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De Contagem para o mundo: um cinema que reencanta o imaginário afetivo coletivo

Foto: Divulgação Filmes de Plástico (Filme “O dia em que te conheci”)

Por Fayga Moreira*

A primeira vez que assisti a um filme do André Novais foi em um cinema de rua em Salvador, em frente à Praça Castro Alves, em um festival. Me lembro de ter saído como quem pisa em nuvens, encantada com essa novidade poética-afetiva-existencial. O André estava em algum cantinho, após a sessão. Me aproximei, me apresentei e comentei que nunca tinha visto nada igual. Ele com o jeitinho mineiro dele, agradeceu meio tímido.

Sim, outros cineastas, naquela mesma edição do festival (em 2015), também atravessaram de forma contundente minha sensibilidade, mas nenhum deles tinha sido tão disruptivo. O filme Ela volta na quinta abalou os alicerces daquilo que entendia como cinema brasileiro. Num primeiro momento, eu só senti (o afeto que emanava das cenas), só me reconheci (no contexto filmado, nos objetos cênicos e nos perrengues de classe média baixa), só me diverti (com os diálogos tão humanos, tão familiares, tão cotidianos). E isso tudo já seria muito para me motivar a acompanhar a trajetória da produtora Filmes de Plástico.

Mas, depois, inventei de tornar esse “novíssimo cinema contemporâneo brasileiro”, com sotaque mineiro, sujeito da minha pesquisa de pós-doutorado. E tive a sorte de mergulhar na filmografia desse coletivo para compreender porque suas obras ressoavam tanto em minha subjetividade. Na ocasião, eu estava completamente fascinada e engajada no debate decolonial, mas não conseguia ainda conectar um arrebatamento ao outro.

Só durante a escrita do projeto de pesquisa me veio o insight: o “gancho” está na disputa pelo imaginário coletivo, um embate contra as colonialidades impregnadas na nossa subjetividade, no nosso inconsciente, na nossa forma de enxergar o mundo. Logo em seguida veio a pergunta: mas o que há de inovador nisso já que tantos filmes (documentais, em sua maioria) já encararam essa batalha simbólica?

A diferença, fui esmiuçando melhor a reflexão, está na forma e no tom. Se fosse uma melodia, não haveria nenhuma estridência, nada de guitarras ruidosas disparando adrenalina e fome de luta. Pelo contrário, o que eles estavam propondo era um cinema altamente político, sem a pretensão de ser politizado. Um cinema-prosa, com uma cadência de leveza perturbadora para quem estava acostumada a ver aqueles personagens, aqueles cenários, aqueles planos apenas em enredos costurados pela violência, pela falta de dignidade e pela violação de direitos. Um cinema que rompe com uma multidão de estereótipos, mas não como um rasgo, um grito, um chute na porta do imaginário colonial. Mas ali no miudinho do cotidiano, nas conversas tão triviais que acontecem na fila do pão, enquanto chupamos uma laranja depois do almoço, num boteco, sentados na beira da calçada com um latão na mão, nas ruas sem glamour das periferias de nossas cidades, enquanto procuramos um novo emprego, no ponto de ônibus, na fila do banco, num banco de praça.

Contudo, o cinema da Filmes de Plástico é altamente sofisticado, não se enganem. De um refinamento estético-formal brilhante, por isso inovador e insurgente ao mesmo tempo. Coisa de quem se apropria do que propõe a linguagem do colonizador (que é quem sabe, portanto, “catequiza”) para subvertê-la por dentro. No caso dessa galera de Minas, o aprofundamento no “cinema clássico” (roteiro, construção de personagens, estruturas narrativas) tal qual ensinado em cursos pasteurizados de audiovisual, vai sendo desconstruído muito educamente, delicadamente, afetuosamente.

Eles conseguem questionar a perspectiva, que se pretende neutra, da branquitude e da elite econômica, sem apontar o dedo na cara. O filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez chama essa pretensão de imparcialidade de certa parte da população de hybris do ‘ponto zero’. Um lugar de enunciação que se considera um ponto neutro a partir do qual se analisa o mundo. Esse universalismo abstrato há séculos vem eclipsando os lugares de fala e os marcadores espaço-temporais da produção artística e de conhecimento.

O cinema da Filmes de Plástico parte de um outro horizonte ético-político para construir enredos em que personagens sejam tão humanizados quanto aqueles que estão na “egotrip” do pedestal ‘isentão’ (que não tem nada de ‘isentão’, na verdade). Uma humanização que cria outras “zonas de neutralidade”, em que o comum é a rotina da classe trabalhadora, periférica, preta, que passa perrengue para pagar os boletos, que tem sonhos, que erra, aprende e tem um monte de motivos para sorrir e se orgulhar da sua jornada épica porque mundana, sem grandes conflitos, a não ser esses mesmos do viver, do enfrentar a fila do pão ou a fila do SUS. Um cinema que parte da linguagem “clássica” para semear no imaginário coletivo outras representações dessa gente toda que está fora dos padrões “universalistas”.

E isso é tão desafiador para a sensibilidade dominante e colonizada que alguns desses filmes (especificamente o Ela volta na quinta, do André Novais, por exemplo) chegaram a ser considerados documentários; como se as comédias românticas hollywoodianas ou os dramas franceses não fossem também documentais, não fossem também marcados por uma posição evidente de classe, gênero, cor, valor, privilégio. Basta ver um Woody Allen, um Almodóvar ou, até mesmo, um Spike Lee.

Tudo isso porque acabei de sair novamente pisando nas nuvens, ontem[1], depois de uma sessão de pré-estreia do novo filme do André, O dia em que te conheci. A cena se repete: em um cinema de rua, só que no Rio de Janeiro, fui arrebatada pela potência afetiva-poética-decolonial da sua obra. Uma comédia romântica que arranca suspiros, enquanto reposiciona esses personagens-lugares no imaginário coletivo. Outras notas, outras melodias, outros tons para uma mesma ‘forma-canção’. Depois da sessão, um abraço quentinho de quem já se considera “de casa” e não precisa mais se apresentar e fazer cerimônia para demonstrar a admiração.

Que as pessoas lotem as salas de cinema e tenham a sorte desse encontro com essa obra de arte capaz de reflorestar nossa imaginação e de nos colocar diante de afetos outros, possíveis e necessários.

[1] Estação Net Rio – Botafogo, 16/09/2024.

*Fayga Moreira, jornalista, pesquisadora, produtora cultural, professora universitária, escritora e mãe.

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