Foto: Marcelo Paixão (https://ihateflash.net/)
Ao longo do mês de maio, o ODC realizou uma programação dedicada à Diversidade Cultural, que contou com uma série de conversas ao vivo na Plataforma Youtube. A primeira delas, realizada no dia 04 de maio, teve como tema a contribuição da cultura para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Dimensão Social da Agenda 2030 das Nações Unidas. Um dos projetos convidados foi o grupo de Teatro Nós do Morro, representado na ocasião por Luciano Vidigal. Antes disso, no dia 23 de março de 2021, foi realizada (pela ferramenta Google Meet) a seguinte entrevista com Guti Fraga(1), fundador do grupo, e as integrantes Luciana Bezerra e Tatiana Delfina, da qual também participou Ester Moreira, ex-integrante do grupo.
Qual a trajetória do Grupo Nós do Morro?
Guti Fraga – Quando fundei o Nós do Morro, não queria simplesmente um grupo de teatro no Vidigal, mas um grupo de teatro com filosofia de vida, pensando no coletivo que chamamos Nós, nas ideias multiplicadoras. Da mesma forma que você tem oportunidade, pode passar para outras pessoas. Há o princípio cultural, respeito hierárquico, essa coisa toda. O Nós do Morro foi fundado em 1986, com o Luiz Paulo, meu querido amigo, o Fred Pinheiro, que já se foi, e o Fernando Melo, que já se foi. Foram dois amigos que estiveram conosco o tempo inteiro e sempre acreditaram na ideia. A gente vem passando por vários momentos de dificuldade, momentos bons, momentos lindos. Acho que o melhor momento foi quando tivemos o primeiro patrocínio da Petrobras, não como grupo social, mas como grupo sociocultural. Foi quando começamos a dar um salto maior, que foi não fazer temporada só no Vidigal. Fizemos a primeira temporada no teatro Laura Alvim, em Ipanema (Rio de Janeiro).
Eu trabalhava com pessoas maravilhosas. Trabalhei com Domingos Oliveira e, depois, com Marília Pêra, por cinco anos. Foi justamente quando estava com Marília Pêra em Nova Iorque, que deu esse “click” na minha vida. Em Nova Iorque eu vi, realmente, o acesso que as pessoas tinham a tudo, principalmente a artes plásticas, teatro. Em salas pequenininhas, em que cabiam dez pessoas, havia um teatro. Comecei a ver essa possibilidade. Era off, off. Todo mundo ia para a Broadway. Eu só ia para off, off. Eu queria ver a “negada local”. Foi isso que me estimulou a fundar o Nós do Morro. Vim de lá decidido. Quando entrei no avião, falei com Fred Pinheiro, que era iluminador da Marília Pêra, e perguntei se ele topava me dar uma força se eu fundasse um projeto de teatro no Vidigal. Estávamos sem grana e paramos tudo. Sabe aquela coisa? Você luta a vida toda para ter uma vida bacana, viver por meio da arte e, de repente, larga tudo e volta à estaca zero. Mas não abri mão. Foi assim que começamos. Agradeço aos produtores de elenco da Globo porque eles me chamavam e eu não podia ser contratado, mas falava: “preciso pagar meu aluguel”. Eles me chamavam para uma participação. Assim foi vindo, os meninos foram crescendo, crescendo, crescendo. De brincadeira, passaram-se 35 anos.
São vários divisores de água no Nós do Morro. Um momento muito importante foi quando fizemos Cidade de Deus [filme de 2002, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund]. Eu fiz a preparação básica do Cidade de Deus. A Luciana Bezerra e o Luciano Vidigal foram meus parceiros, os assistentes que saíram pelo Rio de Janeiro inteiro, atrás de não atores, de atores, de pessoas da periferia. Ficamos com eles durante três meses. Desses três meses surgiu o elenco de Cidade de Deus. O tempo inteiro, durante esse tempo todo, brigamos contra o estereótipo. É sempre o estereótipo: é um grupo de teatro de favela. Não, é o aprendizado diário. Fomos criando essa universalidade com vários instrumentos.
