mas ao mesmo tempo não consideravam pessoas negras como seres humanos. Enquanto as brancas iam para as ruas reivindicar seu direito ao trabalho, por exemplo, as negras estavam na casa cuidando dos filhos de muitas dessas mesmas brancas. Antes ainda da primeira onda do feminismo podemos lembrar da Franca iluminista lutando pelos direitos humanos, mas naquele momento considerando como humanos apenas os homens, brancos, europeus.

Tendo em vista toda essa realidade, acredito que é preciso sim interseccionar as lutas para entenderemos verdadeiramente quais são esses direitos que cada grupo necessita e assim trabalharmos para uma equalização de direitos tendo como base o respeito pela diversidade.

Em sua trajetória artística, como a discriminação racial te afetou e às outras mulheres negras com quem trabalha? Como a busca pela ancestralidade se relaciona com essas questões?

Durante minha vida venho entendendo que a discriminação racial, não me define, mas com certeza me afeta com mulher, como profissional, como artista e em qualquer área em que eu coloque meu olhar. Sabemos que os efeitos da discriminação racial são extremamente nocivos chegando a serem fatais em muitos casos. Ao mesmo tempo, se nos atentarmos para o protagonismo da luta contra a discriminação, vemos aí nossa ancestralidade gritando forte. E é assim que eu e muitas das que trabalham comigo escolhemos seguir. Usando da nossa negritude, do nosso feminino e da nossa ancestralidade como combustível para seguirmos mais fortes e motivadas para continuar a luta que nossa ancestralidade iniciou contra a discriminação racial.

Como você busca reivindicar a representatividade e o protagonismo da mulher negra por meio do seu trabalho artístico? Como a arte pode ajudar na superação da discriminação racial?

Acredito que muitas vezes a arte tem um poder de sensibilização que vai além das nossas outras ações cotidianas. A música consegue chegar em lugares que a fala não chega. A poesia pode alcançar corações que a prosa nem sempre alcança. Dessa forma, eu uso do meu trabalho artístico como um instrumento de transformação e cura. Não vejo como separar o meu lugar de fala como mulher, negra, mãe, de origem periférica, do que construo artisticamente. Tudo que crio é atravessado por quem eu sou. Mas isso não deve me restringir, porque ser uma mulher negra vai muito além do que alguns estereótipos que foram construídos até aqui. Reivindicar a representatividade e protagonismo na mulher negra por meio do meu trabalho artístico é também contribuir para quebra de estereótipos criados pelo racismo que tendem a nos restringir enquanto seres humanos que somos. É um exercício de equilíbrio que busca relembrar nossos direitos básicos como mulheres negras, sem perder de vista nossas subjetividades.

No campo artístico, a imagem da mulher é muito atrelada a sexualização de seu corpo. No caso da mulher negra, ainda há estereótipo da “mulata”. Sendo mulher, preta e artista, como você avalia o tratamento dirigido à mulher?

Eu avalio com “homens, melhorem”!
É sobre isso. Nós mulheres, mulheres negras ainda mais, estamos cansadas dessa luta histórica. São tantas as demandas diárias que temos que resolver que, restringir nossa expressão artística em função da hiper sexualização dos nossos corpos não deveria ser uma opção. Ao mesmo tempo que ter que usar a superexposição dos nossos corpos para alcançar certos lugares de visibilidade e retorno financeiro, também não deveria ser uma opção.

O que quero dizer é que existe uma armadilha social que faz com que os corpos femininos ainda não sejam livres. O sistema patriarcal tem diversas maneiras de controlar os corpos femininos, tanto restringindo sua expressão (seja ela artística ou pessoal) quanto abusando desses corpos quando lhes convém.

Sabemos que o tratamento dirigido a mulher não deveria ser medido pelo quanto seu corpo esta coberto, se ela usa ou não maquiagem, se ela esta de salto ou de tênis, se seu cabelo é curto ou longo…No entanto, nós mulheres, não temos poder de determinar como os outros nos veem, mas podemos saber quem somos.

Como mulher preta, meu conselho para outras mulheres pretas é, saiba que estamos num sistema patriarcal, capitalista, racista, machista, e que vem de várias formas tentando controlar nossos corpos. Tendo isso em mente saiba também quem você é e faca aquilo que te deixa feliz.

Como mulher e artista o que quero é que nossos corpos e expressão sejam tão respeitados na sua liberdade quanto são os corpos e expressão masculinas.

Você integra os projetos “Coluna Lugar de Mulher” e o “Coletivo Negras Autoras”. Como esses projetos buscam ampliar a representatividade da mulher preta no campo cultural?

O Coletivo Negras Autoras já nasce tendo como premissa a inclusão, representatividade e ‘autoralidade’ da mulher negra. Tudo que construímos artisticamente visa reforçar o protagonismo da mulher negra como autora de sua própria história. O Coletivo é um grupo que além do seu trabalho artístico (shows e espetáculos) atua também de forma mais ampla no campo cultural, realizando palestras, seminários, mostras e oficinas de formação. Sempre tendo a mulher negra, em toda sua diversidade, como protagonista.

O Coletivo Lugar de Mulher, é formado por mulheres diversas, pretas, brancas, mestiças, mas todas elas com consciência de raça e consciência social. Nossas ações são pensadas de forma a focalizar também as mulheres negras que vem construindo dentro do campo artístico e cultural. Este é um projeto de difusão do trabalho de outras artistas mulheres.

Para ouvir
https://open.spotify.com/artist/33l16BPoMAO3bgHH54VLaq
https://www.deezer.com/br/artist/12070466
https://www.youtube.com/channel/UCIJ5NtIw6MBd7-wClJ5aYcQ
Para ver
https://www.youtube.com/watch?v=agSCEJBToXE&t=86s
https://www.youtube.com/watch?v=-9wcK0OPTC0
Para acompanhar
https://www.instagram.com/elisadesena/

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1 Comentário para “Arte, negritude e feminismo – Entrevista com Elisa de Sena”

  1. Avatar Sebastião Flaurindo da Silva Filho disse:

    tODAS AS MULHRES NEGRAS DEVEM TER DIREITOS IGUAIS, ..nÃO SÓ PARA REBOLARE, LIMPAR A CASA, NEM SEREM BABÁS, CULTURA ARCAICA. cONJUNTURA ANTIGA, iGUALDADE A NEGRITUDE…

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