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Entrevista Luiz Morando: memória e respeito ao movimento LGBTQIA+

Foto: Divulgação | Luiz Morando

Dia 28 de junho é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, data criada com o objetivo de conscientizar a população sobre a importância do combate ao preconceito e à homofobia. Para marcar a data, o ODC realizou uma entrevista com Luiz Morando, graduado em Letras, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFMG. Durante 21 anos Luiz Morando atuou como professor no curso de Letras de uma instituição privada de Belo Horizonte e atualmente trabalha autonomamente com revisão de textos e, concomitantemente, desempenhou um trabalho voluntário no Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS de Minas Gerais (GAPA-MG) entre 1992 e 2014.

A partir de 1989, começou a constituir um acervo próprio de cultura LGBTQIA+ no Brasil, especialmente de Belo Horizonte. A partir disso, desde 2002 vem desenvolvendo uma pesquisa independente, de forma sistemática, para recuperação da memória LGBTQIA+ da capital mineira, privilegiando o período entre 1946 e 1989, mas já tendo recuado a 1917. A base dessa pesquisa é sustentada por três fontes: reportagens da imprensa belo-horizontina, autos de processos judiciais que têm pessoas LGBTQIA+ como vítimas ou rés e relatos orais.

Desde o final dos anos 1990, Morando publica artigos em livros e periódicos da área, e já publicou dois livros: Paraíso das Maravilhas: uma história do crime do parque (Editora Fino Traço, 2008) e Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (Editora O Sexo da Palavra, 2020).

ODC – Dia 28 de junho é consagrado como o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Você poderia explicar as razões históricas que levaram à consagração desta data?

LM – O final da Segunda Guerra Mundial levou a uma polarização político-ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, caracterizando a Guerra Fria e a eleição majoritária de políticos mais conservadores nos Estados Unidos. Isso levou a um processo político que produziu diversas leis e normas de maior repressão e opressão ao segmento de dissidentes de sexo e gênero, obliterando direitos e defendendo a criminalização das formas não cisgêneras e não heterocentradas de existência. Mais especificamente em Nova York, a máfia chamada Genovesa era proprietária do bar Stonewall Inn, frequentado por gays, lésbicas, travestis e pessoas transgênero. A polícia cobrava propina dos donos do bar para mantê-lo aberto e extorquia seus frequentadores, humilhando e agredindo a todos e todas. Na noite de 28 de junho de 1969, cerca de 200 pessoas estavam dentro e em frente ao Stonewall quando a polícia chegou. A extorsão e agressão se repetiram, mas naquela noite houve uma reação que se transformou em confronto aberto. A versão mais congruente defende que a lésbica negra Stormé Delarverie liderou o confronto ao atirar uma pedra contra uma viatura e tentar ser levada à força pela polícia. Ela estimulou a reação dos presentes a se rebelarem e alguns seguiram seu exemplo. Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera foram informadas sobre o que acontecia e se dirigiram ao Stonewall Inn, tomando a frente da reação. O confronto se repetiu pelas noites seguintes e se tornou o estopim para a organização social e civil do segmento LGBTQIA+ estadunidense. A experiência dessa rebelião se tornou referência para a organização de grupos de lutas por direitos sociais e civis de gays, lésbicas, travestis, pessoas trans e várias outras denominações, assim como o 28 de junho se tornou o dia de demonstração do orgulho de ser dissente de sexo e gênero.

ODC – A Revolta de Stonewall Inn em 1969 pode ser considerada como o “marco zero” do movimento de igualdade civil para os cidadãos e cidadãs LGBTQIA+? Como esse acontecimento em Nova York influenciou o chamado Movimento Gay no Brasil?

LM – É uma convenção considerar a Revolta de Stonewall Inn como um “marco zero”. Basta tomarmos duas referências anteriores para percebermos que esse processo se inicia bem anteriormente e se desenvolve em cadeias. Por exemplo, em 1959, em Los Angeles, um confronto entre a polícia e pessoas transgênero e gays ocorreu no Café Cooper Donuts no sentido de impedir a frequência daquelas pessoas no estabelecimento. Em 1966, algo semelhante ocorre em San Francisco, na Compton’s Cafeteria, quando a polícia tentou expulsar drag queens, garotos de programa e travestis daquele local. Nesse sentido, é fundamental pensar que há um ambiente em conflagração nos Estados Unidos da parte das pessoas dissidentes de sexo e gênero, o que faz gerar essas revoltas locais como rastilho.