Tivemos um momento muito bacana com a Rosane Svartman, antes da fundação do Núcleo de Cinema do Nós do Morro, quando fizemos parceria com o Chapitô, um projeto de Lisboa (Portugal). Juntamos jovens da Alemanha, França, Portugal e Colômbia. Falávamos sobre estereótipos. Fizemos um filme chamado Outros olhares, outras vozes. Esses jovens vieram para o Rio, ficaram conosco no Vidigal. Fizemos 70% do filme no Rio e 30% em Lisboa. Isso quebra barreiras incríveis. Outro grande divisor de águas foi uma parceria que fizemos com a Royal Shakespeare Company. Foi quando conhecemos a Cicely Berry, diretora de voz da Royal Shakespeare, que também já faleceu. Era uma mulher maravilhosa, um gênio. Houve uma mostra de obras completas de Shakespeare e somente dois países foram convidados a entrar. Um deles foi o Brasil. O Nós do Morro representou o país com Two Gentlemen of Verona [Dois Cavalheiros de Verona]. A Tatiana também estava nessa viagem. Foi muito importante ficar um mês em Stratford, onde a economia da cidade é teatro, não é televisão, não é cinema, é teatro. Foi importante ficar com a Cicely, que adotou a todos nós como filhos. Foi uma coisa muito linda. Aprendemos muitos costumes. Já tínhamos esse critério filosófico, mas lá, então: 7h não são 7h01. Depois fizemos o Barbican também. Foi muito importante. O Zuenir Ventura estava lá. Um dia, estávamos no Barbican e a Marília Furacão, uma atriz que trabalha como diarista justamente para poder fazer teatro, de repente, veio à coxia, chorando, contando: “A dona Clotilde está aí!”. Era sua ex-patroa, que tinha mudado para Nova Iorque, ficou sabendo da peça e foi para Londres nos assistir. Tem umas histórias de pirar mesmo!
Por que o Nós do Morro foi fundado no Vidigal?
Guti Fraga – Eu nasci em Mato Grosso, na terra de Vanessa da Matta, em uma cidade chamada Alto Garças. Fui morar em Goiânia com dez anos. Minha família era muito pobre. Nessa época, a sociedade era muito bonita em relação à educação. Praticamente não existiam escolas particulares. Então, a sociedade se encontrava dentro da escola. A maioria dos meus amigos eram ricos. Eu era paupérrimo. Às vezes eu ia de bicicleta, passava por um lugar que era só mato, chorava de medo. Chegava em casa e o almoço era uma farofa de ora-pró-nobis. Só que tinha um amigo, o Guilherme, cujo avô foi o primeiro prefeito de Goiânia. Sua mãe era dona da única escola de etiqueta que havia lá. O Léo é meu amigo, irmão de fé até hoje, mora no Rio, tem a Casa da Feijoada em Ipanema. Eles sempre foram de classe alta e eu era paupérrimo. Nós nunca tivemos diferenças. Essas coisas todas me fortaleceram, seguiram meus intuitos, meus sentimentos, meus ímpetos.
Lá em Goiânia, eu comecei a fazer teatro com Hugo Zorzetti, que se foi também no ano passado. Era um cara maravilhoso. Ele tinha uma kombi, uma rotunda e três refletores. Nós íamos de cidade em cidade, parávamos, acampávamos, dormíamos dentro da kombi mesmo. Tentávamos ganhar uma merreca para chegar à próxima cidade. Assim foi minha vida de teatro em Goiânia. Houve um festival no Paraná, em Curitiba, e nós fomos. Fomos também ao festival em Ouro Preto (Minas Gerais). Foi onde minha cabeça mudou. O trio era formado por Guilherme, Léo e Nadir de Castro. Nadir de Castro era filha de uma esquerdista. Eu não entendia nada de política. Quando estava no Festival de Ouro Preto, a Nadir me ligou, falando que havia surgido a oportunidade de ir para Moscou, e perguntou se eu queria ir. Falei: “É tudo o que eu quero!” Imagina! O berço do teatro. Nós acreditávamos naquilo tudo. Só que, quando voltei para Goiânia, dançou. Rolou outra possibilidade: o irmão dela ia morar na Argentina. Falei: “Eu quero ir”. Mas não tinha como. Minha mãe era pobre, meu pai também. Eles fizeram o que não tinham para me ajudar. Eu fui morar na Argentina e foi lindão. Morei primeiro em Córdoba, depois fui morar em Mendonça. Eu fazia medicina de manhã, agronomia à tarde e teatro à noite.
