Por Fayga Moreira*
Outubro de 2023, uma nova guerra começava no Oriente Médio. Perplexa e assombrada, me lembrei das tantas vezes que assisti, na TV da sala, jantando com minha família, os bombardeios da Guerra do Golfo. Agora, era meu filho que se amedrontava com tamanha violência e degradação da capacidade de diálogo. Com o cuidado que a gente gostaria de ver no mundo e nos sofás de todas as casas com crianças, costuramos (artesanalmente) um filme. Um registro breve, de 1 minuto[1], que comporta décadas, séculos, milênios de falta de humanidade dentro da humanidade. Eterno Retorno faz alusão ao conceito de Nietzsche, que tem como fundamento a imanência[2] como matéria-prima da vida. Não de qualquer vida, mas de uma existência que não se rende ao transcendental (seja lá qual for). Uma vida que quer viver todo o seu potencial agora.
No final do brevíssimo filme, uma frase que meu filho lançou filosoficamente no ar: “mãe, por que estão matando a paz?”. Nunca deixaram de matar, filho: Palestina, Líbano, Síria, Iêmen, Etiópia, Burkina Faso, Somália, Congo, Sudão, Azerbaijão, Ucrânia, Nigéria. De acordo com reportagem da TV Senado, em 2024, aqui neste mesmo planeta em que coabitamos, existem ao menos 30 guerras em andamento[3]. A motivação, a despeito dos mais crentes no fundamentalismo religioso como causa basilar, é outra. A sanha transcendental, que impulsiona tantas mortes, enaltece outras divindades: a ganância, o lucro, o progresso. Disputas territoriais que não servem ao desejo de mais vida e, sim, ao apetite letal por minérios, petróleo, gás natural, pastagem, monocultura. A transcendência é a própria ideologia de que o futuro depende da extração do presente (do nosso tempo, do nosso corpo, das nossas relações, de tudo o que a natureza nos dá). Em contraponto a essa voracidade da morte, a filosofia do bem viver[4].
Os povos indígenas nos convocam: “vamos pisar suavemente na terra?”[5]. E parte da humanidade, que se considera “desenvolvida”, “civilizada”, lutando por um “mundo livre, sem bárbaros selvagens”, responde com bombas, com fuzis, com extremismos, agarrados em sua pulsão de morte. O filme Guerra Civil[6], que tem o ator brasileiro, Wagner Moura, como um dos protagonistas, toca nessa ferida aberta de forma brutal e delicada, na mesma medida. Além de ser uma ode ao fotojornalismo e ao jornalismo, o longa (hollywoodiano ao máximo em sua forma de produção) interpela o público com a seguinte provocação: o que acontece quando rompemos com a democracia, os direitos humanos e a diplomacia, em troca do estímulo ao ódio, à indiferença, ao extremismo? Quando cruzamos a fronteira da civilidade, o que sobra é a hostilidade?
Há um momento, especialmente emocionante do filme, em que a renomada fotojornalista de guerra (interpretada por Kristen Dust) conta para sua aprendiz, uma jovem que quer seguir os passos dela na cobertura fotográfica de conflitos armados, algo assim: toda vez que sobrevivo a uma guerra e faço uma foto que traduz a tragédia vivida por aquelas pessoas, penso que estou mandando uma mensagem para o mundo. E a mensagem, em tom de desalento e desesperança, da personagem Lee Smith é esta: “não façamos mais isso”. E completa: mas aqui estamos nós, em meio a mais uma guerra.
O próprio filme, podemos dizer, pode ser lido como um clamor para que a humanidade não pegue mais uma vez essa rota, mas cá estamos nós, trôpegos entre uma guerra e outra, ainda insistindo na paz, na diplomacia, no diálogo, na democracia, como caminhos possíveis para resolução de conflitos. A arte acaba sendo um terreno fértil para reafirmar o perigo de ruptura com esse pacto civilizatório. Como afirma Ailton Krenak[7]:
O filme tem evidentemente esse objetivo, alertar para o perigo que os EUA estão passando com o fortalecimento do extremismo entre democratas e republicanos, com o crescente armamento da população, com o recrudescimento do ódio aos imigrantes, com a intensificação do medo como ferramenta política, com a intolerância às diferenças tomando conta do espaço público. A obra se passa especificamente nos EUA, mas manda um recado para o mundo. Onde vamos parar? É possível ainda insistir na divergência como sinônimo de pluralidade sem chegar a um ponto incontornável de esgarçamento completo da negociação, o que nos leva a um projeto de eliminação do outro? Há algum espaço possível para o respeito às diferenças e para a preservação da dignidade humana?
O diretor (que também é o roteirista) de Guerra Civil, Alex Garland, apresenta os contrastes entre a atrocidade da guerra e as belezas da vida de uma forma muito brilhante. Para dar um exemplo: em uma das cenas, Lee deita em uma grama para se proteger da troca de tiros de fuzil, enquanto os demais personagens estão tentando registrar o conflito. Nesse momento, a câmera foca em um plano em que a fotojornalista parece descansar entre flores minúsculas e delicadas, mesmo em um cenário de extrema hostilidade. Garland utiliza desses contrastes em muitas outras cenas: brutalidade / sensibilidade, barulho / silêncio, tranquilidade / confronto, poesia / irracionalidade, natureza / desumanidade, pulsão de vida / pulsão de morte. Particularmente, acho que ele é muito habilidoso ao tecer um enredo sobre guerra sem cair em clichês e explorando a complexidade que reside nestas dualidades.
Como se sua obra nos lembrasse que a imanência é o único caminho para evitar os extremos. Porque se a morte já está dentro da própria vida, não há porque persegui-la ou provocá-la de forma intencional. Quiçá o que a arte, a poesia, a filosofia, as cosmovisões indígenas queiram nos dizer é que só há um caminho para a humanidade seguir pisando nesta Terra: com suavidade.
*Fayga Moreira, jornalista, pesquisadora, produtora cultural, professora universitária, escritora e mãe.
[1] https://festivaldominuto.com.br/pt-BR/contents/53683
[2] Para saber mais sobre o conceito de imanência: Tratado de Imanência • Razão Inadequada (razaoinadequada.com)
[3] O impacto das guerras na formação de um mundo multipolar e na economia internacional – TV Senado
[4] Me aprofundo nessa perspectiva numa próxima coluna, mas deixo aqui um texto bonito sobre esse jeito possível de ser e estar no mundo: Bem-viver – Alana
[6] Civil War (Original), 2024, 109 minutos. Produtora A24. Direção: Alex Garland.
[7] Card compartilhado no perfil do Instagram do Canal Curta: Curta! (@canalcurta) • Fotos e vídeos do Instagram
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