Por outro lado, a revolta de Stonewall Inn ganhou um simbolismo muito grande na comunidade estadunidense e uma projeção muito forte nos países ocidentais, bem como a luta e a conquista de direitos que se desencadearam a partir daí. Por meio das Marchas do Orgulho Gay, como foram denominadas no começo, a visibilidade se tornou crescente e o movimento ganhou a imprensa internacional ao longo da década de 1970. Sem dúvida, essa ressonância serviu de estímulo à criação de um movimento brasileiro, mas uma referência mais evidente para a criação do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, em São Paulo, em 1978, foi a experiência em Buenos Aires com a criação do movimento portenho e uma publicação de mesmo nome entre 1971 e 1976.

ODC – Você poderia tecer algumas considerações sobre as mudanças na terminologia dos movimentos e as transformações políticas, sociais e culturais? GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transexuais), LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexo) e LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo e outros). Tais mudanças expressam o fortalecimento ou a fragmentação dos atores desta luta política? Seria correto falar do 28 de junho como Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+?

LM – Inicialmente, nos anos 1970, o movimento era genericamente denominado movimento homossexual, tomando o termo homossexualidade como um guarda-chuva que comportava todas as diferenças no que toca à identidade de gênero e à orientação sexual. Mas ao longo dos anos 1980, as diferenças identitárias e as demandas sociais e civis mais específicas se tornaram mais explícitas. É muito fácil compreender que as lésbicas têm suas especificidades, assim como as travestis, as pessoas trans, as pessoas intersexo etc. De forma bem sintética, essa distinção começou a ser feita na virada dos anos 80 para 90 com a sigla GLS, dando destaque a duas orientações sexuais e a um oceano indistinto de pessoas que apoiavam a causa de gays e lésbicas. Essa sigla foi inventada dentro de uma concepção comercial, no âmbito do Mercado Mundo Mix, evento cultural e comercial criado por André Fisher. Em 1993, o movimento passa a ser denominado MGL (Movimento de Gays e Lésbicas). Com o fortalecimento do movimento por direitos na primeira metade dos anos 90 e a realização do Encontro Mundial da ILGA no Rio de Janeiro em 1995, adotou-se a sigla GLBT, iniciando a visibilização de pessoas guiadas ela orientação sexual e pela identidade de gênero. Em 2005, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, decidiu-se colocar o L à frente da sigla para dar mais visibilidade às lésbicas – LGBT. Na década de 10 foi incorporado o Q e o I, embora sempre se faça a discussão e que queer não é nem uma identidade de gênero nem uma orientação sexual. Mais recentemente, adotou-se internacionalmente a sigla LGBTI+, embora no Brasil também se use LGBTQIA+ ou ainda LGBTQIAP+, sempre utilizando o sinal ao final para indicar uma variedade de identidades que não ficam visíveis na sigla.

ODC – Quais são os maiores problemas enfrentados pela população LGBTQIA+ no Brasil? Como você avalia as transformações e conquistas? Poderia fazer um paralelo entre desafios e avanços?

LM – As conquistas garantidas sempre foram por judicialização junto ao STF: em 2011, a autorização para união estável; em 2013, a conversão da união estável em casamento civil; em 2015, autorização para adoção de crianças por pessoas LGBTQIA+; em 2018, a permissão de alteração de nome e gênero direto no cartório; em 2019, a criminalização da LGBTfobia; em 2020, a autorização de doação de sangue por pessoas LGBTQIA+ e a proibição de terapias de conversão por psicólogos.

Mas ao lado dessas conquistas (sempre por meio de judicialização), é gritante o aumento da violência contra pessoas LGBTQIA+ e o avanço crescente do discurso conservador/religioso cristão, provocando pânicos morais e promovendo uma cruzada reacionária contra o nosso segmento. A escalada desse discurso é visível na polarização política nas casas legislativas do país e no aprofundamento da violência contra esse segmento.