Teve o golpe da Isabelita e tive que voltar para Goiânia. Casei-me com a Gal, que era uma parceirona também. Fomos para o Rio, moramos um mês em Copacabana, mas um amigo meu falava do Vidigal. Alugamos um apartamento no Vidigal, em um duplex que havia lá. Era uma época maravilhosa. A Gal Costa morava no subsolo desse prédio. O Danilo Caymmi… todo mundo morava por ali. Comecei minha relação com o Vidigal assim. Fui fazer jornalismo da UFRJ. Mas minha vida já era Vidigal. Só saía para ir ao teatro, para ver a Escola de Teatro Martins Pena. Em 1980, eu me formei. Pensava em um jornalismo diferenciado. Não acreditava no jornalismo de censura, gostava da liberdade de escrever. Eu e uma amiga chamada Helena Carone fizemos uma matéria para o jornal O Pasquim. Nessa época, eu já tinha tido uma atitude rebelde: não colei grau até hoje. Eu queria, quando chamassem o meu nome, falar uma poesia de Drummond: “Precisamos descobrir o Brasil, escondido atrás das florestas, com águas do rio no meio, o Brasil está dormindo…” Não deixaram e não colei grau.
Fiz a matéria para O Pasquim quando o Papa esteve no Brasil pela primeira vez. No Vidigal, eu já tinha um jornal chamado O Mural. Foi nessa época que conheci o Luiz Paulo, que me ajudava e escrevia tudo muito bem. Tínhamos murais na comunidade. Fazíamos no carbono e pregávamos nos lugares. O Paulo fez uma matéria muito importante, que falava assim: “por que não calçar o caminho para as senhoras lavadeiras com lata d’água na cabeça e calçar para o papa?”. Eu me lembro até hoje do título da minha matéria para O Pasquim: “O Papa nas Bocas”. Ele passava na frente de duas bocas para chegar à capela. O Vidigal ficou acordado a noite toda, esperando o Papa. Viramos a noite no Bar do Celeste e fomos esperar o Papa às 7h da manhã. Chegou o Papa pela primeira vez. O Papa usava Landau. Eu me lembro: “Lá vem ele no seu Landau”. A matéria começava assim. Quando o Papa chegou, o Vidigal inteiro se emocionou. Nós voltamos ao Celeste, ao barraco, para tomar a “saideira”. Quando estava tomando a saideira, vi um carro parado. Quando falei “Celeste, me dá a saideira”, veio um cara, bateu no meu ombro. Olhei e ele falou: “Isso aqui é para você, jornalista”. Me deu um soco na cara. Quando ele foi pegar o revólver, eu saí correndo. Havia uma escada. Eu fiquei umas quatro horas escondido atrás de uma caixa d’água, até eles desistirem. Falei: “Não quero escrever mais nada na minha vida. Só quero continuar com o teatro”. Assim foi com o teatro. Comecei a trabalhar com o Domingos Oliveira. Ele me apresentou a Marília Pêra. São Paulo-Rio entrou na minha vida. O Brasil inteiro entrou na minha vida. Fui parar em Nova Iorque e aconteceu essa “chave” de que falei. Está contado.
Como o Nós do Morro atua na comunidade e contribui para a dimensão social dos ODS?
Luciana Bezerra: Eu tive a possibilidade de escrever um livro que se chama Meu destino era o Nós do Morro [Editora Hunter Books, 2012]. Foi uma provocação feita por Heloísa Buarque de Holanda a vários jovens, que naquele momento já eram adultos, mas que eram provenientes de grupos sociais, como Nós do Morro e CUFA [Central Única de Favelas], entre outros. O Marcus Vinícius Faustini também faz um trabalho nessa edição. É um trabalho memorável, que se chama Guia Afetivo da Periferia [Editora Aeroplano, 2009]. Heloísa Buarque de Holanda faz uma provocação e pergunta: “Quem é esse jovem?” “Que tipo de jovem procura o Nós do Morro?” “Que tipo de jovem em especial fica no Nós do Morro?” “Quem são esses que estão se tornando artistas?” Eu investigava a mim e a meus amigos, tentando responder. Mas o que mais tenho de respostas é que não tinha a ver só com esse jovem. Tinha a ver também com quem angariava esses jovens. Eu digo em agradecimento aos meus mestres do Nós do Morro o quanto o Guti é, realmente, um pescador de homens, de almas, de pessoas que ele percebe que possam dividir esse sonho. Isso foi muito especial dentro da sua trajetória. Um açoitador de sonhos. Quer dizer, o tempo inteiro, a partir do momento que você se torna um colaborador dessa figura ou um integrante do Nós do Morro, você também é impulsionado loucamente a acreditar nas coisas que bota na cabeça, a acreditar que é possível. Acho que, por trás de toda ideia, o que o teatro mais nos ensinou e mais nos emprestou foi no âmbito da vida.
Primeiro, fui uma plateia Nós do Morro, em 1987, quando o grupo surgiu e trouxe à tona seu primeiro espetáculo, que se chama Encontros. Foi um espetáculo de extrema importância para uma geração inteira que vivia no Vidigal naquele momento e que se viu da noite para o dia. Aquele grupo trabalhava em silêncio dentro do teatro há mais ou menos um ano, até que surgiu o espetáculo. Para nós, mudou tudo. Nunca tínhamos ido ao teatro e, de repente, havia um teatro que mostrava a vida da nossa comunidade com uma visão crítica: isso é teatro, não é simplesmente uma reprodução da vida. Nós nos víamos, nos reconhecíamos nele. Eu reconhecia a Dona Maria. Eu já ajudei minha amiga a fugir do colégio à noite. Ela estava namorando e fui lá avisar: “Sua mãe veio te buscar, corre, pula o muro, vai por trás. Vamos falar para ela que você já foi”. Eram situações que aquela geração estava vivendo, presenciando no palco. Isso foi muito importante. Foi empoderador. A partir daí, acho que começa no Vidigal uma semente muito forte. Mas quem está lá? Os obstinados. Foram muitos anos sem patrocínio. Em 1998, o Nós do Morro fez seu primeiro ensaio de patrocínio. A prefeitura deu uma pequena verba para que levássemos o repertório ao Lauro Alvim. Nós levamos o espetáculo Machadiando, que já era premiado, sem nenhuma verba. Levamos o Abalou, que já era premiado. Tinha ficado dois anos e meio em cartaz dentro do Vidigal, trazendo pessoas de fora. Isso também é uma força muito grande dos territórios culturais. O Nós do Morro alcançou para o Vidigal essa liberdade do território cultural. Eu tenho medo de ir à favela, mas ao Nós do Morro eu posso ir. É liberado. Assim como depois veio a CUFA, veio o Afro Reggae, veio a Temporada de Curtas, as maravilhas que o território da cultura criou em muitos lugares, os oásis da cultura.
A situação não mudou muito em comparação com o que o Guti descrevia no jornal O Mural quando ele dizia “o Papa nas bocas”. Eu moro no Beco do Papa. Faço o trajeto da rampa até a capela do Papa, que existe até hoje, é histórica. Já quiseram derrubar, já quiseram transformar em pouso, em posto policial, em tudo… Mas, sem o olhar católico, só com o olhar histórico, eu acho que ela precisa permanecer ali porque também faz parte. A vinda do Papa para o Vidigal foi muito mais do que só uma vinda do Papa. Ela é o selo de permanência da favela, que brigava há anos com uma remoção. Existia uma articulação política, uma articulação também da pastoral de favelas. É um marco. Até hoje, passamos por duas bocas como o Papa passou. Até hoje nós brincamos ali. Tem um filme que eu adoro, que se chama Duas vezes mulher [1986], de Eunice Gutman. Eu descobri agora. É um filme que se passa no Vidigal. São duas mulheres vidigalenses, que falam sobre a construção do Vidigal. Estamos em 1985, a favela já existia há anos. O Papa já havia vindo aqui há cinco anos. Mas elas falam basicamente da construção de uma pequena pavimentação em um trecho de escada e beco que era barro puro, um barro vermelho. Quando chove não tem como subir, não tem como descer. As pessoas subiam na corda. Isso em 1985. Todo mundo já usava jeans, já havia telefone. Já havia computador no mundo! Isso não mudou muito. As mudanças urbanísticas, as mudanças sociais, todas essas coisas, são muito lentas.
Então, o que sobra? Sobra a arte, sobra o sonho, sobra projetar o tempo inteiro um futuro. Não é projetar no sentido de ficar parado e falar: “o futuro…”. Não, é no sentido do fazer. Eu acho que vou chegar a um ponto muito Nós do Morro, que é um bem e um mal, como instituição. Às vezes, esperamos pouco para fazer coisas. Isso nos mete em encrencas financeiras. Quando você tem tempo, você pode planejar, você pode captar um projeto por dez anos, segurando seu valor. Nós não temos tempo, nós temos urgência sempre. Você vê: nasce da urgência do Guti de ver que ao redor existia a Off-Off-Broadway, mas nada estava acontecendo. A partir daí, nasce um pouco em nós também esse sentido da arte de urgência, da arte de necessidade. Às vezes essa arte se atropela também. Acho que, por isso, foi tanto tempo, foi de 1986 a 1989, sem ver uma grana. Em 1995, já construindo um teatro.