ODC – Você lançou recentemente um livro sobre a travesti Cintura Fina. Em uma de suas entrevistas sobre sua pesquisa, você afirma que buscou retirar a aura de lenda e construir uma história mais humana e multifacetada. Qual a importância dessa mudança de enfoque?

LM – Toda lenda possui uma estrutura monolítica, pela qual você enxerga apenas uma faceta da personagem e que passa a rotulá-la constantemente. Esse processo apaga o caráter plural da personalidade daquele sujeito, de sua complexidade e de sua humanidade. É o que ocorria com Cintura Fina, vista apenas pelo ângulo da criminalidade e da marginalidade. Não apaguei isso de sua vida. No livro estão os 18 processos judiciais nos quais Cintura Fina foi vítima ou ré. Mas ao lado disso, tento resgatar a pessoa humana que há por trás dessa imagem, apontando nuances, indefinições, inseguranças. Cintura Fina foi a primeira travesti a ganhar visibilidade em Belo Horizonte. Ela chegou à cidade em 1953 e desde então adotou uma performatividade feminina durante o dia e a noite, tornou-se uma liderança e protetora de prostitutas e de homossexuais afeminados na zona boêmia, foi trabalhadora do sexo e também costureira e faxineira. Sabia lutar muito bem e manejar a navalha para se proteger. Enfim, a mudança de enfoque foi importante para resgatar uma figura mais humanizada, menos maniqueísta, ao mesmo tempo em que se reconstitui uma parte da memória de pessoas travestis e transgênero da nossa cidade, revisando sua imagem e permitindo que as novas gerações possam olhar para o passado e enxergar em Cintura Fina um sinal de insurgência.

ODC – O Brasil é um dos países com maior índice de transfobia no mundo e, entretanto, teve nas últimas eleições municipais um recorde de candidaturas trans. Como você analisa essa questão? Como vê a mulher trans Duda Salabert, eleita como a vereadora mais votada da história na capital mineira, não conseguir se eleger como presidente da Câmara dos Vereadores, como se esperava?

LM – O aumento de candidaturas de pessoas LGBTQIA+, especialmente de pessoas trans, para cargos políticos é um fenômeno que vinha crescendo e que nas eleições de 2018 e 2020 se tornaram muito evidentes. Isso mostra um potencial de organização de base desse segmento e para fora dele próprio alcançando espaços até então inatingíveis. É um processo lento iniciado com a eleição da vereadora travesti Kátia Tapety nos anos 80 no Piauí e que veio se desdobrando ao longo do tempo com a organização em rede de pessoas trans e travesti.

O caso de Duda Salabert em Belo Horizonte é representativo de dois aspectos: da mobilização local de uma liderança com discurso, finalidade e estratégia bem manejados, bem como um poder de convergência e diálogo muito preciso. Ela tem um programa político claro e vem de uma experiência de ativismo social na ONG Transvest. O segundo aspecto está relacionado ao plano nacional, de uma rede mais ampla organizada e costurada ao longo do tempo pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e suas representantes nos estados.

O fato de Duda Salabert não ter conseguido se eleger presidente da Câmara de Vereadores é sintomático da polarização político-ideológica, mais do que partidária, que há nessa casa legislativa e que vem se acirrando há vários mandatos. Infelizmente, a maioria de vereadores da Câmara é conservadora e se rege pela política que no plano nacional é conhecida como toma-lá-dá-cá. Sintoma disso é o fato de o segundo vereador mais votado na eleição passada ser conservador, reacionário e se dizer cristão.

ODC – Fique à vontade para acrescentar o que achar importante, sugerir questões, indicações de leitura, perfis de redes sociais a serem seguidos etc.

LM – Como eu pesquiso sobre a história do movimento LGBT brasileiro e a memória das identidades LGBT de Belo Horizonte, eu gostaria de sugerir quatro livros: dois no plano nacional e dois no plano local. São eles: Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan História do movimento LGBT no Brasil, organizado por James Green, Renan Quinalha, Marisa Fernandes e Márcio Caetano. Travestis: carne, tinta e papel, de Elias Ferreira Veras e o meu livro Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.

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1 Comentário para “Entrevista Luiz Morando: memória e respeito ao movimento LGBTQIA+”

  1. Avatar Ronaldo disse:

    Gostei muito da entrevista. O Luiz tem um vasto conhecimento sobre o assunto. Parabéns!

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