Quando o poder público chega à favela, o Vidigal tem um teatro. Foi feito pelo Nós do Morro. É mantido pelo Nós do Morro, embora tenha 35 anos de trabalho de cultura e educação dentro deste território. Ainda assim, não veio o prefeito, não veio o governador, não veio ninguém nos dar o teatro, nem mesmo dizer: “Vamos dar um ‘upgrade’ neste e vamos fazer vocês terem um ‘puta’ teatro”. Você percebe também que o terreno é bem árido. Ninguém está a fim de regar aqui. Somos muito rentáveis para o tipo de governo que temos, o tipo de engrenagem, sendo bem anti-imperialista. Para quê? Vou fazer essas pessoas atravessarem os muros intelectualmente para quê?
Qual a relação entre o Nós do Morro e os movimentos sociais, culturais e artísticos no Brasil?
Ester Moreira: Acho que uma primeira relação vem pelo Guti, que continua circulando por esses off, off do Rio de Janeiro. De uma maneira geral, pelo menos no Rio de Janeiro, o Nós do Morro é praticamente o primeiro grupo a se formar com essas características. Por muito tempo ele foi único, mesmo que tenham surgido outros grupos. O que lhe dá essa característica única? O fato de ser um movimento de periferia. É um grupo artístico que se forma numa comunidade que é considerada periférica. Ainda que fique no coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, por uma questão social, é considerada periférica. O grupo é fundado e forma as pessoas da sua comunidade. Depois surgem outros grupos, inspirados na própria experiência do Nós do Morro, mas muitas vezes constituídos por pessoas externas às comunidades, que vão para essas comunidades com algum tipo de trabalho que acham que seja importante. Vou dar um exemplo. A Eliana Souza e Silva e seu marido, Jailson de Souza e Silva, são da comunidade da Maré, vão estudar na UFRJ, tornam-se intelectuais e fundam um projeto dentro da sua comunidade, que começa como Observatório das Favelas e, depois, tem uma dimensão maior, tem vários projetos dentro de outros projetos. Por exemplo, o projeto de dança foi um grupo de bailarinos da Zona Sul do Rio de Janeiro que levou para lá, em parceria com o Jailson e a Eliana. Há vários outros exemplos de projetos artísticos, sociais e socioculturais que vão para as comunidades como uma ação de fora para dentro. Eu acho que a principal característica que distingue o Nós do Morro desde o seu nascimento é que ele é fundado e formado e até hoje é da comunidade, é feito por pessoas da comunidade, para a comunidade. O objetivo é dar acesso à arte para a comunidade, com qualidade, como diz o Guti.
Outro aspecto é: do início a meados nos anos 1990, quando já não há o governo militar, começa a redemocratização, a sociedade começa a se reorganizar. Até então, a sociedade civil estava totalmente abafada, não podia haver grupos de mais de 3, 4, 5 ou 6 pessoas andando nas ruas porque iam presos. Com a redemocratização, a sociedade civil começa a se reorganizar e começam a surgir as famosas Ongs [Organizações não Governamentais]. No Brasil, o processo é bastante lento. Mas começam esses movimentos sociais e de luta de categoria, movimento negro… O Guti acaba tendo relação com essas pessoas. Como ele é “o” Nós do Morro, o fundador e a imagem do Nós do Morro, acaba tendo esse vínculo. Depois, você tem essa geração que começa e cresce dentro do Nós do Morro e vai ampliando esses vínculos com outros grupos, com outros processos, com outros projetos, que vão se misturando. O Nós do Morro vai estabelecendo essa relação e participando, de alguma forma, de projetos maiores, encontrando-se com esses outros ativistas da arte, da cultura e da sociedade. O Ponto de Cultura é uma dessas janelas [O Nós do Morro é um dos primeiros Pontos de Cultura do Brasil].
Guti Fraga – O Ponto de Cultura, para mim, foi uma das maiores revoluções que aconteceram, independentemente do partido, do governo. Foi um olhar para o Brasil de ponta a ponta. Não foram privilegiados do Rio de Janeiro, da favela, de São Paulo, da perifa… Não, foi o Brasil inteiro. Abriu-se uma oportunidade globalizada dentro do Brasil através dos Pontos de Cultura. Tenho muito orgulho de ver o quanto todo mundo tem o direito e a necessidade desse acesso. Acho que o Ponto de Cultura foi isso, um olhar com a lente buscando em toda parte do Brasil. Quando estava na Funarte [Guti Fraga foi Presidente da Funarte entre 2013 e 2015] e viajava, o que mais me encantava era ver a qualidade artística e cultural nos lugares. A qualidade no Amazonas é tão grande quanto a de São Paulo ou a do Rio. Nós nos fechamos no local. Acho que o Ponto de Cultura foi isso: ele abriu tudo isso. Já a Lei Aldir Blanc, para mim, foi o respirar de uma possibilidade dentro do nada. O momento que estamos vivendo é tão difícil na vida. Como resistir nas pequenas coisas? Como resistir? Eu acho que veio para dar uma pequena possibilidade de respiro. Não posso negar o quanto isso tem sido importante para tantos projetos. É um respirar, pequeninho, mas já vale a pena: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. “Há metafísica bastante em não pensar em nada. Que penso eu da vida? Se adoecesse, pensaria nisso”. [Citações de Fernando Pessoa]
ODC – Para além da formação artística, o projeto estimula uma transformação política nos jovens que participam? [pergunta formulada e respondida durante a live(2)]
Luciano Vidigal – Certamente. O Nós do Morro é um instrumento transformador – e tenho muito orgulho de falar isso. Quando eu era criança eu não entendia por que eu tinha que trabalhar muito para ajudar minha mãe, e as diferenças e complexidades sociais que eu encontrava ao lado de onde eu morava, no Leblon, bairro do Rio de Janeiro. Eu costumo dizer que a arte, com o poder que ela tem, heroico, me fez enxergar o mundo. Antes eu via o mundo, hoje em dia eu enxergo o mundo, eu entendo a profundidade dessas diferenças. Ela me instigou a isso, a debater, a questionar e a subverter – adoro esta palavra! E como subverter isso? Usamos a arte como estímulo. Também gostamos muito de reforçar que o Nós do Morro faz um trabalho em parceria com a educação. É muito importante a gente estar junto com a educação, com um estímulo árduo à leitura, com o estímulo para que as escolas venham ao teatro… Além disso, a nossa diretora atual, Luciana Bezerra, que tem um trabalho muito bonito no cinema e no teatro, desenvolve também um trabalho de feminismo exemplar, trabalha essa consciência sobre causas muito importantes hoje no Brasil, que é o da referência de uma mulher preta que tem um olhar muito importante para a formação, e que promove também a consciência sobre a questão do racismo e do necessário combate ao racismo estrutural que existe em nosso país.
Para saber mais sobre o grupo Nós do Morro, acesse: https://grupo-nos-do-morrooficial.negocio.site/
(1) Parte desta entrevista foi extraída da pesquisa “Poetas em tempos de penúria: Investigações sobre a articulação em rede de artistas e profissionais da cultura para a elaboração de políticas públicas para o setor”, realizada na Cátedra Olavo Setubal de Arte Cultura e Ciência (parceria do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – IEA/USP com o Itaú Cultural), durante a titularidade do Prof. Dr. Néstor García Canclini (2020/2021), que investiga “A Institucionalidade da Cultura no Contexto Atual de Mudanças Socioculturais”.
(2) Link da live Cultura e Desenvolvimento Sustentável – Dimensão Social: https://www.youtube.com/watch?v=MQZmUaM-hso&t=13s
CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO – Boletim 101, nº 01/2024 Cultura Viva: 20 anos de uma política de base comunitária Período para submissão: 13 de março a 23 de junho de 2024 A Revista Boletim Observatório da Diversidade Cultural propõe, para sua 101ª edição, uma reflexão sobre a trajetória de 20 anos do Programa Cultura Viva […]
O Observatório da Diversidade Cultural, por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, patrocínio do Instituto Unimed, realiza o ciclo de formação GESTÃO CULTURAL PARA LIDERANÇAS COMUNITÁRIAS. Período de realização: 10, 17 e 24 de outubro de 2024 Horário: Encontros online às quintas-feiras, de 19 às 21h00 Carga horária total: 6 […]